15 Junho 2015
"Se Fernando Brant era um alquimista da pedra filosofal da mineiridade, ele encontraria nos vestígios moleculares dessa rocha algumas verdades fundamentais. Ali, ele pôde ler que um amigo é coisa para se guardar debaixo de sete chaves. Ou que o medo de amar é o medo de ser livre", escreve Rafael Senra, recordando "a “travessia” final desse ser humano cuja obra é tão importante para tanta gente".
Rafael Senra é autor do livro Dois lados da mesma viagem. A mineiridade e o Clube da Esquina, publicado pela Editora Bartlebee. O livro é baseado na sua dissertação de mestrado, onde discute a influência das tradições mineiras nas canções de Milton Nascimento e do Clube da Esquina.
Segundo ele, "o próprio ethos do Clube da Esquina, já a partir do nome do movimento, trata exatamente desse encontro descompromissado da juventude, dessa amizade que não pede nada em troca, que apenas celebra a vida de maneira pura e jovial".
Eis o artigo.
“Morte vela sentinela sou /
do corpo desse meu irmão que já se vai/
Revejo nessa hora tudo que ocorreu /
memória não morrerá”.
Diante da perda de Fernando Brant, autor de algumas das mais emblemáticas canções do Clube da Esquina, me vem à mente uma de suas mais belas letras, “Sentinela”, e que uso aqui como metáfora para pensar a relevância e a perenidade do que ele e sua obra significam para a música popular brasileira.
“Sentinela” foi talvez a primeira letra em todo o lastro de canções do Clube a assumir um viés memorialista. De acordo com Brant:
“Sentinela” foi uma viagem imaginária, onde aproveitei uma referência pessoal para falar também da realidade política brasileira daquele momento, final dos anos 1960. A letra é um pouco anterior ao AI-5. Em princípio, eu tinha falado com o Bituca que iria fazer uma homenagem ao Seu Francisco, que servia café lá no Juizado de Menores, onde eu trabalhava. Para mim o Seu Francisco era um tipo de pessoa que significava um monte de coisas, um sábio. Era um cara do povo que estava vivo e forte, mas imaginei a história dele mais para frente, o dia de sua morte, o velório, e o que aquilo representava para mim. (…) Mas por isso mesmo, por ele ser esse irmão querido, eu tinha que continuar, ser fiel à memória dele (BRANT. Apud: VILARA, 2006, p.67).
Ainda no início do Clube da Esquina, um jovem Fernando Brant já se atentou para o fato de que a memória não é apenas algo estanque, cristalizada em livros de história e bustos de generais. Um dos mais fecundos legados da memória da humanidade está na oralidade, nas histórias passadas de geração em geração oralmente. Tanto é que mesmo culturas que não se amparam tanto na escrita quanto outras culturas ditas “civilizadas” tem também seu lastro de memória.
Um narrador de esquinas
Dentro do Clube da Esquina, acredito que as letras de Brant foram as que mais se propuseram ao dever de erigir mitos e documentos de seu universo (Minas Gerais). Ele acabou por encarnar o mesmo arquétipo de “narrador” que enxergara em Seu Francisco, personagem principal de “Sentinela”.
Através do suporte da letra de canção popular, Brant se propôs a legar para as futuras gerações uma série de dados culturais de Minas Gerais que não poderiam se perder no tempo.
Essa figura do narrador foi muito bem descrita por Walter Benjamin, em seu ensaio Experiência e Pobreza:
“Sabia-se exatamente o significado da experiência: ela sempre fora comunicada aos jovens. De forma concisa, com a autoridade da velhice, em provérbios; de forma prolixa, com a sua loquacidade, em histórias; muitas vezes com narrativas de países longínquos, diante da lareira, contadas a pais e netos. Que foi feito de tudo isso? Quem encontra ainda pessoas que saibam contar histórias como elas devem ser contadas? Que moribundos dizem hoje palavras tão duráveis que possam ser transmitidas como um anel, de geração em geração? Quem é ajudado, hoje, por um provérbio oportuno? Quem tentará, sequer, lidar com a juventude invocando sua experiência?” (BENJAMIN, 1993, p.114).
Documentos poéticos
Em 2008, quando entrei no mestrado em letras disposto a pesquisar as canções do Clube da Esquina, encontrei nas letras de Brant toda a profundidade que eu precisava. Como o mestrado da UFSJ se pautava pelo campo teórico conhecido como Estudos Culturais – que tratam de temas relacionados a memória, identidade, colonialismo, multiculturalismo, gêneros, etc. – , pude assim encontrar um viés bem adequado com a metodologia que iria aplicar.
Se fizermos um recorte das letras escritas por Fernando Brant, diversas delas apresentam um aspecto de narrativa, e, mesmo quando tratam de utopia, sempre partem do real (passado ou presente). Essa veia de “documentarista-poético” dos contextos vividos ou ouvidos guarda uma relação com o papel de um diretor de cinema, como nos relata o próprio Brant:
“Lembro-me que toda vez que saía de casa para ir a Biblioteca Pública, na praça da Liberdade, eu descia a Aimorés e subia a Brasil fazendo filmes, enquadrando tudo o que via. Meus olhos eram uma câmera. Na verdade, eu não tinha olhos, carregava o tempo todo uma câmera no rosto (BRANT, Fernando. In: VILARA, Paulo. Op.cit. pág.37).
Guardião da memória
O caminho estético que marcou Fernando Brant no Clube da Esquina teve similares na literatura. De acordo com Wander Melo Miranda, diversos escritores de Minas Gerais – como Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes ou Pedro Nava – produziram textos memorialistas no período da ditadura militar. Sua intenção era a de evidenciar alguns traços valiosos da cultura que ameaçavam ser extintos através do projeto modernizador dos militares.
Diversas letras de Brant funcionam como rochas líricas que guardam estes monumentos perdidos da identidade mineira. Em Beco do Mota, ele fala de uma rua boêmia de Diamantina, e utiliza o fim dessa zona como metáfora para a repressão da ditadura.
Em Aqui Óh, ele fala dos nostálgicos “namorinhos de portão”, ao mesmo tempo em que discute também o caráter desconfiado e esquivo dos mineiros.
Em Nos Bailes da Vida, podemos sentir toda a emoção e a sinestesia da sofrida vida dos músicos que cumprem sua vocação, mesmo em condições pouco glamorosas.
Em Ponta de Areia, ele transforma em letra de canção uma matéria que fez quando era repórter da revista O Cruzeiro, sobre uma linha de trem que ligava os estados de Minas Gerais e Bahia. Em todo o circuito percorrido pelo trem, ele elenca diversos traços culturais que ameaçavam se perder em meio ao propósito militar (a começar pelo próprio transporte ferroviário).
Em Maria Maria, ele nos mostra a doída beleza da mulher humilde, da face feminina de um Brasil trabalhador, maternal, forjado na simplicidade.
Um sentinela no interior do Clube
É importante aqui pensar no que significa as letras de Fernando Brant dentro do Clube da Esquina. Se pegarmos o movimento como um todo, é possível notar um enfoque mais introspectivo da lírica geral. Há sempre um eu-lírico em primeira pessoa, que observa não só os fenômenos a seu redor, mas também narra seus próprios devaneios e utopias. As letras de Márcio Borges, Ronaldo Bastos, Murilo Antunes e outros se beneficiam bastante desse tipo de perspectiva. São fluidas, subjetivas, misteriosas.
O estilo de Brant guarda algumas diferenças com seus parceiros. É essa diversidade de panoramas (apesar de um ângulo lírico comum) que sedimentou a assinatura e a glória do Clube da Esquina. Porém, enquanto os outros letristas caminhavam de olho em nuvens ciganas, nascentes, ou mesmo girassóis da cor de cabelos, Brant mantinha o foco no chão.
Arriscando aqui um exercício metafórico, se eu fosse compor a paisagem lírica do Clube da Esquina, pensaria em Ronaldo Bastos como o vento, Márcio Borges como a água, e Fernando Brant como a pedra (não a toa, seu nome completo é Fernando Rocha Brant). É este último o mais atento na dimensão palpável e concreta do seu entorno.
Pedra mineira
Remetendo a Drummond, a letra de “Itamarandiba” (do disco de Milton Nascimento Sentinela (1980), diz: “No meio do meu caminho / sempre haverá uma pedra / Plantarei a minha casa / numa cidade de pedra”.
Ao buscar guardar a memória de Minas Gerais através das letras, Brant empreendeu um mergulho radical na própria essência desse alicerce cultural. Nesse movimento, creio que ele acabou se deparando com o universo da infância, com os valores primordiais da criança, sempre abertas para a amizade e o amor.
O próprio ethos do Clube da Esquina, já a partir do nome do movimento, trata exatamente desse encontro descompromissado da juventude, dessa amizade que não pede nada em troca, que apenas celebra a vida de maneira pura e jovial.
Se Fernando Brant era um alquimista da pedra filosofal da mineiridade, ele encontraria nos vestígios moleculares dessa rocha algumas verdades fundamentais. Ali, ele pôde ler que um amigo é coisa para se guardar debaixo de sete chaves. Ou que o medo de amar é o medo de ser livre.
O Brant que conheci
Pude perceber, no breve contato pessoal que tive com Fernando Brant, que seu compromisso com a amizade era não só um pressuposto de estilo de escrita, mas também uma ética de vida.
Entrei em contato com ele em meados de 2010, depois de saber que ele se interessou em ler minha dissertação de mestrado. Ao enviar meu trabalho, perguntei se ele teria disponibilidade e interesse em redigir um prefácio para um futuro livro que eu cogitava publicar.
Ele não só escreveu um texto fantástico para o livro, como compareceu pessoalmente ao lançamento, que aconteceria em 2013. Foi uma surpresa vê-lo entrar na Livraria Quixote, em BH, com seu jeito discreto e simples.
No alto de tudo que aquele homem representa para a cultura brasileira, fiquei muito honrado e admirado de perceber que ele se encontrava aberto para comungar seu saber com um jovem pesquisador que lançava seu primeiro livro. A coerência entre a vida e a obra de Brant é um valioso ensinamento que levo comigo.
O menino
Em 2004, falecia o escritor mineiro Fernando Sabino, que deixara instruções para o epitáfio escrito em sua lápide: “Aqui jaz Fernando Sabino, que nasceu homem e morreu menino”. Dentre as coincidências que ligam os Fernandos Sabino e Brant (ambos mineiros, artistas, e morreram de câncer de fígado), há também o olhar especial para a infância em suas obras.
Porém, diferente de Sabino, que alega ter rejuvenecido ao longo de toda a vida (para então constatar sua “meninice” apenas nos anos derradeiros), acho que Fernando Brant nunca deixou de preservar seu feitio de criança, no melhor sentido do termo.
Desde a primeira vez em que bati o olho numa foto do compositor do Clube da Esquina, pensei comigo que ele tinha cara de menino. Diversas letras suas tratam do universo infantil: Bola de Meia, Bola de Gude é, talvez, a mais famosa delas.
Em entrevista ao jornalista Paulo Vilara, Brant dissertou sobre a importância de se observar com os olhos da criança que foi. Para ele, o adulto deveria honrar a criança que foi um dia.
Nesse momento de tristeza, quando nos deparamos com a “travessia” final desse ser humano cuja obra é tão importante para tanta gente, acredito que seu objetivo se cumpriu de maneira exemplar. Os que ficam são capazes de enxergar na figura de Fernando Brant a criança, e também o sentinela. Diante desse nosso irmão que que já se vai, revemos nessa hora tudo que ocorreu, com a certeza de que a memória não morrerá.
Referências
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1993.
VILARA, Paulo. Palavras Musicais – Letras, processo de criação, visão de mundo de 4 compositores brasileiros: Fernando Brant, Márcio Borges, Murilo Antunes, Chico Amaral. Belo Horizonte: S.ed., 2006.
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Fernando Brant, o menino sentinela das esquinas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU