08 Junho 2015
"Como na lenda do Minotauro, juros são tributo imposto à sociedade brasileira pelos mais ricos. Como eles paralisam país e o tornam mais desigual. Por que é possível vencê-los", escreve Célio Turino, historiador, escritor e gestor de políticas públicas, em artigo publicado por Outras Palavras, 05-06-2015.
Eis o artigo.
Há décadas o povo brasileiro é submetido ao intrincado percurso dos juros altos. Como se nós estivéssemos em um labirinto e dele não mais pudéssemos sair, desorientados, fomos levados a crer que a única alternativa para combater a inflação seria o pagamento de elevadas (estratosféricas!) taxas de juro público (SELIC). Esta crença tornou-se uma religião, um dogma indiscutível, do qual ninguém pode divergir. Diariamente somos massacrados por análises econômicas, seja por meios de comunicação, estudos acadêmicos (os que ganham destaque, é claro), relatórios de consultorias, análises de mercado. Enfim, todos os agentes do terrível monstro que habita o labirinto em que nos jogaram. Quando alguém ousa desafiá-lo ou pensar diferente, logo é triturado por um cruel minotauro, ou então defenestrado e relegado ao esquecimento. A força deste dogma é tanta que pensamos que o que estamos pensando é verdade. E assim, nos rendemos ao deus mercado, de modo que o Brasil é o país que mais paga juros reais no mundo e isto há décadas!
Em Creta, o povo era obrigado a entregar suas virgens para serem comidas pelo minotauro; no Brasil, entregamos nossas vidas e futuro. Segundo dados do Banco Central, no início do Plano Real a dívida interna brasileira era de R$ 153 bilhões (valores atualizados), o que equivalia a 30% do PIB; em 2015 a dívida é de aproximadamente R$ 4 trilhões (isso mesmo), ou 63% do PIB. No mesmo período pagamos, em valores atualizados pelo INPC, um total de R$ 2,9 trilhões! Mas se a dívida pública brasileira era de R$ 153 bilhões e no período de 20 anos pagamos (repetindo) R$ 2,9 trilhões (exatamente e não incluindo 2015, quando pagaremos mais R$ 300 bilhões), como explicar que estamos devendo R$ 4 trilhões?
No artigo anterior, preferi usar dados da dívida líquida (R$ 2,4 trilhões) para demonstrar, a partir dos argumentos do governo, que o aumento da SELIC, praticado pelo Banco Central (13,25%), não só neutralizará os efeitos do ajuste fiscal, como vai piorar a relação dívida/PIB ao final de 2015. Mas, agora precisamos analisar a dívida pública tal qual ela é, por isso os dados de dívida bruta. Este é mais um exemplo da enganação e desorientação que tem sido praticada pelo labirinto dos juros altos. A diferença entre dívida líquida e bruta está no cálculo entre o que o país deve e o que tem a receber. Por exemplo, o país possui US$ 372 bilhões em reservas internacionais, quase tudo em títulos do tesouro dos Estados Unidos; mas o governo dos EUA paga juro de 1% ao ano, o mesmo acontece com créditos do BNDES, com juros entre 5 e 6%, mas cujo dinheiro é captado pelo governo a juro de 13,25%. Seria a mesma coisa que a pessoa pagar juro de cheque especial para aplicar o dinheiro na caderneta de poupança. A conta não fecha, pois pagamos juros de 13,25% para receber 1%, no máximo 6%, por isso o indicador correto para apurar o endividamento de um país tem que ser sobre a dívida bruta e não líquida.
Outro dogma que, nestas dimensões e extensão de tempo só é praticado no Brasil, é de que somente com juros altos poderemos conter a inflação. O juro alto pode ser utilizado em determinadas ocasiões e por tempo limitado, mas ele só detém a inflação quando há excesso de demanda. Inflação é o aumento continuado e generalizado de preços dos bens e serviços e acontece por quatro causas:
> Demanda – quando as pessoas querem comprar mais produtos, em velocidade superior àquela em que são produzidos;
> Custos – quando aumentam os custos de produção, seja por escassez ou variação de preços de mercado (a variação no preço da energia elétrica, como está acontecendo agora, por exemplo);
> Inercial – resultante da sensação de que é necessário aumentar os preços porque os preços irão aumentar, gerando uma “bola de neve” e indexações de custos;
> Estrutural – falta de eficiência na Infraestrutura;
O juro elevado só tem poder de interferência sobre o primeiro tipo de inflação, o de demanda, pois com o juro as pessoas seriam induzidas a consumir menos e poupar mais. Mas não está ocorrendo inflação por excesso de demanda no Brasil — pelo contrário, está havendo retração do consumo e dos investimentos. Por mais que se mexa na taxa SELIC, ela não tem nenhum poder de influência sobre os outros tipos de inflação, que são os que têm corroído a economia brasileira. De tal modo que os juros estratosféricos praticados no Brasil só agravam o problema da inflação e não o solucionam. No momento estamos com juro real variando entre 5 e 7%; com um juro destes o governo brasileiro está elevando os custos de produção, incentivando a inflação inercial (via custos indexados, em contratos de concessões públicas, serviços de telefonia, etc) e retirando recursos do maior gargalo da economia brasileira, que é a péssima infraestrutura, sobretudo em logística. Ou seja, com juro alto, ao contrário do que se repete à exaustão, estamos gerando mais inflação.
Com taxa básica de juro elevada, os juros praticados no mercado também sobem. Com isso o custo de investimentos e capital de giro também se eleva, gerando inflação por custo. O mesmo ocorre com a indexação de tarifas e preços públicos, asseguradas no contrato das privatizações, o que é um crime contra o país, um roubo contra o povo. Se o Plano Real veio para acabar com a inflação inercial – via indexação -, por que mantê-la para os magnatas da privatização? E mesmo passados 20 anos, o governo não mexeu nestas cláusulas e segue aplicando-as em novas privatizações, agora com o nome de concessões. Exemplo disto é o fato de pagarmos uma das mais altas tarifas de telefonia e internet do mundo e com serviço de péssima qualidade. Mas o pior efeito do juro alto está na infraestrutura. Infraestrutura depende de investimento de longo prazo, em que o retorno, em contratos honestos, é de aproximadamente 6% ao ano, por vezes menos.
Ora, se o governo paga juros que oferecem a mesma taxa de retorno, ou até mais, sem a necessidade de nenhum esforço ou risco, por que motivo fundos de pensão ou investidores privados iriam se aventurar em custosas obras de infraestrutura? A solução encontrada pelo governo brasileiro é mais uma peculiaridade que só existe no Brasil, como a jabuticaba. Para viabilizar os investimentos “privados” em concessões públicas e obras de infraestrutura, o governo provê as empresas com empréstimos subsidiados, via BNDES, cujo dinheiro é captado a juro de 13,25% (por enquanto) com retorno de, no máximo, 6%. Este é mais um efeito nefasto do Labirinto dos Juros Altos, pois é o dinheiro público que financia a privatização.
Esta política de juros públicos estratosféricos (chegamos à desfaçatez em praticar juros de 45% ao ano!) e em ciclo histórico tão longo é única no mundo. Nenhum país sério a pratica. Japão, países da Europa Ocidental e Estados Unidos praticam juros negativos há vários anos (os bancos privados são obrigados a depositar parte do dinheiro captado dos clientes no Banco Central de seu país, retirando menos que colocaram, até mesmo em termos nominais).
Mesmo na América Latina, há casos de países com taxas rais de juros ínfimas ou negativas: Chile (1,5%), Colômbia: (1,3%), México (-0,45%). Em todos estes países, os governos e agentes econômicos sabem que juros altos inibem investimentos e com menos investimentos há mais possibilidade de inflação futura. Afora o que se retira de recursos que deveriam estar sendo aplicados em bens e serviços públicos.
Mas no Brasil, em 20 anos a alta taxa da SELIC nos subtraiu R$ 2,9 trilhões (repetindo); como o orçamento federal para 2015 é de R$ 1,1 trilhão, isso equivale a dois anos e meio de orçamento federal. Daí se explica a baixa (baixíssima!) qualidade em serviços públicos e o gargalo na infraestrutura. Também é isso que explica o fato de o Brasil não conseguir taxas sustentáveis no crescimento do PIB, que cresce em um ano para decrescer no seguinte (o famoso “voo da galinha”).
Agora o governo faz um corte de R$ 70 Bilhões nas despesas e investimentos públicos, mas só em juros os brasileiros pagarão (nós pagaremos) mais de 4 vezes este valor. Precisamos vencer este Minotauro e sair deste Labirinto, e já!
Mas se até o início de 2013 o governo conseguiu reduzir a SELIC nominal para 7,25%, com juro real de 1,41%, por que tamanho recuo? Acertou no diagnóstico, mas errou no tratamento. Ao mesmo tempo em que o governo baixava juro, estimulava consumo, com medidas adicionais, para além do próprio efeito da queda dos juros. Cedeu à marquetagem e à popularidade fácil, praticando uma política econômica voluntarista e errática. Exemplos: incentivos fiscais para automóveis, eletrodomésticos de linha branca, desoneração no pagamento previdenciário das empresas (que agora precisa voltar atrás). Não que as pessoas não devessem ter acesso a bens de consumo, mas este acesso deveria ter sido alcançado pela elevação de investimentos e do valor do trabalho e não pela transformação de direitos em dádivas. A combinação destes equívocos fez com que a redução dos juros não fosse sustentável. E agora todos terão que pagar uma conta muito mais alta. Menos os banqueiros e rentistas, é claro.
Para sair do Labirinto dos Juros Altos: o fio de Ariadne.
Primeiro, há que encontrar o segredo do Labirinto, pois sem ele jamais identificaremos a saída. Entre os perversos efeitos dos juros reais altos, o pior de todos é a transferência de renda dos mais pobres para os mais ricos. Como isto se dá? Toda vez que o juro real tem uma taxa superior à elevação da taxa do PIB per capita. Por didática, vou manter o exemplo no PIB bruto, sem a distribuição de recursos por habitantes. A estimativa do governo para a variação real do PIB em 2015 será de -1,2%; em contrapartida, o juro público real será de + 6% (ou mais). Aplicando-se índice 100 para o PIB e 60 para a Ddvida, ao final de 2015 os brasileiros estarão 1,2% (PIB a 98,8) mais pobres, enquanto as 20 mil famílias de grandes credores da dívida estarão 6% (Dívida a 63,6) mais ricas, aumentando o fosso em 4,8%. Exatamente, no ano de 2015 a concentração de renda no Brasil será elevada em, no mínimo, 4,8%; isto significa dobrar a distância entre os 1% da população e os demais 99% em um período de 18 anos.
Não há mais como escamotear, a inexplicável política de juros altos praticada no Brasil é resultado de luta de classes. E a classe dos banqueiros tem vencido sistematicamente. Não se trata nem mais de uma questão técnica, mas política. Claro que houve profundas derrapagens técnicas no governo passado e que seguem agravadas no atual, e elas precisam ser corrigidas; mas o pano de fundo é a submissão às ordens dos que sempre mandaram neste país. Uma medida justa seria não aplicar Juro Real em taxa superior à variação anual do PIB, o que significaria SELIC de, no máximo, 8%, em 2015. Outra medida seria concentrar todos os recursos públicos (folha de pagamentos de servidores públicos, empréstimos do BNDES, etc) para serem operados somente por Bancos Públicos. Como terceira medida, a utilização de Bancos Públicos para uma consistente redução nas operações de crédito, seja para investimentos ou crédito ao consumidor. Como os juros do mercado estão estratosféricos, em valores de usura, há como forçar uma consistente queda. Por exemplo, o crédito para pessoa física está em mais de 110% (para não falar dos 300% no Cartão de Crédito e 200% no Cheque Especial), mas o Banco do Brasil e a Caixa deveriam praticar juros de 50/60%, e ainda assim teriam muito lucro; após uma concorrência em que os Bancos privados tivessem que reduzir suas margens, novo processo de redução.
Diz a lenda que o terrível Minotauro só foi vencido após enfrentar a coragem de Teseu, o herói ateniense, e a inteligência de Ariadne, a princesa de Creta, que forneceu a Teseu um novelo de fios de ouro (eu prefiro a versão em que ela desfaz suas vestes, adentrando-se com ele no Labirinto), para que ele pudesse reencontrar a saída do Labirinto. É chegado o momento de enfrentarmos o Minotauro dos Juros Altos, que a todos aterroriza. Assim como é chegado o momento de desvendarmos os segredos do Labirinto de Dédalo, o arquiteto que o projetou, agora substituído por economistas (muitos economistas!), imprensa e políticos a serviço dos banqueiros. Há que desvendar segredos, simplificar discursos e dizer em alto e bom som: Nós somos Teseu e Ariadne! Nós somos os 99%!
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Contra a oligarquia financeira, sejamos Teseu e Ariadne - Instituto Humanitas Unisinos - IHU