18 Mai 2015
No âmbito social, falar em família traz consigo inúmeros clichês e estereótipos, que encerram esse conceito nos padrões éticos e estéticos dos comerciais de margarina. Mas Francisco nos desafia a imaginar outras famílias possíveis. Sua mensagem para o 49º Dia Mundial das Comunicações Sociais, celebrado neste domingo, nasce de um contexto: a “profunda reflexão eclesial” e o “processo sinodal” que a Igreja está vivendo.
A opinião é do jornalista Moisés Sbardelotto, doutorando em Ciências das Comunicação pela Unisinos e autor do livro E o Verbo se fez bit: A comunicação e a experiência religiosas na internet (Ed. Santuário, 2012). Foi membro da Comissão Especial para o Diretório de Comunicação para a Igreja no Brasil, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
Eis o texto.
Neste domingo, 17 de maio, celebra-se o 49º Dia Mundial das Comunicações Sociais. Na sua Mensagem divulgada para a ocasião, o Papa Francisco relê a comunicação contemporânea a partir da família, “primeiro lugar onde aprendemos a comunicar” e em que começamos a construir os nossos contatos com o mundo. Somos comunicação. Mais do que um fazer, do que um ter, do que um poder, comunicar é ser: nascemos em comunicação, crescemos porque nos comunicamos, comunicamo-nos para viver. É uma dimensão existencial, vital ao próprio ser humano em relação.
Se, no ano passado, o papa destacava a proximidade como o poder da comunicação, na mensagem deste ano, intitulada Comunicar a família: ambiente privilegiado do encontro na gratuidade do amor, ele ressalta o processo de “descoberta e construção” dessa proximidade, a partir do relato evangélico da visita de Maria a Isabel (Lc 1, 39-56). O encontro dessas duas primas grávidas e de seus bebês, segundo o pontífice, apresenta a família como um “momento original” do processo comunicativo.
Assim, Francisco faz um gesto copernicano do ponto de vista dos estudos de comunicação. Ele tira do centro do processo comunicacional os “meios”, entendidos – muitas vezes também no pensamento eclesial – meramente como as tecnologias, a “grande mídia”, as indústrias culturais. Em seu lugar, coloca os “corpos” que se tocam, que exultam pelo encontro, entendendo a comunicação como “um diálogo que se entrelaça com a linguagem do corpo”.
Escola
Ao sugerir a família como foco de reflexão sobre a comunicação, partindo da alegria do bebê no ventre de Isabel ao se encontrar com Maria grávida de Jesus, Francisco radicaliza, vai às raízes do processo comunicativo, ao seu núcleo original, e dá um salto “dos meios aos corpos”: ao vínculo, ao contato, ao toque, à “cola” das relações humanas e sociais. A comunicação, diz o papa, tem um “início vivo”, que é o encontro interpessoal. “Exultar pela alegria do encontro é o arquétipo e o símbolo de qualquer outra comunicação”. Dessa relação entre corpos, nasce um encontro alegre e exultante, uma comunicação encarnada, que brota de uma experiência e de uma vivência profundas do que há de mais central no cristianismo: a encarnação de Deus, o “Verbo que se faz carne”, que se faz “corpo”.
Refletindo sobre o movimento de alegria do menino na barriga de Isabel ao ouvir a saudação de Maria, Francisco indica que a “primeira escola de comunicação” é o próprio ventre materno. Nele, a relação com a mãe é a primeira experiência comunicativa do bebê. O método pedagógico dessa escola familiar é, justamente, a “escuta e o contato corporal”.
Francisco não entende a comunicação como uma técnica fria, puramente informacional. Comunicar, segundo o papa, não é uma mera ação de “produzir e consumir informação”. Também não é uma habilidade que possa ser aprendida autonomamente, nem um “dom de nascença”, reservado aos escolhidos. Se assim fosse, isso acabaria privilegiando alguns e excluindo outros: os que teriam o dom não precisariam fazer mais nada, e os que não o teriam nada poderiam fazer.
Trama
Entretanto, ninguém nasce comunicador. Comunicação é algo que vem das entranhas, do calor materno e humano. É uma arte de vida que se aprende na relação. Para comunicar, é necessário um caminho pedagógico, um ambiente de aprendizagem, que começa na família. Não por acaso, o verbo “aprender” é quase um refrão de toda a mensagem de Francisco. Mas aprender o quê? O significado de “comunicar no amor recebido e dado”. É assim também nos nossos lares?
Ao sermos inseridos em uma família, nosso leque de relações se amplia em “gênero e geração”, escreve Francisco. Passamos a habitar um “ambiente de vida mais rico”, “um ventre feito de pessoas diferentes, em relação”, um “espaço onde se aprende a conviver na diferença”, diante dos “limites próprios e alheios”. Nesse ambiente de relação que é a família, damo-nos conta de que só vivemos e sobrevivemos se estivermos ligados, vinculados, conectados a outros. Compreendemos que “nossas vidas estão entrelaçadas numa trama unitária, que as vozes são múltiplas e cada uma é insubstituível”. Unidade na multiplicidade: mãe, pai, esposa, esposo, filha, filho, irmã, irmão... Papéis e funções múltiplos que não escolhemos, mas que constroem relações insubstituíveis. Cada família é única.
Para favorecer essa convivência, o papa apresenta três “dinâmicas de comunicação”. A primeira delas é a oração, “forma fundamental de comunicação”. Cada família – mas também cada comunicador – deve pôr em prática a “dimensão religiosa da comunicação”, que, segundo Francisco, “é toda impregnada de amor, o amor de Deus que se dá a nós e que nós oferecemos aos outros”. Outra dinâmica é o perdão, que nos ajuda a reatar o vínculo rompido e que, em família, é pedagogia concreta para ensinar os filhos a serem “construtores de diálogo e reconciliação na sociedade”. Por fim, a dinâmica da bênção, que “quebra a espiral do mal”, do ódio, da violência, da fofoca, da discórdia, do preconceito, do ressentimento. Bem-dizer em vez de mal-dizer: esse é o método em família para “educar os filhos à fraternidade”, ensina Francisco.
Sujeito
A família não se encerra – e não pode se encerrar – em si mesma. A partir do núcleo familiar, somos inseridos na grande família humana. Francisco deseja para mundo de hoje uma Igreja “em saída”, que “sai da própria comodidade e tem a coragem de alcançar todas as periferias que precisam da luz do Evangelho” (EG 20). Sendo “Igreja doméstica”, como definiu o Concílio Ecumênico Vaticano II, e pequena Igreja (ecclēsiola), a família também deve ser “em saída”. E o relato evangélico escolhido por Francisco para esta mensagem – a visita de Maria a Isabel – nos ajuda a refletir sobre essa saída missionária em família.
“Visitar – afirma o papa – supõe abrir as portas, não encerrar-se no próprio apartamento; sair, ir ao encontro do outro. A própria família é viva se respira, abrindo-se para além de si mesma”. Atento à realidade contemporânea, Francisco convida a família a ser um ambiente em relação, aberto. Na sua comunicação com o ambiente social mais amplo (que “supõe abrir as portas”), a família pode encontrar um equilíbrio vital (um “respiro”) entre a sua conservação e a sua atualização diante dos sinais dos tempos. Dessa forma, Igreja e família “em saída” encarnam as mesmas iniciativas: acompanhar, festejar, frutificar, verbos que o papa cita na Evangelii gaudium (EG 24) e também repete nesta mensagem.
Nesse sentido, além de escola e de trama de relações, a família também é um “sujeito que comunica, uma ‘comunidade comunicadora’”, afirma o papa. Contudo, no âmbito eclesial, muitas vezes, a família é vista apenas como um “objeto” da evangelização, que deve ser guiado pelo episcopado e pelo clero. Especialmente no Brasil, entretanto, inúmeras comunidades eclesiais sobrevivem ao longo dos anos sem uma presença clerical ou religiosa consagrada. Na base, são as famílias o principal sujeito dessa evangelização local. A presença cristã nas estradas da história tem a sua força dinâmica graças aos milhares de casais e de famílias que impulsionam a Igreja a ser realmente uma “família de famílias”, como define Francisco na mensagem. Por isso, “a comunicação que emerge das comunidades em que as leigas e os leigos são os protagonistas necessita ganhar reconhecimento por parte dos pastores”, afirma o Diretório de Comunicação da Igreja no Brasil (DCIB 9). Porque no “ecossistema comunicativo” das comunidades eclesiais, “a criança, o jovem, a mulher, o pai, a mãe, todos são agentes da comunicação” (DCIB 131). E o que eu, minha família, nossas relações familiares estamos comunicando ao mundo de hoje?
No âmbito social, falar em família traz consigo inúmeros clichês e estereótipos, que encerram esse conceito nos padrões éticos e estéticos dos comerciais de margarina. Mas Francisco nos desafia a imaginar outras famílias possíveis. Seu texto nasce de um contexto: a “profunda reflexão eclesial” e o “processo sinodal” que a Igreja está vivendo, como ele mesmo diz. Por isso, a mensagem também é um indicador da imagem de família cristã que o papa deseja ver encarnada no século XXI.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Família: escola, trama e sujeito de comunicação - Instituto Humanitas Unisinos - IHU