Por: Jonas | 07 Mai 2015
A lei sobre a informação legaliza o direito dos serviços secretos de acessar os dados privados das pessoas mediante a interceptação das conversas em celulares e Internet e a instalação de microfones.
A reportagem é de Eduardo Febbro, publicada por Página/12, 06-05-2015. A tradução é do Cepat.
O ilegal se tornou legal, o clandestino será autorizado como prática de controle policial das comunicações telefônicas, navegações em Internet ou simplesmente gravações de conversas em uma estação de trem e tudo sem controle algum do Poder Judiciário. A Assembleia Nacional francesa votou majoritariamente, 438 votos contra 86, o projeto de lei sobre a informação que almeja potencializar a luta contra o terrorismo fazendo mais ou menos de cada cidadão um ser humano potencialmente suspeito. Se a lei passar a barreira do Senado e do Conselho Constitucional, turistas ou cidadãos terão que ter muito cuidado para não dizer em uma estação de metrô, na rua, na rede ou por SMS “bomba” ou “que tipo explosivo”. Entre outros dispositivos ativados, estes termos podem despertar a programada suspeita dos algoritmos que, em forma de “caixas pretas”, as empresas que fornecem o acesso à rede serão obrigadas a instalar em seus sistemas.
Em suma, a lei sobre a informação legaliza sem intervenção judicial o direito dos serviços secretos de acessar os dados privados das pessoas mediante a interceptação das comunicações, as trocas pela Internet, a radiografia dos telefones celulares, a instalação de microfones em áreas privadas, a supervisão dos metadados, a instalação de aparelhos nos carros e até o recurso aos chamados Imsi Catcher.
Esta grande tecnologia permite que os serviços captem e gravem os dados emitidos por telefones celulares e computadores e, inclusive, o que uma pessoa possa dizer dentro de um amplo raio de cobertura. O círculo dos Estados que vigiam o mundo todo tem um novo Big Brother na família, e este não é qualquer um. Trata-se da França, o país das liberdades, da democracia idealizada, dos direitos humanos e dos direitos civis. Respaldada pela classe política, mas repudiada por amplos setores da sociedade civil, que a consideram “liberticida”, a lei é uma resposta aos atentados que sacudiram a França e o mundo em inícios de janeiro, quando alguns jihadistas franceses que circulavam a margem dos radares policiais perpetraram a matança contra o semanário satírico Charlie Hebdo e armaram o sequestro de dezenas de pessoas em um supermercado kosher no leste de Paris. Neste contexto, a lei é ampla. Os campos de ação que justificam a vigilância alcançam a “independência nacional, a integridade do território e a defesa nacional”, bem como a “prevenção do terrorismo” ou os “interesses maiores da política estrangeira”, a “prevenção ao que prejudica a forma republicana das instituições”, o “crime ou a delinquência organizada”, “os interesses econômicos, industriais e científicos”.
Este amplo catálogo de cobertura preocupou aqueles que veem nesse texto uma ameaça contra os ativistas ou os manifestantes. Na realidade, como ocorre em quase todo o mundo, quando se trata dos direitos digitais, a mobilização cidadã foi insignificante. Não houve grandes marchas como se, lamentavelmente, a lucidez acerca da maneira em que os Estados restringem direitos ou violam os princípios básicos no âmbito digital pertencessem a apenas um grupo muito restrito de militantes. Existe uma indiferença e uma ignorância coletivas muito, muito densas. As pessoas ainda veem a Internet ou os telefones celulares como joguinhos tecnológicos inofensivos, sem aceitar que são tão perigosos da mesma forma como deixar uma janela aberta antes de sair de férias.
Houve, sim, fortes antagonismos nos meios de comunicação e uma oposição liderada por grupos como Abaixo à Vigilância, La Cadratura del Net, Anistia Internacional e Repórteres sem Fronteiras. Em um nível mais institucional, a Comissão Nacional de Informática e Liberdades (CNI) criticou a implementação das “caixas pretas” nos sistemas das empresas que oferecem acesso à rede. Esta espionagem se encarregaria de “detectar uma ameaça terrorista sobre a base de um tratamento automatizado”. Mesmo assim, Jacques Toubon, o defensor dos direitos, manifestou suas “reservas”, ao passo que a presidente da Cncdh (Comissão Nacional Consultiva dos Direitos Humanos), Christine Lazerges, apontou o sério risco de que “se coloque em perigo o Estado de Direito por meio de um deslize liberticida”. O sindicato francês da magistratura e dezenas de associações expressaram a mesma opinião, o mesmo temor. O socialista Pouria Amirshani, os conservadores Laure de la Raudière e Henri Guaino, o ambientalista Sergio Coronado e a comunista Marie-George Buffet foram, no mundo político, os mais perseverantes militantes contra esta lei. Em alguns casos, o debate aplacou as fronteiras políticas.
Sergio Coronado, por exemplo, observa que “os meios outorgados aos serviços de Inteligência em nome da luta antiterrorista serão, de fato, utilizados para outras causas em um contexto muito obscuro”.
A crítica central é que o conceito desenvolvido pela França funciona como a rede de um pescador que é lançada ao mar para ver se há peixes. É exatamente o contrário do que os serviços secretos faziam antes: eles partiam de uma fonte, de um indivíduo ou de um grupo suspeito para, a partir dali, ampliar as investigações. A lei é totalmente o contrário: espiona-se qualquer pessoa para ver se entre a multidão há um suspeito. Para isso servirão, por exemplo, os metadados, com os quais serão analisados “os perfis que hoje passam inadvertidos” para “detectar futuros terroristas”. A outra barreira maior radica em que o controle da vigilância recai nas mãos de um organismo administrativo independente, a Cnctr (Comissão Nacional de Controle das técnicas de espionagem). Isto significa que as autorizações para espionar não passam por nenhum crivo judicial, mas, sim, meramente administrativo.
Os socialistas franceses são decididamente modernos, muito liberais e já conquistados pela ideia de ter de nossos contatos com o mundo uma caça aos terroristas e outros delinquentes. É claro que ninguém fica assombrado: nem esta, nem nenhuma lei contempla a vigilância dos fabulosos fluxos financeiros que circulam no mundo que é produto do crime, narcotráfico, evasão fiscal e da especulação desonesta.
Diante do recrudescimento das críticas e do peso moral e intelectual daqueles que as assumiram, o presidente francês, François Hollande, tomou uma decisão inédita até hoje: prometeu remeter o projeto de lei ao Tribunal Constitucional para que este o valide. Não obstante, a geografia da lei é tão ampla e os serviços de inteligência têm as mãos tão livres que é lícito se perguntar o que acontecerá com um empresário que vier fazer negócios em Paris e se comunicar com a sede de sua empresa. Por acaso, não será espionado em nome dos “interesses econômicos, industriais e científicos” da França? E as empresas instaladas em Paris que competem com empresas francesas no mercado internacional não são, por acaso, um perigo para esses interesses? O impacto da barbárie terrorista serviu de bandeja para a construção de uma lei totalmente assimétrica, sem garantias de que seus extensos meios não sejam utilizados contra inocentes, sindicalistas, militantes pelos direitos civis, científicos ou empresariais de qualquer parte do planeta que, por uma ou outra razão, vem à França. O Grande Irmão será no futuro nosso mais zeloso guardião.
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A França será o novo Grande Irmão - Instituto Humanitas Unisinos - IHU