Por: Jonas | 06 Mai 2015
O diretor do conceituado Projeto Documentação Cone Sul do Arquivo de Segurança Nacional em Washington, falou no julgamento em Buenos Aires. Trouxe dezenas de documentos que mostram o papel dos Estados Unidos e da CIA na coordenação entre os países da repressão, que se iniciou muito antes do pensado.
A reportagem é de Alejandra Dandan, publicada por Página/12, 03-05-2015. A tradução é do Cepat.
Carlos Osorio é o diretor do Projeto Documentação Cone Sul do Arquivo de Segurança Nacional da Universidade de Washington. Este arquivo é um dos lugares que guarda os documentos abertos do Departamento de Estado dos Estados Unidos sobre as ditaduras da região. Osorio depôs por dez horas no julgamento oral a respeito da Operação Condor, que acontece em Buenos Aires, que na próxima semana entra na etapa das alegações. O pesquisador apresentou um arquivo com 900 documentos, 40% dos quais provém do acervo norte-americano e outro tanto do Arquivo do Terror paraguaio. Dos 900, selecionou 100 para a audiência. Sua série não começa em 1975, com a sabida conferência de Inteligência no Chile, na qual se instituiu formalmente a coordenação das forças repressivas com o nome de Condor. Começa em 1972, algo que é sua chave de leitura sobre esse processo. Quando os defensores viram na tela de projeção da sala o primeiro elemento, alguém levantou a mão alarmado e contestou o que lhe parecia fora do objeto de julgamento. O presidente do Tribunal Oral Federal n. 1, Oscar Amirante, interrompeu-lhe: “Você tem conhecimento de quando começou a Operação Condor - disse-lhe o juiz -, o tribunal ainda não”.
O alvoroço encerra uma das perguntas deste julgamento: “Tudo isto está relacionado com o que se chamou Operação Condor?”, perguntaram ao pesquisador. “Penso que sim”, foi a resposta. “Se alguém estabelece metodologias e os nomes que começam a intervir no primeiro período, verá que tudo faz parte da mesma matéria que aparecerá investigada mais adiante”.
Esta visão cronológica dos documentos permitiu que Osorio visse 1975 como o ano da institucionalização de um processo prévio, sustentado em convênios e ações bilaterais. A progressão mostra acordos pontuais, informais e até sustentados pelas relações pessoais entre agentes de inteligência e entre oficiais. Também encontros que começam a se tornar mais frequentes e periódicos na medida em que os tempos se tornavam mais quentes. Mostram como as comunicações foram aceleradas. Como e quem eram os que estavam sob a lupa. Há nomes de líderes das organizações políticas e das forças armadas. Internas nos serviços de inteligência. Porém, além disso, ou especialmente, dão conta do papel dos Estados Unidos.
A progressão
Da enorme quantidade de documentos, dois podem ser tomados para explicar sobre o que fala Osorio quando menciona um processo em evolução. O primeiro, menos conhecido, é do dia 12 de setembro de 1972, um acordo secreto bilateral de Inteligência entre as forças armadas do Paraguai e o Exército argentino. O texto apela para “juntar esforços das agências de Inteligência a respeito de grupos ou organizações”. E a “prestar colaboração mútua na luta contra a subversão mediante medidas oportunas, desestimulando elementos presentes em um ou outro país”. A Argentina apresenta um relatório sobre os grupos “insurrecionais paraguaios ou estrangeiros” que detectou na região nordeste. Destaca que “a região nordeste do país não pode escapar da pressão marxista”.
Descreve a presença de tupamaros nessa região, entrada de armamentos, movimentos no âmbito estudantil de alunos paraguaios. Menciona que os “sacerdotes e leigos para o Terceiro Mundo têm vigência e presença em quase todas as províncias” sob essa brigada. Falam do ERP e Montoneros. E de altos dirigentes das organizações do Paraguai que “atuam em nosso país” e “desapareceram do local” após ter “sofrido”, aparentemente, “um golpe com a internação destes dirigentes e a estreita vigilância sobre eles”. Há um anexo do boletim do Serviço de Inteligência do Uruguai sobre os tupas. Mais adiante, outro documento do agregado militar da Embaixada do Brasil.
Os dados, as referências e a combinação de países no documento permitem entender por que Osorio o incorporou. No entanto, para além do que disse, o pesquisador valorizou o que o documento não diz. “Este documento está mostrando que esta é uma última reunião de uma série de reuniões que vem se desenvolvendo de modo periódico. Mostra também que é um acordo que, como mostram outros documentos mais adiante, continuarão ocorrendo no futuro”. E acrescentou: “Apenas queria mostrá-lo como uma primeira amostra de um tipo de padrão que mais adiante podemos identificar que é esta colaboração bastante íntima. É interessante ver que não se faz referência a nenhum padrão de ‘cooperação’ entre os dois países. O que se observa é uma prática de camaradagem entre os dois exércitos. Não há nenhuma menção a um marco legal que limite atividades e que esteja operando. Queria apenas mostrar isto”.
Munido de uma tela, seu Excel e o link interativo entre os documentos, tudo o que dizia era visto em tempo real na tela de projeção da sala. Na continuidade mostrou outros documentos do ano seguinte, 1973, que a partir do final do governo de Salvador Allende e do fantasma da “invasão marxista” na região se torna um ano entendido por Osorio como “o momento no qual no Cone Sul se inicia o estreitamento das relações entre estes organismos. Em 1975, isto se solidifica”. Entre os documentos há materiais como os de Arancibia Clavel que tratam das questões internas na Argentina entre o Serviço de Inteligência do Exército (SIE) e a SIDE.
O segundo documento destacável é mais conhecido, é do dia 28 de novembro de 1975, durante o encerramento da primeira reunião de Inteligência Nacional, ocorrida no Chile, a partir do dia 25 de novembro. Foi várias vezes publicado porque essa reunião dá ao “sistema” o nome de Condor. Conta com a assinatura dos responsáveis de Inteligência de cinco países: Jorge Casas, capitão, chefe da delegação argentina e quem segundo Osorio era vox populi entre os investigadores sua vinculação com a SIDE; Carlos Mena, major do exército, chefe da delegação da Bolívia; Manuel Contreras Sepúlveda, chefe da DINA chilena; José Fons, coronel do exército, chefe da delegação do Uruguai; Benito Guanes Serrano, coronel do exército e chefe da delegação paraguaia.
Este documento formaliza o que até então não aparecia com clareza: a “cooperação”. Nas conclusões destaca que “se dão por iniciados a partir desta data os contatos bilaterais ou multilaterais por desejo dos respectivos países, aqui participantes, para a troca de informação subversiva, abrindo próprios ou novos cartéis de antecedentes dos respectivos serviços”. Os presentes assumem como tarefa formar “um escritório coordenador destinado a proporcionar antecedentes de pessoas e/ou organizações ligadas à subversão”. Gerar um diretório completo de nomes que trabalham na inteligência “para solicitar diretamente os antecedentes de pessoas e organizações relacionadas direta ou indiretamente com o marxismo”.
Há recomendações. Entre elas, contato muito direto e rápido quando se expulsa do país um indivíduo ou viaja um suspeito para alertar os serviços de Inteligência. Colocar à disposição da equipe técnica os antecedentes que a inteligência possui. Habilitação nas embaixadas para o pessoal de Inteligência nacional ou semelhantes, como ligações diretas e pessoais plenamente acreditadas diante dos serviços. Facilitar os meios para publicar informação destinada a atacar “a subversão”. Ajuntam dados para uma próxima reunião uma semana antes da reunião de comandantes do Exército. E, finalmente, dispõem o nome e formas de incorporação: “O presente organismo se denominará Condor, aprovado por unanimidade conforme moção apresentada pela delegação do Uruguai em homenagem ao país sede. A inclusão de países no sistema Condor deverá contar com a aprovação dos países da primeira conferência”.
Osorio voltou a dizer na audiência que isto parte de uma prática mais longa. “Este documento lista muitas atividades, relações e práticas que já eram desenvolvidas de modo bilateral por muitos anos. O que este documento oferece é uma institucionalidade, um reconhecimento, e dizer que de alguma maneira precisava oferecer essas práticas”.
“Como disse a CIA, já em 1974 conversaram sobre a necessidade de gerar uma coordenação. Se vê que as redes militares são muito estreitas. Há comunicações muito fluidas. E vinham vendo a necessidade, desde então, mas em 1975 se formaliza quando nasce a Operação Condor. Na prática o que faz não é somente reconhecer o que já se está fazendo, mas, sim, assentar as bases. É como construir um edifício para que tenhamos todos os nossos escritórios. Ao invés de todos estarem dispersos, dizem, vamos nos juntar e fazer funcionar melhor tudo isto. É um edifício. O edifício é todo o delineamento”.
Estados Unidos
Uma pergunta que surge no julgamento é sobre o papel dos Estados Unidos. Como provar a presença, coordenação ou participação de acordo com os parâmetros de um julgamento. Não há um só documento que mostre isso com todas as palavras, mas a série e o contexto com a Escola das Américas e o Comando Sul em funcionamento apresentam dados para mostrar o papel e as ambivalências. Dois documentos dão conta do último apontamento.
O primeiro é muito conhecido entre aqueles que conhecem a Operação Condor. É o do dia 10 de junho de 1976, tem forma de relatoria e dá conta de uma conversa entre o secretário de Estado dos Estados Unidos, Henry Kissinger, e o ministro de Relações Exteriores da Argentina, César Augusto Guzzetti. No documento, Guzzetti descreve a coordenação de Inteligência com as ditaduras do Cone Sul. Explica que o problema do terrorismo está generalizado. Destaca que para combater “o problema” estão procurando unir esforços com o Chile, Paraguai, Bolívia, Uruguai e Brasil. Kissinger lhe responde com uma frase muito conhecida: “Se há coisas que precisam ser feitas, devem fazê-las rápido. Porém, devem retornar rápido aos procedimentos normais”.
No dia 13 de agosto de 1976, o Departamento de Estado emite um documento muito formal e uma posição bem distinta. “O governo dos Estados Unidos se deu conta do plano dos países Condor de participar de uma cooperação para assassinar subversivos e exilados políticos dentro e fora dos países que pertencem à Operação Condor”, apontou Osorio em sua tradução. “E o Departamento de Estado elabora um documento que ordena que suas embaixadas consigam reuniões com os níveis mais altos, o mais rápido possível. Devem expressar que ‘ainda que aprovamos a troca de Inteligência e informação, os planos de assassinatos internacionais são muito sérios e criariam problemas nas relações com os Estados Unidos’”. O ponto 10 diz às embaixadas do Cone Sul que “devem por suposto ter claro que nenhuma agência do governo dos Estados Unidos deve se envolver, de forma alguma, na troca de informação ou dados sobre um indivíduo subversivo com os governos locais, inclusive nesses países onde propomos expandir nossa troca de informação. É essencial que de nenhuma maneira coloquemos ou apontemos o dedo para indivíduos que possam ser alvo de tentativas de assassinato”.
Este documento não é Kissinger, disse Osorio de modo ilustrativo: é o Departamento de Estado. “Realmente, o Departamento de Estado tem duas vozes nesta época – disse – e isto é tema de discussão em livros inteiros”. De fato, em investigações sobre a Operação Condor se fala de “luz verde e luz vermelha”. O que se vê é que “o Departamento de Estado está dizendo aos exércitos da região que não podiam continuar com este nível de assassinatos. Estão dizendo: já sabemos que Condor está matando gente. E líderes. Isso não pode acontecer. Nós queremos parar isso. Podemos cooperar, mas é eticamente impossível sustentar”.
Pois bem, acrescentou Osorio, “Kissinger disse a Guzzetti outra coisa, acena para os militares argentinos em especial, mas também fez isso com o Chile e em outras partes. A política oficial do Departamento de Estado está marcada pelo Congresso dos Estados Unidos que possui um debate, naquele momento, sobre as violações aos direitos humanos que está percorrendo o mundo em razão da influência das agências de Inteligência e das agências militares. O Departamento de Estado assume como política oficial a promoção dos direitos humanos naquele momento”.
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A evolução da Operação Condor - Instituto Humanitas Unisinos - IHU