Por: Cesar Sanson | 04 Mai 2015
A desumanização do imigrante e sua transformação em inimigo desempenham um papel relevante nas tragédias recentes na região. O comentário é de Pedro Estevam Serrano, professor de Direito Constitucional da PUC-SP, mestre e doutor em Direito do Estado em artigo na CartaCapital, 03-05-2015.
Eis o artigo.
No último mês, dois naufrágios sucessivos de embarcações que cruzavam o Mar Mediterrâneo com centenas de pessoas, em grande maioria africanos, trouxeram à tona o recrudescimento de uma crise humanitária de proporções alarmantes. De acordo com a Organização Internacional para as Migrações (OIM), somente neste ano mais de 1.750 pessoas que tentavam chegar à Europa de forma clandestina morreram – um número 30 vezes maior do que o registrado no mesmo período do ano passado. A OIM estima que, sem um plano de socorro para conter essa situação, 30 mil pessoas poderão morrer na travessia até o final de 2015.
Uma complexidade de fatores ajuda a explicar a urgência dessa questão, agora reconhecida por ministros e dirigentes da União Europeia (UE). De um lado, o surgimento de uma máfia que lucra com a miséria dos imigrantes somado à fome, à exploração, às guerras e perseguições, a cenários distintos de devastação que impelem milhares de pessoas a buscar refúgio e proteção no velho continente. De outro, o endurecimento das políticas imigratórias que tornam as fronteiras dos países europeus inacessíveis por vias legais e o refreamento de medidas de resgate e acolhimento que vinham, até então, evitando desastres nas proporções dos ocorridos recentemente.
Mas, para além desse caldo de ingredientes catastróficos, a banalização da morte - escancarada nessa tragédia no Mediterrâneo - pode ser entendida por uma outra perspectiva: o crescente sentimento de repúdio à figura do imigrante. Cada vez mais, a figura do estrangeiro tem sido desumanizada, não apenas na Europa, mas em todo o mundo rico. Por meio do emprego sistemático de rótulos e de um discurso ideológico que o avilta e diminui, o estrangeiro, o “outro”, passa a ser percebido como não-humano, como uma vida sem qualquer valor.
Essa categorização, por meio de um conceito de linguagem que o desumaniza – tal qual aplicado contra o judeu, o cigano, o comunista, o ateu –, tem uma função política e jurídica clara: subtrair-lhe direitos mínimos de sua condição humana. Lembrando que, no Estado Democrático de Direito, a característica jurídica e política primordial do ser humano é a garantia de direitos fundamentais atribuídos pela sua simples condição humana.
filósofo italiano Giorgio Agamben usa, como representação de ideia semelhante, o conceito do “homo sacer”, ou “homem sagrado” – uma figura antiquíssima do direito romano. No entanto, sagrado, neste contexto, não carrega a acepção habitualmente empregada hoje, de algo divino ou venerável. Ao contrário, o homo sacer era aquele destinado ao sacrifício, o que todos podiam matar, o “cordeiro”. Logo, o homem que não tinha direito sequer à vida. A figura clássica utilizada por Agamben na contemporaneidade para exemplificar o homo sacer é a do preso no campo de concentração. Aquele ser vivente de “vida nua”, ou seja, desprovido de qualquer proteção política, jurídica ou mesmo teológica. O inimigo, ”hostis“, como lembra Zaffaroni.
As imagens estarrecedoras dos náufragos mortos na costa da Itália, Grécia e Espanha falam por si: essas vidas não têm tanto valor assim para a Europa civilizada, não são dignas de serem amparadas, protegidas. O continente que é berço do Estado moderno, da ideia de Direitos Humanos, e que secularizou o conceito de pessoa legado da cristandade, traduzindo-o, com a revolução francesa em uma pauta mínima de direitos fundamentais do homem, nega ao imigrante (sobretudo ao africano e ao árabe) a humanidade que automaticamente lhe transferiria o direito ao acolhimento.
O descaso cínico do mundo desenvolvido, que ora se mostra compungido diante do emborcamento dos barcos superlotados, mas não cede um milímetro na abertura de suas fronteiras, ganha contornos mais dramáticos quando se observa que as calamidades de que fogem os desesperados são, em grande medida, espólio de suas próprias intervenções, do caos engendrado pela sua sanha dita “civilizatória”.
Está claro: a Europa, da África, não quer os africanos. Em um mundo globalizado e desterritorializado, em que mercadorias, capitais e recursos naturais circulam quase sem restrições e em velocidade cada vez maior, milhares de seres humanos, mais do que impedidos de circular, são deixados à deriva, como um entulho indesejável. Não há escapatória. Por mais que as embarcações turísticas desviem a rota e os líderes da comunidade europeia desviem o olhar, os navios negreiros do século XXI, desta vez não mais conduzidos pelos conquistadores brancos, continuarão dizendo muito sobre a hipocrisia e a indiferença que nos torna a todos, meros espectadores de tragédias sucessivas, desumanos – na acepção mais ordinária e mesquinha do termo.
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A Europa não se importa com naufrágios no Mediterrâneo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU