Por: Cesar Sanson | 20 Abril 2015
Enquanto todas as universidades federais e 30 das 38 estaduais aderem à reserva de vagas, a Universidade de São Paulo fala em “meritocracia”.
A reportagem é de Wanderley Preite Sobrinho e publicada por CartaCapital, 17-04-2015.
Foi necessário um vídeo gravado às escondidas em uma sala da Universidade de São Paulo (USP) para que a discussão sobre cotas raciais na maior universidade do Brasil ganhasse as redes sociais em março. Na filmagem, um bate-boca colocava de lados opostos um grupo de ativistas negros – que interrompeu uma aula para discutir o tema – e alunos brancos mais interessados em aprender microeconomia em uma sala da FEA (Faculdade de Economia e Administração) com 100 estudantes e apenas um negro. A filmagem viralizou e, 2,5 milhões de acessos depois, sobrou a pergunta: por que a universidade resiste às cotas raciais?
A USP e a Universidade de Campinas (Unicamp) decidiram adotar o sistema de bônus, quando alunos de baixa renda recebem uma pontuação extra nas provas do vestibular – até 15% no caso da USP, desde que nunca tenham estudado em escola particular. Somente em 2014 outra universidade paulista, a Unesp (Universidade Estadual Paulista), passou a adotar cotas sociais e raciais: já no primeiro ano, a proporção de matriculados egressos de escolas públicas foi de 40,7%.
O resultado é que 32% dos estudantes da USP aprovados no vestibular de 2014 saíram do ensino público. Com isso, a quantidade de pretos, pardos e indígenas subiu de 14% para 17% do total de alunos. A opção contrasta com a de pelo menos 30 das outras 36 universidades estaduais brasileiras, que, desde 2003, passaram a reservar vagas como parte de uma política de inclusão social.
Naquele ano, a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e a Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF) preservaram vagas para alunos pretos e pardos a partir da edição de uma lei estadual. Com os anos, outras estaduais aderiram às cotas, a maioria com viés social – destinado especialmente aos alunos que estudaram em escola pública. É o caso de 28 delas, segundo pesquisa do Grupo de Estudos multidisciplinares de Ação Afirmativa (Gemaa), da UERJ. Dezoito universidades também adotam cotas para pretos e pardos, 13 para indígenas e outras 13 para deficientes.
Em nível federal, a discussão começou em 1996, quando o Ministério da Justiça promoveu um seminário batizado de “Multiculturalismo e Racismo: o Papel da Ação Afirmativa nos Estados Democráticos Contemporâneos”. Em 2001, o Brasil aderiu ao Plano de Ação de Durban (África do Sul), ocasião em que o então presidente Fernando Henrique Cardoso admitiu publicamente que o País ainda é racista e que o Estado precisa adotar políticas públicas para alterar essa realidade.
Uma ação concreta, no entanto, só em 2012, quando – motivado pelas universidades estaduais – o governo Dilma Rousseff assinou a Lei 12.711, determinando que as federais distribuíssem 50% de suas vagas entre quatro subcotas: candidatos egressos de escolas públicas; de escolas públicas com baixa renda; candidatos pretos, pardos e indígenas (PPIs) de escolas públicas e PPIs de escolas públicas e baixa renda.
Outra determinação estabelecia que as reservas raciais deveriam ser proporcionais às características étnicas da população do Estado em que fica a universidade. Com 43,9% de população preta e parda, por exemplo, o Sudeste reservava apenas 4% das vagas federais a esse público em 2012. Com a lei, esse índice chegou a 18% já no ano seguinte.
Como as estaduais ficaram de fora da lei, as diferenças regionais se mantiveram nessas instituições. Para fazer essa medição, o Gemaa calculou um índice em que quanto mais próximo do número 1 mais justa é a proporção de PPIs. Com 0,45, as universidades estaduais do Centro-Oeste são as mais justas. A região é seguida de longe por Sul e Nordeste, com 0,19, Sudeste (0,18) e Norte, com 0,04.
Coordenador do Gemaa e professor de Ciência Política da UERJ e da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, João Feres Júnior afirma que a quantidade de pretos e pardos nas universidades mais do que triplicou entre 2012 (ano da lei) e 2014, ao saltar de 13 mil para 43 mil estudantes. Mas ele admite a dificuldade em colher essas informações por simples falta de dados. “É preciso trazer transparência a esses números.”
A CartaCapital, o Ministério da Educação (MEC) admitiu que não sabe precisar a quantidade de cotistas nas universidades, nem mesmo nas federais, sob sua tutela. Segundo a pasta, a oferta para cotistas nessas unidades cresceu de 9,8% para 38% entre 2013 e 2014. Apenas para pretos, pardos e indígenas, elas passaram a reservar 20% de suas vagas, em média.
Alvaro Mendes Junior, pesquisador do assunto e doutorando em Ciências Econômicas pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), acredita que a dificuldade em obter dados deve diminuir depois que as primeiras turmas com alunos cotistas nas universidades federais se formarem. Também em razão disso, os resultados dos estudos feitos até aqui são “inconclusivos”.
Por enquanto, suas pesquisas indicam que a evasão escolar de cotista é menor ou maior dependendo da universidade e que o desempenho, em 43 carreiras pesquisadas, é um pouco menor entre os cotistas: nota 8,5% abaixo da média. Mas, nas carreiras com predominância de matérias exatas, essa diferença pode chegar a 73%. Outra pesquisa, agora na UERJ, indicou que as notas de cotistas da turma de 2005/2009 era muito similar às dos não cotistas. Em Medicina e Administração, a nota dos beneficiários foi ligeiramente superior em alguns anos.
Para o pesquisador, a inclusão de cotistas divide a opinião dos gestores das universidades. Enquanto aqueles que pregam “eficiência” tendem a rejeitar as cotas, esse sistema passa a ser “defensável” quando “o gestor entende que o desempenho deva ser sacrificado para a promoção da igualdade”.
O resultado é que as cotas são adotadas principalmente pelas universidades que obtiveram avaliação regular em testes do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira). As instituições de conceito 2 oferecem 50% do total de vagas a cotistas. Entre aquelas de conceito 3, esse índice cai para 33%; 28,4% entre as instituições de conceito 4 e 0% nas de conceito máximo (5), o caso da USP.
O professor da UERJ cita universidades estrangeiras como Harvard, Princenton e Berkeley para dizer que a USP erra ao ignorar as cotas. “A USP representa o elitismo contraproducente porque as universidades mais bem avaliadas no mundo são ardorosas defensoras.”
Feres Júnior menciona pelo menos duas razões para aumentar o número de pretos, pardos e indígenas nos cursos de graduação. Ele defende a reparação aos negros, escravizados por séculos e ainda hoje tratados pela condição de pele. Além disso, “as universidades são o principal instrumento de ascensão social”.
Números do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) indicam que 19,6% dos alunos brancos entre 15 e 17 anos frequentavam a escola particular em 2008, enquanto esse índice era de apenas 6,4% para pretos e pardos com a mesma idade. No ensino superior, a desproporção triplicou em 30 anos. Em 1976, 5% dos brancos com mais de 30 anos tinham diploma, contra 0,7% dos pretos e pardos. Já em 2006, 18% dos brancos haviam se formado contra apenas 5% dos negros.
Defensor das cotas sociais, Mendes Júnior acredita que basta que a política pública priorize outros critérios, como renda, para que aumente a proporção de pretos e pardos no ensino superior. Um de seus estudos adverte que uma reserva de 20% de vagas para escola pública e renda representou, na UERJ, a inclusão proporcional de cinco pretos ou pardos e a exclusão de cinco candidatos brancos.
Já pesquisa da Gemaa na Universidade Federal de Grande Dourados (UFGD) revelou que a reserva de 25% das vagas para alunos exclusivamente de escolas públicas entre 2009 e 2011 “não teve êxito em incluir em termos proporcionais a diversidade da população”. No período, os estudantes pretos aumentaram em 10%, enquanto a proporção de pardos caiu (de 23% para 20%) e nenhuma matrícula de indígena foi registrada.
Questionada pela reportagem sobre sua preferência pela concessão de bônus, a USP respondeu que seu sistema “foi aprovado pelo Conselho Universitário em 2006 e tem como premissa principal a meritocracia”. As boas notícias chegam da pós-graduação: em março a congregação da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) aprovou uma política de cotas para pretos, pardos, deficientes e indígenas no programa na pós em antropologia social.
A proposta, que ainda precisa da aprovação de um órgão da Pró-Reitoria de Pós-Graduação, segue os passos da Unicamp, outra universidade paulista sem cotas. No dia 11 do mês passado, a congregação de pós-graduação do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas também aprovou cotas étnico-raciais, mas também precisa do aval da reitoria para validar os cursos.
Mesmo que tímido, o anúncio pode ser um alento para alunos como Renan Silva, o único negro em uma sala de cem pessoas na FEA. “Eu sou exceção, fiz escola particular. Sempre me senti pouco representado e acho que a USP precisa se adaptar para fazer jus à quantidade de negros na sociedade”. A população brasileira é composta por 50,7% de pretos e pardos e 47,7% de brancos, informa o Censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
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Universidade de São Paulo diz não às cotas raciais - Instituto Humanitas Unisinos - IHU