13 Abril 2015
Um ex-ministro da Defesa salvadorenho que vive na Flórida há 25 anos ficou um passo mais próximo da deportação depois que o mais alto tribunal de apelações dos Estados Unidos considerou que ele encobriu práticas de tortura e assassinatos realizados por suas tropas, incluindo o assassinato, em 1980, de quatro religiosas americanas por membros da Guarda Nacional.
A reportagem é de Linda Cooper e James Hodge, publicada pela National Catholic Reporter, 08-04-2015. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
A decisão do dia 11 de março, do Conselho de Apelações para Imigração, manteve uma ordem de deportação contra o Gen. Carlos Eugenio Vides Casanova, chefe da Guarda Nacional de 1979 a 1983, e ministro da Defesa de 1983 a 1989.
O Conselho também manteve o princípio da “responsabilidade pelo comando”, dizendo que “ele participou na comissão de atos particulares de tortura e assassinato extrajudicial de civis” pelo fato de que estes “aconteceram enquanto estava no comando”. Ele sabia destas práticas mas “não responsabilizou os perpetradores”, afirmou o Conselho.
Esta interpretação de uma lei antiterror de 2004 estabelece um importante precedente, já que não existe a “participação direta” de um comandante, segundo Carolyn Patty Blum, assessora jurídica no Center for Justice and Accountability, centro que representou algumas das vítimas de tortura.
A decisão tomada no caso de Vides Casanova é significativa não só pelo seu uso do conceito de “responsabilidade pelo comando”, mas também pelo fato de que o general foi, certa vez, um aliado próximo dos Estados Unidos, e um comandante militar do mais alto escalão processado, com sucesso, sob a provisão da lei de 2004.
Vides Casanova foi condecorado com dois prêmios “Legion of Merit” concedido pelo governo Reagan e recebeu um porto seguro do governo Bush para viver na Flórida, onde a sua esposa, Lourdes, é dona de uma quantidade considerável de propriedades. O seu histórico é mais respeitado ainda quando se conhece o seu padrinho, Prudencio Llach Schonenberg, barão do café e embaixador salvadorenho no Vaticano durante a época em que Vides Casanova era o homem mais poderoso entre os militares do país.
No caso das religiosas, o Conselho de Apelações para Imigração se baseou, em parte, no relatório de 1993 produzido pela Comissão da Verdade, da ONU. Este relatório concluiu que Vides Casanova “sabia que membros da Guarda Nacional haviam cometido os assassinatos” das irmãs de maryknoll Ita Ford e Maura Clarke, da irmã ursulina Dorothy Kazel, e da missionária leiga Jean Donovan”, mas ele “não fez nenhum esforço no sentido de conduzir uma investigação completa”.
O Conselho considerou que Vides Casanova “conscientemente poupou os subordinados das consequências dos seus atos e promoveu uma cultura de tolerância pelos abusos dos direitos humanos”.
Nos casos envolvendo dois salvadorenhos, Juan Romagoza e Daniel Alvarado, o tribunal considerou que Vides Casanova sabia das torturas, mas não fez nada para impedir. Na realidade, ele promoveu o major que supervisionava as torturas infringidas a Alvarado.
Em 1980, Romagoza foi “espancado, levou choques com sondas com em todo o corpo; foi abusado sexualmente com um pedaço de pau e ficou pendurado no teto por vários dias”, segundo o resumo de seu testemunho feito pelo Conselho de Apelações.
Alvarado fora falsamente acusado de matar um assessor militar americano e teve de assinar uma confissão depois de sete dias de tortura. Foi mantido por outros dois anos, mesmo depois que autoridades americanas já haviam dito que eles estavam torturando o homem errado. O governo sueco conseguiu, finalmente, a sua libertação.
Na decisão, o Conselho descartou o argumento de Vides Casanova de que ele não deveria ser deportado porque fora “levado a acreditar” que suas ações estavam consistentes com a política oficial dos EUA.
Como prova, a defesa citou os seus prêmios Legion of Merit e o fato de que os Estados Unidos nunca cortaram o auxílio econômico a El Salvador durante o tempo em que ele esteve no poder, auxílio que chegava a 1 milhão de dólares por dia.
“Ainda que o Tribunal não conclua que todas as ações [de Vides Casanova] estivessem consistentes com a política americana”, escreveu o Conselho, “os documentos confidenciais do governo estabelecem, com certeza, que as autoridades americanas estavam, em geral, informadas de suas ações no que concerne aos abusos dos direitos humanos em El Salvador”.
No entanto, afirmou que a lei antiterror de 2014 “não faz concessões”, de forma que o tribunal “deve considerar irrelevante qualquer discussão relativa ao porquê [Vides Casanova] poderia ter auxiliado ou, mesmo, participado em assassinatos ou torturas extrajudiciais”.
Em geral, os processos judiciais não relatam as autoridades americanas que tentaram influenciar generais, e não refletem a extensão do papel que os EUA desempenharam. Eles nada mencionam, por exemplo, sobre o treinamento de milhares de militares salvadorenhos na Escola das Américas, do exército americano, quando Vides Casanova esteve no poder.
Os manuais usados na Escola citada e que foram disseminados em toda a América Latina pelas Equipes Móveis de Treinamento do exército americano defendiam a tortura e o assassinato.
O manual de contrainteligência visava a sacerdotes e freiras: “Os terroristas tendem a ser ateus, devotados à violência. Isso não significa que todos os terroristas sejam ateus. No caso da América Latina, muitos sacerdotes e freiras católicos vêm desempenhando papéis ativos nas operações terroristas”.
El Salvador era um dos principais clientes da Escola das Américas na década de 1980. Três dois cinco militares citados pela Comissão da Verdade, das Nações Unidas, que tinham relação com os assassinatos das religiosas foram treinados na instituição.
Além disso, os EUA enviavam a Vides Casanova e ao alto comando salvadorenho mensagem duplas: de que os direitos humanos deviam ser respeitados, e que vale tudo no combate daquilo que Washington tentava caracterizar como uma guerra contra a agressão comunista.
O governo de Jimmy Carter, segundo o historiador Walter LaFeber, da Cornell University, incentivou o golpe que colocou Vides Casanova no poder. Este também enviou a mensagem clara de que nem o assassinato de Dom Oscar Romero, de San Salvador, nem os assassinatos das religiosas americanas iriam fazer com que os EUA parassem de mandar ajuda.
O governo Reagan não só aumentou drasticamente a cooperação americana, mas também ajudou Vides Casanova a minimizar os assassinatos das religiosas. A embaixadora indicada para a ONU do governo Reagan, Jeane Kirkpatrick, declarou logo após os assassinatos, no início de dezembro de 1980: “Eu não acho que o governo [de El Salvador] seja o responsável. As freiras não eram apenas freiras; as freiras eram ativistas políticas”.
No mês seguinte, o embaixador americano em El Salvador, Robert White, enviou um telegrama furioso ao secretário de Estado Alexander Haig. Nele, informa o Congresso que a investigação salvadorenha sobre os assassinatos das mulheres estava “avançando de forma satisfatória”. A acusação “não estava ancorada em nenhum relatório desta embaixada”, disse White.
White disse, mais tarde, que Haig o demitiu depois de ter se recusado à sua exigência em “usar canais oficiais para acobertar a responsabilidade dos militares salvadorenhos pelos assassinatos de quatro religiosas americanas”.
Haig também difamou publicamente as mulheres sugerindo que “talvez o veículo que as freiras estavam usando tentou passar por cima de um bloqueio, ou talvez elas possam ter sido percebidas, acidentalmente, tentando fazer algo assim e, então, acabou havendo uma troca de tiros”.
Na sequência, o governo Reagan premiou Vides Casanova com dois prêmios Legion of Merit apesar de uma investigação, de 1983, conduzida pelo juiz federal Harold Tyler, concluiu que Vides Casanova provavelmente estava “ciente dos acobertamentos e, por um tempo, consentiu” com os assassinatos.
E mais, o exército americano convidou Vides Casanova para ser um palestrante na Escola das Américas em 1985. Na época, a instituição ensinava os princípios básicos da estratégia de guerra do governo Reagan, que defendia o uso de quaisquer meios necessários para o alcance de objetivos políticos.
Em 1989, o governo Bush arranjou a entrada de Vides Casanova nos Estados Unidos, país que havia deportado centenas de salvadorenhos pobres para um destino desconhecido durante a guerra.
De acordo com White, o histórico de Vides Casanova o desqualificava para receber um visto Americano, porém o governo Bush deu a volta nas políticas de imigração com base numa lei que remonta à Segunda Guerra Mundial, onde a “CIA pode assentar uma centena de colaboradores por ano nos EUA, sem precisar se explicar”, escreveu White em 2004.
Ainda que Vides Casanova possa apelar ao Tribunal de Apelações do 11º Circuito, a decisão deve ter um impacto em casos pendentes, inclusive na apelação do Gen. José Guillermo García, outro ex-ministro da Defesa salvadorenho e ganhador de um prêmio Legion of Merit.
García, formado na Escolas das Américas (hoje conhecida como Instituto do Hemisfério Ocidental para a Cooperação em Segurança), também vive na Flórida.
No ano passado, um juiz de imigração em Miami considerou que as atrocidades cometidas pelas tropas sob o comando de García também não haviam sido completamente investigadas, e muito menos processadas.
García, disse o tribunal, protegia os esquadrões da morte e “auxiliava ou, de alguma forma, participava” de sessões de torturas e assassinatos durante o seu mandato como ministro da Defesa, de outubro de 1979 a abril de 1983.
Entre as atrocidades estavam os assassinatos de Oscar Romero, quatro religiosas americanas e mais de 1 mil camponeses de El Mozote, o pior massacre de civis na história contemporânea da América Latina.
Quando os dois generais chegaram à Flórida em 1989, a ajuda americana ainda estava sendo enviado a El Salvador e o treinamento militar americano nunca parou de existir. Tampouco pararam os assassinatos, até que as Nações Unidas intermediaram um acordo de paz em 1992.
A Comissão da Verdade, da ONU, descobriu que 85% das mais graves atrocidades vieram das mãos dos militares, e 5% das mãos de organizações guerrilheiras. Mais de 75 mil salvadorenhos morreram antes de a violência terminar.
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General salvadorenho ligado às mortes de religiosas americanas enfrenta deportação - Instituto Humanitas Unisinos - IHU