10 Abril 2015
Para o cardeal Gerhard Ludwig Müller, a doutrina é a expressão da verdade revelada em Jesus Cristo, embora se distingua do dogma da organização concreta dos sacramentos.
A reportagem é de Samuel Lieven e Nicolas Senèze, publicada no jornal La Croix, 30-03-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
De acordo com o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, é impossível um eventual reconhecimento por parte da Igreja de uma segunda união depois de um divórcio.
Eis a entrevista.
Como o senhor concebe o seu papel junto ao Papa Francisco? É diferente da situação com Bento XVI, que era teólogo e precedeu-o na Congregação para a Doutrina da Fé?
A chegada ao sólio de Pedro de um teólogo como Bento XVI, sem dúvida, é uma exceção. Mas João XXIII não era um teólogo de ofício. O Papa Francisco também é mais pastoral, e da Congregação para a Doutrina da Fé tem uma missão de estruturação teológica de um pontificado. Eu aprecio a experiência desse papa que veio da América Latina. Muitas vezes, eu fui para o Peru e para outros países latino-americanos. Eu conheço um pouco a situação e, especialmente, aquela pobreza absolutamente diferente da que vemos na Europa. Eu acho que esta é a grande missão do Papa Francisco: unificar o mundo, superar aquela enorme diferença entre os países europeus e norte-americanos e os países da África, da América Latina e da Ásia. Ele lembra que há apenas uma só humanidade, uma só terra, com uma responsabilidade universal. A próxima encíclica sobre a ecologia irá sublinhar essa responsabilidade global em relação ao clima global, ao acesso universal aos bens comuns.
Não é um discurso próximo da teologia da libertação? Agora que vão beatificar Dom Romero, essa teologia já possui direito de cidadania na cúpula da Igreja?
Ela nunca foi condenada. Só era preciso superar o risco de uma recuperação puramente política ou social. Mas a especificidade católica não é separar a dimensão transcendente e o mundo... Com a Encarnação, as duas dimensões estão intimamente unidas. Nós falamos de salvação integral. Nós temos uma doutrina social que se desenvolve depois de 150 anos e, na Deus caritas est, Bento XVI também recordou como a diaconia é uma ação fundamental da Igreja, tanto na sua função libertadora, quanto nas suas ênfases políticas. Os políticos não podem se limitar a ser "gerentes". Nós precisamos de uma moral da solidariedade, de uma unidade dos homens no lugar do egoísmo, do materialismo, do populismo...
A Igreja Católica foi percebida até hoje como centrada na doutrina: esse olhar está mudando?
É possível ter a impressão de que os pontificados anteriores tinham uma fixação na moral sexual e que o Papa Francisco quer voltar para a universalidade da mensagem do Evangelho. Mas a mensagem do Papa Francisco também é muito clara sobre a sexualidade humana ordenada à vontade de Deus que os criou homem e mulher. A Igreja rejeita toda visão gnóstica ou dualista que faz da sexualidade um elemento isolado da natureza humana. O papa quer ampliar a reflexão, a fim de sublinhar que a missão da Igreja é dar esperança a todos os homens.
Esse é justamente o tema da próxima assembleia do Sínodo sobre a "missão da família na Igreja e no mundo". Será possível uma síntese entre as visões muito diferentes que se opuseram na assembleia passada?
Como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, eu tenho a responsabilidade da unidade na fé. Eu não posso tomar partido. Mas as coisas estão claras: nós temos as palavras de Jesus sobre o casamento e a sua interpretação autêntica ao longo da história da Igreja – os concílios de Florença e de Trento, a síntese feita pela Gaudium et spes e todo o magistério posterior... Teologicamente, tudo está muito claro. Nós estamos diante da secularização do casamento com a separação do casamento religioso e do pacto civil. Assim, nós perdemos os elementos constitutivos do casamento como sacramento e como instituição natural. A mensagem da Igreja sobre o casamento vai de encontro a essa secularização. Nós devemos reencontrar os fundamentos naturais do casamento e sublinhar para os batizados a sacramentalidade do casamento como um meio para que a graça irrigue os esposos e toda a família.
As Conferências Episcopais poderão ter mais liberdade sobre esses assuntos?
É preciso distinguir dois níveis: a dogmática e a organização concreta. Jesus instituiu os Apóstolos com Pedro como princípio da unidade da fé da Igreja e da sua comunhão sacramental. É uma instituição de direito divino. Além disso, nós temos estruturas canônicas que evoluem segundo as circunstâncias. As Conferências Episcopais são uma expressão da colegialidade dos bispos no nível de um país, de uma cultura ou de uma língua, mas é uma organização prática. A Igreja Católica existe como Igreja universal, na comunhão de todos os bispos em união e sob a égide do papa. Ela também existe nas Igrejas locais. Mas a Igreja local não é a Igreja da França ou da Alemanha: é a Igreja de Paris, de Toulouse... São as dioceses. A ideia de uma Igreja nacional seria totalmente herética. Uma autonomia na fé é impossível! Jesus Cristo é o salvador de todos, o unificador de todos os homens.
São possíveis mudanças disciplinares sem tocar na doutrina?
A disciplina e a pastoral devem agir em harmonia com a doutrina. Esta não é uma teoria platônica que poderia ser corrigida pela prática, mas a expressão da verdade revelada em Jesus Cristo.
Sobre a questão dos divorciados em segunda união, podemos imaginar, depois de um caminho de penitência, o reconhecimento de uma segunda união que não seria de caráter sacramental?
É impossível ter duas esposas! Se a primeira união é válida, não é possível contrair uma segunda ao mesmo tempo. Um caminho de penitência é possível, mas não uma segunda união. A única possibilidade é voltar para a primeira união legítima ou viver a segunda união como irmão e irmã: essa é a posição da Igreja, de acordo com a vontade de Jesus. Eu acrescento que sempre é possível tentar obter uma declaração de nulidade perante um tribunal eclesiástico.
Para o senhor, portanto, a solução passa por uma suavização das regras canônicas?
Bento XVI já tinha feito essa demanda. Infelizmente, para um certo número de católicos, a celebração do casamento nada mais é do que um rito folclórico; para outros, ela tem um sentido sacramental. Cabe ao tribunal da Igreja provar a verdade ou não do sacramento. O direito canônico pode se adaptar às situações concretas.
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"A ideia de uma Igreja nacional é totalmente herética. A autonomia na fé é impossível.'' Entrevista com Gerhard Ludwig Müller - Instituto Humanitas Unisinos - IHU