10 Abril 2015
“Que alimentos (não) estamos comendo?” Essa é a pergunta que o Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN) propõe em sua carta política, resultante do VII Encontro Nacional, que ocorreu em 2013, na cidade de Porto do Alegre (RS). O documento, construído com a participação de cerca de cem representantes de todo o Brasil, aponta para a importância em defender a comida como um patrimônio. Os motivos que levam a essa defesa estão na necessidade de enfrentar os desafios da Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (SAN). Desde 1998, o Fórum articula pessoas, organizações, redes, movimentos sociais e instituições de pesquisa na luta pelo Direito Humano à Alimentação Adequada e Saudável.
A reportagem é de Juliana Dias, Mariana Moraes e Mónica Chiffolleau, publicada pelo sítio Malagueta e reproduzida pelo portal EcoDebate, 08-04-2015.
De acordo com a integrante da Coordenação do FBSSAN, Vanessa Schottz, a questão a respeito dos “alimentos que estamos ou não comendo” levou os membros do Fórum a perceber o quanto a defesa da comida como um patrimônio é um caminho para aproximar a dimensão cultural da Segurança Alimentar e Nutricional. Isto porque a forma como o sistema alimentar está estruturado, coloca em alto risco esse patrimônio. Entre as razões enumeradas por ela estão a perda da agrobiodiversidade, da memória alimentar e da diversidade do alimento.
Com o intuito de mobilizar a sociedade em prol da preservação da biodiversidade e cultura alimentar, o FBSSAN lança a campanha Comida é Patrimônio. Os objetivos são estimular a população a repensar a relação com os alimentos e lutar por um sistema alimentar mais justo, equitativo, saudável, sustentável e solidário. Assim, o Fórum busca valorizar a identidade alimentar, presente nas ricas regionalidades culinárias do país, bem como nas dimensões sociais, culturais, econômicas e políticas. “As lutas cotidianas que travamos pela soberania e segurança alimentar e nutricional estão diretamente relacionadas com o que comemos e com o que as gerações futuras irão comer”, explica Vanessa.
A campanha pretende provocar essa reflexão a partir de quatro temas:
• Comida é bem material e imaterial
• Comida é identidade, memória e afeto
• Comida é dialogo de saberes
• Modos de viver, produzir e comer
Nos próximos meses, o Fórum irá compartilhar em sua página no Facebook uma série de 20 cartazetes chamados de “pensamento-pimenta” com frases de impacto sobre o que representa comer hoje. O conteúdo foi selecionado a partir de pensamentos de mulheres e homens de diversas áreas de conhecimento, entre as quais, antropologia, sociologia, nutrição, gastronomia, agricultura, artes e manifestações de organizações sociais sobre a cultura alimentar. Além dos cartazetes digitais, serão apresentadas matérias e entrevistas a fim de proporcionar amplo debate sobre os temas propostos. O público poderá participar respondendo às perguntas: “que alimentos (não) estamos comendo?” e “Quais alimentos devemos preservar?”. Podem ser enviadas em forma de textos, fotos e vídeos para o e-mail Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo. ou por mensagem para o Facebook. As respostas mais criativas serão integradas à campanha. Além das redes sociais do FBSSAN, a mobilização ocorrerá nos sites das instituições parceiras.
Comida é mais que nutriente
Em todo o Brasil, existem famílias agricultoras que estão envolvidas com a conservação da nossa biodiversidade e a valorização dos alimentos regionais. A urgência em defender o patrimônio alimentar brasileiro encontra apoio nas organizações e movimentos sociais que lutam para preservação desses bens, além das políticas públicas de salvaguarda adotadas desde a década de 90.
“Precisamos conhecer e valorizar essas experiências”, sinaliza Vanessa. A Associação Slow Food, por exemplo, possui um catálogo internacional chamado Arca do Gosto, que documenta e divulga alimentos que estão em risco de extinção. No país, já foram catalogados 28 alimentos tradicionais que devem ser preservados. Entre eles, estão o arroz vermelho do Vale do Piancó, na Paraíba; a cagaita (fruta do Bioma Cerrado) do Caxambu, em Pirenópolis (GO); a bijajica (bolo cozido no vapor com massa de mandioca, amendoim e açúcar) do litoral de Santa Catarina; e o néctar das abelhas nativas dos índios Sateré-Mawé, no Amazonas. Com a preservação, valorização e divulgação, é possível assegurar modos de viver, culturas, tradições, economias locais, saberes, e a biodiversidade nacional.
O modo de comer atual é marcado pela padronização do gosto, com grande oferta de alimentos artificiais (feitos à base de químicos, corantes e acidulantes), envenenados por agrotóxicos e transgênicos, prontos para o consumo. Hoje, os hábitos são construídos nas agências de publicidade e marketing das indústrias alimentícias. A assessora da OnG FASE e presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea), Maria Emília Pacheco, reforça que os alimentos artesanais são prejudicados por legislações sanitárias que usam parâmetros para uma produção industrial.
A comida vai além do nutriente e aspectos sanitários que conferem segurança para o consumidor. É fundamental reconhecer a necessidade de adotar uma concepção de qualidade baseada no respeito às práticas alimentares regionais. As atuais normas sanitárias padronizam a produção, descaracterizando os conhecimentos tradicionais, símbolos da cultura e história de um povo.“Precisamos rever essas normas, que são verdadeiros instrumentos autoritários”, afirma Maria Emília. O Fórum se une a outros parceiros para reivindicar a revisão dessas normas, conforme a “Carta Aberta à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), em favor da produção artesana, familiar e comunitária e da alimentação saudável”, que pode ser lida aqui.
Com a campanha, espera-se ampliar os olhares e o diálogo em torno do alimento e suas representações. Assim, é possível garantir maior autonomia às famílias, no cuidado da saúde e na redução da dependência da indústria alimentícia e farmacêutica. “Lutar por normas sanitárias mais inclusivas e adequadas à produção de base familiar e artesanal, contra o uso de sementes transgênicas e contra a concentração do mercado é defender um de nossos maiores patrimônios. Precisamos nos mobilizar”, alerta Vanessa.
Nesse sentido, a carta política do FBSSAN aponta que a agroecologia tem se firmado como o melhor meio de produção de alimentos saudáveis. Esse modelo agrícola respeita e promove a diversidade social, biológica e cultural. Com isso, “traz benefícios para toda sociedade e para o planeta, garantindo o acesso a esses alimentos por gerações futuras”, informa o documento. Maria Emília acrescenta que a agricultura familiar agroecológica é um caminho de resistência porque traz o princípio da diversificação alimentar para romper com a monotonia das dietas. “Precisamos apoiar essas experiências que não usam agrotóxicos, que realizam o manejo sustentável dos bens da natureza e que resgatam as sementes crioulas (nativas). É urgente valorizar as diferentes tradições culinárias e ter em conta o valor cultural da comida, pois corremos o risco de perder a memória alimentar do país. Assegurar o direito humano à alimentação também implica nisso, em garantir o direito ao gosto”, afirma.
Em defesa do patrimônio alimentar
É fundamental enfrentar as contradições do sistema alimentar moderno para preservar o que se come, quando se come, com quem se come. O Fórum, por meio de sua carta política, questiona a estrutura desse sistema por apresentar um modelo agrícola baseado na monocultura de grande escala, com elevado uso de agrotóxicos. Existe ainda a questão do controle exercido por um reduzido número de corporações desde a produção até o varejo. No campo da saúde, nota-se padrões de consumo prejudiciais estimulados por uma publicidade de alimentos dirigida ao público infanto-juvenil, como se verifica a partir dos altos índices de doenças crônicas, incluindo o aumento do sobrepeso e da obesidade em crianças e adultos. Tais fatores associados constituem uma crise alimentar global que ameaça a soberania e segurança alimentar dos povos, colocando em risco a agrobiodiversidade.
A campanha Comida é Patrimônio pretende estimular a reflexão entre comer e preservar e, por isso mesmo, contribuir para valorizar a sabedoria popular e as culturas alimentares regionais tecidas pelas gerações. Este é um convite para disseminar e mobilizar, por meio das redes sociais, a importância da comida como bem material e imaterial; afeto, identidade e memória; diálogo de saberes e sabores; e os modos de viver, produzir, e comer.
Para participar da campanha, acesse a página no Facebook, ou use as etiquetas #comidaepatrimonio e #pensamentopimenta.
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Comida, patrimônio ameaçado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU