Por: Cesar Sanson | 30 Março 2015
A recessão e o ajuste fiscal desfazem o sonho emergente do Brasil.
A reportagem é de André Barrocal e publicada por CartaCapital, 29-03-2015.
Rafael Costabile tem 27 anos e não bateu panelas ou vaiou Dilma Rousseff durante seu pronunciamento em rede nacional de televisão no domingo 8, mas cogitava engrossar os protestos contra a presidenta uma semana depois, no dia 15. Em janeiro de 2014, Costabile foi demitido de uma fábrica de autopeças no ABC Paulista em consequência da crise no setor automotivo. Tentou a sorte em uma empresa do mesmo ramo montada por um parente, o negócio naufragou e hoje ele sobrevive de fretes com o caminhão emprestado por um tio. Não fosse o dinheiro enviado de Teresópolis, Rio de Janeiro, pelos pais, teria de largar a faculdade iniciada em 2013. “A situação está muito ruim há algum tempo, mas o governo tem mascarado a realidade”, acredita.
Talvez seja exagero acusar o governo de encobrir a verdade. O tipo de mal-estar manifestado por Costabile, provavelmente não. Aglomeram-se os indícios de que a mobilidade social assistida na era Lula, personificada na ascensão da classe C, erroneamente chamada de “nova classe média”, está sob risco. Pior: após anos de inclusão contínua nos diversos estratos sociais, alguns milhões de brasileiros saboreiam perda de status. A situação provoca um desencanto crescente com o governo Dilma Rousseff. A irritação se expressa menos no “panelaço” do domingo 8 ou nas convocatórias para a marcha do dia 15. Está nos levantamentos sobre a popularidade da presidenta. Pesquisas recentes não divulgadas revelam um quadro preocupante para o Palácio do Planalto: a desaprovação estaria perto de 70%, enquanto as menções de bom e ótimo mal passariam dos 10%.
As pistas de um princípio de retrocesso social estão na última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Professor aposentado do Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho da Unicamp, Waldir Quadros dissecou a Pnad de 2014, com dados de 2013, e constatou um leve empobrecimento, inédito desde 2004. Ele dividiu a população em cinco estratos: miseráveis (renda mensal até 416 reais), massa trabalhadora (de 416 a 832), baixa classe média (de 832 a 2.080), média classe média (de 2.080 a 4.160) e alta classe média (acima de 4.160). Por esse critério, houve um efeito cascata de 2012 para 2013. Os dois estratos superiores desidrataram, o que inchou a baixa classe média. E a massa trabalhadora encolheu, o que levou ao aumento da camada de miseráveis. No total, 4,7 milhões de brasileiros experimentaram o declínio, obra de um PIB pífio e inflação perto dos 7% anuais. “A paralisia econômica de 2014 deve ter causado novos estragos. E com a recessão de 2015, a situação tende a piorar”, afirma Quadros.
Especializado nos emergentes, Renato Meirelles, do Data Popular, não vê por ora encolhimento da classe C. Diante de pesquisas recentes, acredita, porém, que a mobilidade social da década passada acabou. Evidência: hoje, 42% dos trabalhadores da classe C fazem “bico” para complementar a renda. O pessimismo da turma com o futuro do País é outro indicativo. Teme-se a alta da inflação (79%), estagnação salarial (49%) e dificuldades para arrumar emprego (55%). “A questão-chave é o mercado de trabalho”, diz Meirelles. “Foi o emprego que promoveu a ascensão da classe D para a classe C.” Base, diga-se, para o sucesso eleitoral do lulismo e do PT nas últimas três eleições presidenciais.
O início deste ano não anda bem no campo da “questão-chave”. Em janeiro, foram fechadas 81 mil vagas com carteira assinada, segundo o Ministério do Trabalho. Bilhete azul no primeiro mês do ano é normal, após as contratações temporárias do período natalino. O preocupante foi a intensidade do corte. Foi o pior janeiro desde 2009. A taxa oficial de desemprego, calculada a partir de seis regiões metropolitanas, saltou de 4,3%, em dezembro, para 5,3%. Um levantamento mais abrangente, também feito pelo IBGE, identificou o mesmo rumo. Alta de 6,5% para 6,8%.
A perda de fôlego na abertura de vagas foi visível em 2014. A criação de 396 mil postos com carteira assinada foi a menor desde 1998. Não era de se esperar que seguisse em ritmo acelerado, pois o País vive uma espécie de pleno emprego. O problema é a estagnação virar encolhimento. Um estudo recém-divulgado pela Organização Internacional do Trabalho prevê que o Brasil terá um desemprego ligeiramente crescente neste e no próximo ano, ao contrário da tendência mundial e dos países mais ricos. Clemente Lúcio Ganz, diretor do Dieese, também crê que o desemprego subirá. Calcula uma taxa entre 8% e 10% neste ano, uma alta e tanto. E avisa: “Quem se desacostumou vai ver a dificuldade de negociar aumento de salário com aumento de desemprego e queda da produção”.
O nipo-brasileiro Alcídio Shiniti Asada torce para a situação no exterior ser mesmo melhor. Asada foi por 21 anos operário em indústrias japonesas. Em 2011, diante da crise global e dos efeitos do tsunami que afundou ainda mais a economia do Japão, retornou ao Brasil. Primeiro plantou hortaliças no interior do Maranhão, depois montou uma oficina de costura com parentes em Goiânia. Cansado de trabalhar muito e ganhar pouco, decidiu fazer o caminho inverso. “Aumentaram os preços de materiais, de energia e de manutenção das máquinas, mas meus clientes se recusam a reajustar o preço das peças que faço. No fim das contas, cada sócio tira mil reais por mês. Mesmo no auge da crise, vivia bem melhor no Japão.”
O engenheiro civil Vinícius Silva Fernandes, de 24 anos, acaba de voltar ao mercado de trabalho após ser demitido. Ganhará metade do salário anterior. Em janeiro, foi mandado embora em companhia de mais 20 colegas de escritório por uma construtora de Goiânia especializada em imóveis de classe média e do programa Minha Casa Minha Vida. Dos 17 projetos previstos para 2015, dez foram adiados. Um cenário que a atual política econômica, incluídos os juros mais altos, só agrava. “O pessoal pode ficar decepcionado com as taxas de financiamento. Além disso, nem toda construtora tem caixa. A minha antiga empresa captava recursos em bancos, mas o custo dos empréstimos aumentou.”
Nas fábricas, de maneira geral, 2014 já foi de enxugamento. Entre admitidos e dispensados, a força de trabalho na indústria de transformação reduziu-se em 164 mil funcionários, diz a Fiesp. Apesar das dificuldades não tão recentes do setor, não se registravam mais demissões do que contratações desde 2002. A pergunta relevante é se a deterioração do parque industrial, afetado pela facilidade de importar no período do dólar barato e pela perda de mercado externo por conta da crise internacional, atingiu seu ápice ou se dias piores virão.
Em janeiro, a indústria voltou a contratar, e o dólar na casa dos 3 reais tende a ajudar, desde que a cotação se mantenha neste nível ou acima por um longo período. A confiança dos industriais anda, porém, próxima dos rodapés. Após uma recente reunião em São Paulo de grandes empresários do setor com o ministro do Desenvolvimento, Armando Monteiro, a Confederação Nacional da Indústria divulgou um comunicado de forte teor. “A sobrevivência da indústria está ameaçada”, resume a nota. A entidade aponta “extrema preocupação com as perspectivas de recessão na economia e seus reflexos sobre o investimento e o nível de emprego.” E cobra Brasília. O ajuste fiscal precisa ser acompanhado de medidas em favor da retomada do crescimento.
A perspectiva é um pouco melhor no comércio, onde também é possível captar sinais de breque ou recuo na mobilidade social. O setor viveu um boom com a expansão da classe C na década passada. As vendas anuais subiam a taxas chinesas, entre 9% e 10%. No ano passado, tudo mudou. O comércio teve a menor geração de empregos em dez anos, 184 mil vagas. As vendas aumentaram só 2,2%. Para 2015, não há ímpeto contratante, e a expectativa é de estagnação do faturamento, diz o economista-chefe da Confederação Nacional do Comércio, Carlos Thadeu de Freitas. Motivo: juros em alta, redução do emprego e estagnação da massa salarial. “Este será um ano de transição, podemos até ter a primeira queda nas vendas desde 2003”. Não se vislumbra uma volta aos anos dourados nem se o PIB acelerar. Os consumidores já satisfizeram suas vontades imediatas (celular, tevê, geladeira etc.), e é normal que gastem de outra forma. “Caso a inflação e os juros caiam em 2016, poderemos voltar a nos expandir, mas será um crescimento vegetativo.”
Uma das estrelas do varejo, o Magazine Luiza sentiu na Bolsa de Valores o impacto do ajuste fiscal. O anúncio da suspensão temporária do programa Minha Casa Melhor, de juro barato para a compra de eletrodomésticos, derrubou o valor das ações da empresa. Varejista mais modesto, Christos Nicolas vende roupas masculinas em Brasília e tem sofrido diretamente. Faturou 20% a menos no Natal e 30% neste início de ano. Na mesma calçada de seu estabelecimento, há cinco lojas com placas de aluguel e venda de ponto. Várias razões pertinentes à situação da capital federal engrossam os motivos do marasmo dos negócios, entre elas o atraso no pagamento de salário dos servidores públicos locais e o valor alto dos imóveis. Mas Nicolas aponta causas nacionais, a começar pelos juros altos. “O cenário é desolador.”
O ajuste fiscal ameaça ainda um bem-sucedido programa indutor de mobilidade social nos últimos cinco anos. O financiamento a estudantes universitários, Fies, beneficia 1,9 milhão de alunos, dos quais 91% oriundos de famílias com renda per capita de até dois salários mínimos. O programa cresceu tanto nos anos Dilma que a partir de dezembro o Ministério da Educação passou a adotar medidas que, na prática, limitam o acesso. Em 2010, havia 76 mil alunos e financiamento de 1 bilhão de reais. No fim de 2014, o dispêndio era de 14 bilhões de reais. De 2015 em diante, o candidato ao Fies precisará tirar nota mínima de 450 pontos no Enem, a exemplo do que ocorre no ProUni. As faculdades dispostas a admiti-lo não poderão corrigir a mensalidade acima da inflação de 2014 e só vão receber do governo 8 pagamentos mensais, em vez de 12.
A reformulação nasceu de uma desconfiança do ministério: o Fies teria sido capturado por faculdades mais interessadas em faturar do que em ensinar. Participar do programa é um ótimo negócio. Um dinheiro fácil e garantido, o que talvez explique o motivo, nos últimos dois anos, de a empresa mais valorizada na Bolsa de Valores ser do ramo educacional. O ajuste fiscal foi, porém, decisivo para a implementação imediata das novas regras. A paulista Bianca Galdino, de 18 anos, entende o significado. Filha de um servidor público e uma recepcionista, sempre estudou em escola pública. Trabalhou em uma churrascaria em 2014 para complementar a renda da família, prestou vestibular para veterinária em 2015 e passou. Graças ao novo Fies, sofreu para habilitar-se. No fim das contas, conseguiu.
A ampliação do número de universitários por meio de programas como o Fies e o Prouni foi uma das razões para o desemprego ter caído em 2014, apesar da paralisia do PIB. Mais alunos optaram por não trabalhar e só estudar, decisão facilitada pela folga no orçamento da família. Se os pais perderem o emprego agora, talvez os filhos tenham de buscar uma ocupação, o que afetaria o mercado de trabalho. Uma hipótese preocupante, segundo Marcio Pochmann, ex-presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada.
A estagnação em 2014 e a recessão em 2015, explica Pochmann, encerram uma “trajetória sem futuro iniciada em 2011”, primeiro ano do governo Dilma. O País crescera 7,5% em 2010, e o Executivo resolveu reduzir a marcha, para conter a inflação. Exagerou, ao cortar mais de 50 bilhões de reais do Orçamento. E deu azar por ter tomado a medida no momento em que a crise global sofria um refluxo. Dali em diante, diz, a desaceleração econômica desanimou os empresários e segurou a arrecadação. Em todo o mandato, Dilma comandou o caixa estatal de modo defensivo, a fim de salvar empregos e reduzir a pobreza. Resultado: as contas públicas chegaram combalidas a 2014, com um déficit recorde de 0,6% do PIB. “A coalizão política que chegou ao poder em 2003 com um trabalhador, Lula, e um industrial, José Alencar, esfacelou-se”, opina o economista. “A coalizão do Plano Real, liderada pelo rentismo e pelo PSDB, tenta se impor desde a eleição graças a isso.”
Com os cofres públicos esvaziados, a esperança do Palácio do Planalto para reacender a economia são os investimentos privados e as exportações. Medidas de incentivo às vendas externas logo serão anunciadas. Para estimular os investimentos, o governo promete novas concessões de infraestrutura. Há uma série de projetos em estradas, ferrovias, aeroportos, portos e hidrovias, e a ideia é começar os leilões ainda neste semestre. O Planalto sonha em atrair nacos da montanha de dinheiro despejado no mercado pelos governos de alguns países ricos. Em especial, os 60 bilhões de euros injetados por mês na União Europeia e os 60 bilhões de dólares mensais do Japão. As investigações da Lava Jato, que atingem as maiores empreiteiras do País, atrapalham, no entanto, esses planos.
Reside nessa estratégia a obsessão do governo pelo ajuste fiscal. É com a austeridade que Brasília espera convencer as agências de rating a não reduzir as notas do País e manter o “grau de investimento”. Sem o selo das agências será difícil seduzir os estrangeiros. Certos fundos de pensão internacionais são proibidos por estatuto de aplicar em lugares sem “grau de investimento”. Alguma sinalização das agências sairá em breve. Se for negativa, o governo sofrerá um baque em um ambiente político já bastante tenso.
A preservação do rating, na visão de uma autoridade, é uma precondição para o capital estrangeiro continuar a fluir para o Brasil, mas não garante o sucesso das novas concessões, justamente por causa da situação das maiores construtoras do País. Só um acordo de leniência entre as empresas e a Controladoria-Geral da União seria capaz de colocá-las novamente em condições de participar dos leilões. Mas o acordo, diz a fonte, tem sido criminalizado pela mídia e o Ministério Público Federal.
A obsessão pelo “grau de investimento” parece fazer o Ministério da Fazenda sentir-se com “carta branca” para implementar um ajuste fiscal “apressado” e “fácil”, opina o economista e consultor Antonio Corrêa de Lacerda, da PUC de São Paulo. Por isso, analisa, o governo optou por restringir o seguro-desemprego e o abono salarial sem pensar em uma maneira de tributar os mais ricos. Pior, afirma, o Banco Central não para de subir a taxa básica de juros, o que eleva o peso da dívida pública. “A política monetária pode comprometer os resultados almejados na política fiscal.”
Nos últimos dias, Dilma e seus principais ministros empenham-se em convencer a plateia desconfiada de que até o fim do ano a economia voltará a crescer. O mergulho de agora seria uma “travessia”. A confirmação do prognóstico parece vital para a popularidade da presidenta, a curto prazo, e do lulismo, a longo. Economia em desordem afeta a popularidade governamental em qualquer lugar, lembra Marcos Coimbra, diretor do Vox Populi. O problema específico da presidenta foi seguir um rumo em choque com o prometido na eleição. “Ela fez uma campanha centrada na ideia de que algumas coisas eram intocáveis, mas o governo agora mostra que são tocáveis”, diz ele. “O panelaço não está nem aí para esse descompasso, mas aqueles que votaram nela, apesar do que dizia a Globo, estão.”
Após uma “aposta de risco”, Dilma não tem mais gordura para queimar. “Caso os resultados apareçam até 2017”, diz Coimbra, “não haverá perda de base política e social, e o PT estará pronto para ganhar mais uma eleição.” Se ela terá tempo e se será bem-sucedida é a grande incógnita que move, ou melhor, paralisa o Brasil neste início de março.
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