24 Março 2015
Missionário, pregador, conselheiro político, embaixador e visionário, o padre Antônio Vieira (1608-1697) deixou uma obra abrangente entre sermões, cartas, poesias, textos para o teatro e escritos políticos, agora reunida numa coleção completa de 30 volumes que a Edições Loyola publica no Brasil associada ao Círculo de Leitores de Portugal. Até agora já foram lançados dez livros. Os 20 volumes restantes, segundo o professor de Filosofia e editor Marcelo Perine, da Loyola, deverão chegar às livrarias até o fim do ano.
A reportagem e a entrevista é de Antonio Gonçalves Filho, publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 21-03-2015.
Concluída em dezembro passado, em Portugal, sob coordenação dos historiadores José Eduardo Franco e Pedro Calafate, a obra Padre Antônio Vieira: Obra completa, Coleção de 30 livros. Edições Loyola,, foi doada ao papa Francisco e está sendo considerada o maior projeto da história editorial portuguesa. As razões são inúmeras. Ela exigiu anos de trabalho de 52 especialistas portugueses e brasileiros, uma equipe de tradutores de latim e um investimento superior a 1 milhão (metade garantida pela Santa Casa de Misericórdia de Lisboa, que tem o monopólio da loteria em Portugal).
Organizada por temas, a coleção reúne não só os escritos de Vieira já publicados como vários manuscritos inéditos - correspondentes a um quarto das 15 mil páginas da coleção, segundo o coordenador José Eduardo Franco, que destaca a atualidade desses textos. Escritos por um destemido religioso, eles defendem os índios, condenam a violência dos colonos no Brasil, criticam o antissemitismo e desafiam os poderosos. Por causa desses polêmicos escritos, Vieira foi alvo de uma perseguição sem tréguas do Tribunal do Santo Ofício.
Chamado pelo poeta Fernando Pessoa de “imperador da língua portuguesa”, Vieira bem merece o título de profeta dos tempos modernos. Prova disso é sua obra magna, A Chave dos Profetas, um tratado teológico e político em dois volumes iniciado quando Vieira cumpria pena de reclusão determinada pela Inquisição em 1663, da qual escapou por indulto real. O tratado só foi concluído quando o padre estava à beira da morte.
O historiador José Eduardo Franco, citando seu colega francês Raymond Cantel, afirma que a ideia do Quinto Império defendida por Vieira nesse texto utópico foi precursora da Organização das Nações Unidas (ONU) erguida no século 20. É, enfim, a Cidade de Deus de Vieira, para fazer justiça a uma obra que não é um aggiornamento de Agostinho, mas celebra o amor universal e a destinação última do homem segundo o fundamento cristológico.
Esse dom profético de Vieira é comum a todos os grandes escritores, observa a escritora portuguesa Inês Pedrosa, que compara Vieira a Dostoievski. A exemplo do escritor russo, a injustiça e a corrupção foram dois temas martelados nos sermões do padre que, afirmando seus dotes de oratória, se tornou um celebrado pregador régio, conselheiro de D. João IV, participando de missões diplomáticas. Os sermões ocupam exatamente 15 volumes, ou seja, metade da coleção.
Eles são tão atemporais que podem ser lidos hoje sem que se desconfie que os sermões se dirigem ao público do século 17. Foi essa atualidade de Vieira que levou dois cineastas de vanguarda, o português Manoel de Oliveira e o brasileiro Julio Bressane, a adaptar para o cinema, cada um a seu modo, a obra desse escritor avesso ao gongorismo e ao discurso obscuro vigente no século 17. Vieira preferia um estilo direto. O “tal estilo culto” da época, segundo Vieira, “era boçal”. O padre recomendava: um sermão tinha de ser simples - monotemático, de preferência.
Manoel de Oliveira diz que não fez uma reconstituição da vida de Vieira em seu filme Palavra e Utopia, mas uma “evocação”. De fato, Lima Duarte, no papel do jesuíta, percorre os lugares por onde o pregador passou, mas não há a preocupação de fidelidade histórica. O mesmo pode ser dito a respeito da obra de Bressane, Os Sermões (1989), “transcriação” cubista em que entram fragmentos dos filmes mudos do francês Georges Méliès e do maior clássico de Orson Welles, Cidadão Kane, em que o magnata, no lugar de mover os lábios e dizer “rosebud”, murmura o nome de Vieira na hora da morte. Poderes de absolvição ele tinha. Em 1654, depois de proferir o sermão de Santo Antonio aos Peixes, em São Luiz do Maranhão, Vieira embarcou para Lisboa e foi vítima de um naufrágio. Após absolver a todos, Vieira rezou e o navio voltou à posição original, embora tenha sido saqueado por corsários, que, no entanto, pouparam os náufragos.
O sermão dos peixes é alegórico - dirigido aos mesmos, não aos homens, que parecem refratários a sermões que exaltam as qualidades dos primeiros, menos vorazes que os últimos, segundo Vieira. Em registro para o Museu Santo Antonio de Lisboa, feito em março do ano passado, a cantora Maria Bethânia eleva a voz ao perguntar “qual será ou qual pode ser a causa dessa corrupção” que afeta a terra que não se deixa salgar, carregando na atualidade política do sermão. Sorri quando Vieira evoca o elogio de Aristóteles aos peixes, os únicos animais que não se deixam domesticar. Afinal, quanto mais longe dos homens, melhor. “Quem quer mais do que lhe convém, perde o que quer e o que tem”, conclui o sermão. Não é mesmo um conselho bom para tempos de operação Lava Jato?
Eis a entrevista.
Há ainda inéditos de Vieira?
Cerca de um terço da coleção é constituída por documentos inéditos ou parcialmente inéditos. Fechada a edição, nenhum outro inédito foi encontrado. Mas não termina com esta publicação o nosso intento de pesquisa continuada dos escritos de Vieira. Durante a realização das próximas fases do projeto ‘Vieira Global’ com a elaboração do Dicionário do Padre Antônio Vieira e das traduções da sua Obra Seleta, será nossa obrigação continuarmos a investigação.
O senhor poderia dizer como era o teatro e a poesia de Vieira?
O teatro de Vieira foi composto para efeitos pedagógicos quando ele desempenhou as funções de professor no Brasil. Era um teatro para formar o caráter dos jovens estudantes. A poesia barroca de Vieira trata de temas devocionais, celebra a amizade, canta as virtudes e as grandezas de figuras do seu tempo que pretendia exaltar.
A atualidade de Vieira é assustadora. O senhor atribui isso aos dons proféticos do padre?
Vieira era um gênio e um visionário. A sua capacidade de entender os problemas e propor soluções avançadas fizeram dele um precursor. Estava de algum modo demasiado avançado para o seu tempo. Por isso, muitos não o compreenderam. Devido ao progresso mental e cultural, hoje estamos mais preparados para compreender Vieira.
A Chave dos Profetas é a obra magna de Vieira. Qual é a sua visão sobre ela?
Preocupado que estava com as fraturas que se tinham aberto no seio da Cristandade europeia com os movimentos da Reforma e da Contrarreforma e das subsequentes guerras religiosas dos 30 anos, com o aumento da intolerância no seio do catolicismo, nomeadamente com a consolidação do poder da Inquisição e a perseguição aos judeus, Vieira quis propor uma via alternativa, quis revelar e afirmar que havia uma promessa de um mundo novo inscrita na genuína herança espiritual do cristianismo.
A posição de Vieira sobre os índios e a escravatura era bastante progressista para a época. Qual é o aspecto mais marcante dessa relação com os nativos?
Ele ousa comparar o sacrifício dos escravos ao supremo sacrifício de Cristo no calvário, exarou uma crítica forte às condições sub-humanas a que estavam votadas as populações escravas. Fez da escravatura uma alegoria atualizada do calvário. Ousa comparar as chagas dos escravos às chagas de Cristo ou mesmo as chicotadas dadas aos escravos às chicotadas dadas pelos soldados romanos a Cristo.
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Obra integral do padre Antônio Vieira é lançada em 30 volumes com textos inéditos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU