13 Março 2015
A Igreja Católica Romana pode mudar? Se sim, como? E o que está em cima da mesa: tradições, ritos, doutrina ou nenhuma das alternativas anteriores?
A reportagem é de David Gibson, publicada no sítio Religion News Service, 12-03-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Tais questões fundamentais estão no coração da identidade católica e são as mesmas questões que o Papa Francisco levantou quase desde o momento em que foi eleito há dois anos, um candidato azarão que se tornou o primeiro pontífice da América Latina.
Quando evitou o Palácio Apostólico por um apartamento modesto ou telefonou diretamente para pessoas que escreveram para ele com problemas, a abordagem humilde de Francisco tornou-o querido para as massas. No entanto, ele também surpreendeu – talvez atordoou – os católicos ao encorajar o debate aberto, especialmente sobre os ensinamentos e as práticas da Igreja que há muito tempo haviam sido consideradas fora dos limites.
"Uma condição geral de base é esta: falar claramente. Que ninguém diga: 'Isto não se pode dizer; ele vai pensar isto ou aquilo de mim'", disse Francisco aos bispos de todo o mundo no ano passado em uma cúpula vaticana de alto nível sobre questões enfrentadas pela família moderna. "É preciso dizer tudo o que se sente" com franqueza.
Esse tipo de abertura e de conversa direta também é central para o enorme apelo público de Francisco. Mas a glasnost de Francisco – tão revolucionária no contexto da recente história do papado – também provocou uma feroz oposição da direita católica, com alguns prelados e especialistas de alto perfil prometendo impedir as reformas e resistir a quaisquer mudanças na prática pastoral.
A intensidade da oposição levanta uma questão básica no marco de dois anos de Francisco: a sua campanha de reforma pode durar mais do que o seu papado?
Ao contrário da resistência a reformas dentro da burocracia romana da Igreja, a reação contra qualquer coisa que toque a doutrina é mais ampla, mais profunda e mais visceral, porque corta até a medula do catolicismo.
De fato, as críticas são tão duras que o padre Antonio Spadaro, um jesuíta italiano que é próximo de Francisco, disse que vê a "angústia" dos inimigos do papa "mais como um problema psicológico" do que uma questão de doutrina.
A ênfase de Francisco na misericórdia "provoca em alguns católicos um pânico, o medo de uma falta de certeza que me atordoa", disse Spadaro, editor da respeitada revista La Civiltà Cattolica.
A oposição foi sendo filtrada ao longo do primeiro ano de Francisco, mas transbordou nessa cúpula vaticana sobre a família. Ela continuou inabalável desde então e provavelmente vai aumentar até a visita do papa aos Estados Unidos em setembro e depois na segunda rodada do Sínodo sobre a família, que terá mais debates – e, possivelmente, ação – sobre questões de divórcio, novo casamento, coabitação, assim como o lugar dos católicos LGBT.
"É muito cedo para saber" se a reforma de Francisco passou o ponto de não retorno, admitiu uma autoridade vaticana, que falou sob a condição de anonimato devido à sensibilidade das questões. "Há sempre um perigo quando tantas coisas são trazidas de uma só vez. Há sempre uma chance de que o pêndulo balance para trás."
Essa é uma preocupação especialmente premente para os aliados de Francisco, já que o pontífice tem 78 anos e tem dito frequentemente que não espera ter um longo pontificado.
Então, o que pode fazer com que as coisas não voltem a ser como eram por tanto tempo? Pois, como os romanos gostam de dizer: "O que um papa pode fazer, outro papa pode desfazer".
Colegialidade
Um fator em favor de Francisco pode ser o sistema que ele criou para fomentar a abertura e o debate. Francisco reavivou e ampliou o uso dos Sínodos, os encontros periódicos de bispos que começaram nos anos 1970, para criar uma Igreja colegial. Ao contrário, eles foram se tornando confabulações sem foco que carimbavam conclusões preordenadas pelas autoridades da Cúria Romana.
Francisco também está reunindo o Colégio dos Cardeais em uma base regular, usando-os como uma caixa de ressonância, e criou um Conselho dos Cardeais, de nove membros, para assessorá-lo em reuniões realizadas a cada dois meses em Roma.
"Seu princípio é de que ele deve pôr em marcha um processo que é irreversível", disse o cardeal Walter Kasper, um teólogo alemão muito conhecido e ex-autoridade vaticana que é próximo de Francisco.
Kasper, sentado no seu apartamento do outro lado da rua do Vaticano, disse que não espera um mandato longo para Francisco e acha que o papa precisa de mais alguns anos para dar uma chance de que as suas iniciativas perdurem. Mas Kasper acredita que o sistema para promover a colaboração entre os bispos "já está feito, e nenhum sucessor pode voltar atrás".
"É claro que um sucessor fará algumas coisas de uma maneira diferente. Isso é normal", disse Kasper. "Mas o processo continua."
Camaradas
Outra chave para o sucesso do programa de Francisco é nomear bispos e cardeais que pensem como ele. Como o vaticanista de longa data John Thavis escreveu nesta semana, Francisco está "trabalhando com uma hierarquia geralmente conservadora posta no seu lugar pelos seus dois antecessores".
"As instituições dependem das pessoas que preenchem os nichos, e, se nichos suficientes estão cheios de pessoas que compartilham a visão acolhedora, então esse movimento vai continuar", disse o cardeal Donald Wuerl, de Washington, um proeminente conselheiro norte-americano de Francisco, que estava em Roma no mês passado para reuniões com o papa e outros importantes homens da Igreja.
"Há muitas vozes que são muito altas (na oposição), mas eu não acho que representam a linha dominante", disse Wuerl.
Mesmo em uma instituição piramidal como a Igreja Católica, no entanto, uma virada na gestão superior leva tempo. Os papas geralmente têm que esperar que os bispos se aposentem antes de substituí-los e devem encontrar pessoas que pensam como eles para serem promovidas.
Confiança
Outro impulso potencial para a agenda de Francisco no futuro é o seu sucesso agora.
Assim como o papado de Bento XVI parecia estar condenado por uma espiral de escândalos e de crises, o legado de Francisco poderia ser impulsionado pela sua popularidade e pela sua capacidade de fazer reformas concretas e visíveis.
"Há algumas pessoas que gostariam de voltar" aos velhos tempos, disse o cardeal John Dew, da Nova Zelândia, um dos 20 novos cardeais que Francisco criou no mês passado. Mas, disse Dew, "se as coisas tivessem que retroceder, eu acho que haveria muita insatisfação e infelicidade".
Entre os desapontados, disse, haveria muitos bispos e cardeais, cujo trabalho repentinamente tornou-se muito mais fácil graças à popularidade de Francisco e, em geral, à sua abordagem livre.
"No centro disso está uma expectativa", concordou Wuerl. "Francisco criou um novo nível de expectativa para a forma como a Igreja deve fazer o seu trabalho, e eu acho que você não pode mudar isso. E ele está trabalhando muito duro para colocar as estruturas no seu devido lugar para suportar essa expectativa."
Contudo, o que talvez seja mais crítico para o sucesso de longo prazo dos esforços de Francisco é uma maior aceitação da ideia de que a Igreja – e até mesmo a doutrina – pode mudar. A história tem mostrado que a Igreja mudou em muitas ocasiões, algo que papas tradicionais como Bento XVI reconheceram.
"A grande ideia em jogo hoje é a relação entre a Igreja e a história", disse Spadaro.
"Se a história é inimiga da Igreja e inimiga de Deus, então temos que ter muito cuidado", continuou. "A história coincide com a mundanidade? Ou, por outro lado, a história é o lugar onde Deus se encarnou, onde Deus está presente, onde a Igreja e cada cristão deve tentar discernir a presença do Senhor?"
"Teologicamente", disse ele, "trata-se da Encarnação" – a crença de que Deus se fez homem na pessoa de Jesus de Nazaré. "Se alguém leva a sério a Encarnação – ou seja, que Deus fez-se parte da história –, é impossível pensar a doutrina como um código fixo que caiu do céu."
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Papa Francisco tem a história do seu lado. Mas não o tempo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU