Por: Cesar Sanson | 26 Fevereiro 2015
"Laclau e Negri divergem quanto às coordenadas da luta nas condições atuais. Se Laclau postula uma era pós-ideológica, em que a luta de classe cede à diversidade de identidades que buscam se afirmar; Negri aponta uma mutação no capitalismo determinada por uma nova forma de vida social, baseada na autonomia dos sujeitos, na colaboração transversal (...) não é que a classe tenha se dissolvido numa diversidade de 'novos movimentos', nos termos de Laclau; em realidade, a classe se reorganiza nas condições da organização social do capitalismo hoje, e é sobre esse terreno que a multidão poderá emergir — sempre no antagonismo e na ação criadora". O comentário é de Bruno Cava Rodrigues em artigo publicado no blog Quadrado dos Loucos, 25-02-2015.
Eis o artigo.
Populismos
A diferença do populismo para um discurso liberal clássico está em que, para o primeiro, o povo é algo ainda a construir-se, enquanto para os liberais o povo já está dado. No primeiro caso, a construção do povo implica a construção de uma nova representação. No segundo, cabe à representação apenas contemplar uma sociedade que lhe preexiste, já formada.
No populismo, a história da construção de um povo passa pela divisão entre um “nós” e um “eles”. Denuncia-se a falsa universalidade da ordem representativa existente, que não mais nos representa, para a seguir reclamar uma nova universalidade. Nas revoluções burguesas, foi a luta contra o ancien régime, a partir do que seria possível libertar-se da aristocracia parasitária para formar a nação e a cidadania burguesa, doravante considerada universal. Nas lutas anticoloniais, se lutava contra a metrópole e o imperialismo, em nome da unidade da libertação nacional. Com o filósofo Antonio Gramsci, a construção do povo reúne intelectuais, operários e camponeses numa consciência coletiva nacional-popular, que se liberta dos burgueses.
Já para os tecnocratas, mais ligados ao discurso liberal clássico, não haveria necessidade de construir povo algum: basta escolher as pessoas certas, adotar “ideias que funcionam” e implantar a melhor gestão para cada situação específica.
A construção do nacional-popular
No Brasil, as ideias do nacional-popular estiveram presentes na versão desenvolvimentista, em que a modernização nacional se atrela à emancipação popular mediante ações mobilizadoras, pedagógicas e organizativas. A conquista do poder não poderia ocorrer, simplesmente, com a tomada do estado, devendo passar por um laborioso alastramento cultural e ideológico de formação nacional, desde as bases. O papel dos intelectuais subdesenvolvidos, nesse projeto, consiste em liderar o processo de esclarecimento das massas, segundo um programa emancipador. Evita-se, dessa maneira, cair nalgum determinismo econômico segundo o qual bastaria industrializar o país para formar um proletariado consciente. Sem a tarefa militante de emancipação popular, a modernização invariavelmente produzirá ainda mais dominação de classe.
A teoria política mais próxima dessa promessa nacional-popular, ainda que elaborada no contexto das sociedades industrializadas das economias centrais, é a teoria gramsciana. Para Gramsci, escrevendo na primeira metade do século passado, o exercício do poder no capitalismo não se sustenta somente com coerção e medo. É preciso, sobretudo, fabricar uma legitimidade difusa que, mediante inúmeras instituições coletivas culturais, colha continuamente o consentimento da maioria. A esfera representativa em seu conjunto, formada por governos, partidos e sindicatos pode, assim, operar como se representasse o “interesse geral”, preenchendo fissuras e estancando os desvios.
A ideologia, aí, não aparece como um sistema de engodo sistemático. Como se a ideologia fosse um véu aposto à realidade, um cortinado místico separando as pessoas da verdade sobre as reais relações de poder. Mais do que isso, a ideologia tem um caráter material: determina os comportamentos e se infiltra nos hábitos. O capitalismo, em essência, não engana alguém, e são ingênuas as perspectivas de que poderia perder força diante da denúncia de suas mistificações. As pessoas já sabem que o capitalismo é um complexo de exploração que gera, numa ponta, luxo e desperdício e, na outra, miséria e violência.
Hegemonia e contra-hegemonia
É isto que Gramsci chama de hegemonia: a forma normal de política em sociedades desenvolvidas e complexas, onde vigoram democracias representativas. É uma operação cultural de grande escala, antes que unidade forçada pelo estado, determinando a existência de um grupo hegemônico que se coloca como portador do “interesse geral”. Em termos de hegemonia, o xis da questão não é perguntar como o capitalismo funciona, mas como nós próprios fazemos ele funcionar. O capitalismo tem uma evidência e uma querência, impregnadas, em que estamos implicados ao elaborar o nosso dia a dia, nossos planos e nós mesmos.
O confronto contra-hegemônico, portanto, passa por um enfrentamento igualmente no terreno ideológico e cultural, com a gradual infiltração no sistema e ocupação de posições-chave — o que o teórico marxista chamou guerra de posição. É o esforço de rearticular as identidades políticas para romper a hegemonia e afirmar duas posições antagônicas, nós (o povo) x eles (a burguesia). Quando bem sucedido, isto significa construir o povo noutros termos, segundo uma consciência nacional-popular marcada pela identidade de classe operária e camponesa, a que corresponde a representação socialista.
Laclau e o significante vazio
Ernesto Laclau, o pós-marxista argentino, se distancia de Gramsci ao se afastar da ideia que a contra-hegemonia configura uma luta de classe. Escrevendo no final do século 20, para Laclau vivemos uma realidade pós-ideológica, em que a sociedade não pode mais ser interpretada no esquema dualista das classes. A luta de classe é somente um aspecto, entre outros. A luta de contra-hegemonia se deslocaria, assim, para os novos movimentos que articulam identidades políticas variadas, envolvendo também lutas raciais, étnicas, de gênero, sexualidade, imigrantes.
Em momentos de crise da representação, a estrutura vigente de sentido perde consistência. Como se, devido à instabilidade, se abrisse uma brecha no bloco hegemônico, o que Laclau chama de significante vazio. É um lugar estrutural, em que os sentidos passam a flutuar ao sabor dos múltiplos atritos provocados pela contra-hegemonia. A luta culmina seja com a colmatação das fissuras, numa reforma social e do estado que recupera as demandas, coopta os intelectuais e restaura a ordem existente (em termos gramscianos, a revolução passiva); seja com a ocupação do significante vazio por um grupo capaz de afirmar uma nova universalidade, uma nova ordem do discurso atravessada pela totalidade social até então subrepresentada.
Como o leitor vê, Laclau situa o discurso no centro da atividade política. A contra-hegemonia laclauliana envolve uma redefinição discursiva da universalidade. A autonomia do político se dá num embate que, em última instância, se resolve em termos de linguagem. A força só consegue consolidar-se ao rearticular a vontade coletiva num sentido social global. Tal cristalização de identidades políticas até então subrepresentadas determina um novo bloco histórico, numa unidade simultaneamente cultural e política.
Populismo 2.0 do Podemos
Iñigo Errejón, intelectual espanhol do novo partido Podemos, tomou Laclau como referência em sua tese de 650 páginas sobre a chegada ao poder de Evo Morales e do Movimento ao socialismo (MAS) na Bolívia. O autor explica como, depois do ciclo insurgente entre 2000 e 2006, que inclui as contendas da água e do gás, Evo e o MAS conseguiram reconstruir uma hegemonia a partir da integração das lutas sindicais/cocaleiras, indigenistas/camponesas e antineoliberais de esquerda. O resultado histórico foi a sutura de uma nova totalidade discursiva que, superando as partes, pôde ocupar o significante vazio aberto pela crise da representação boliviana, no começo do século 21. Contornando tendências movimentistas, mistificações do indigenismo (e do próprio Evo) e sem “pagar mistério” sobre o paradigma do viver bien e o pachamamismo, Errejón conclui que a transformação social implicou, necessariamente, a reforma do estado e a recriação das instituições noutros termos, ao reconhecer outras identidades políticas como sujeitos ativos do processo.
O plano estratégico do Podemos, hoje a maior força eleitoral projetada da Espanha, é inteiramente baseado nessa concepção hegemonista, que vem de Gramsci, Laclau e Errejón. A leitura é que as jornadas do Movimento do 15 de Maio (15-M), a partir de 2011, romperam o horizonte de sentido do regime monarquista de 1978, em sua alternância entre o PSOE e o PP. Abriu-se com o 15-M, assim, um significante vazio, que entrou em disputa. No entanto, até agora, nenhuma força organizada conseguiu ocupá-lo para conferir um novo sentido social global. Tal incapacidade levou o regime antigo a prolongar-se, apesar da crise destituinte, inclusive iniciando ações de restauração aos moldes da revolução passiva.
O surgimento avassalador do Podemos se explica, assim, por estar no lugar certo na hora certa, assumindo a tarefa de tomar para si o significante vazio do 15-M. Isto implica assumir um discurso capaz de reunir uma maioria social, atraindo segmentos da sociedade que se encontram flutuantes, reunindo as forças dispersas (e dispersadas pela repressão) e os múltiplos sentidos políticos. Daí a ideia, tão presente no discurso de Pablo Iglesias, de tomar o “centro do tabuleiro”. Ou seja, de afirmar uma nova universalidade que seja composta pela integralidade da sociedade pós-15M. Isto significa uma síntese ampla e transversal que, à semelhança do MAS na Bolívia, possa consolidar o ciclo insurgente num novo ciclo institucional, levando à reforma do estado e da representação, a partir dos novos movimentos como sujeitos ativos.
A investida contra-hegemônica do Podemos, segundo a concepção de seus líderes, não é nem frentista — que seria mera unificação quantitativa e tática de forças de oposição — nem imposição vanguardista — uma tentativa de tomada do poder descolada das forças sociais não-representadas. Significaria, em vez disso, uma mudança qualitativa e douradoura no horizonte de sentido, integrando as diversas demandas, desejos e sujeitos políticos para uma nova universalidade concreta.
A crítica ao populismo
Uma primeira crítica das teorias da hegemonia, de Gramsci a Iglesias, está no fato que ela confere demasiada importância aos intelectuais. Evidentemente, intelectual, aqui, não se confunde com acadêmico. Em gramscês, intelectual é qualquer um que produza discurso. Em sociedades do capitalismo tardio, isto significa líderes culturais, músicos, celebridades, âncoras de TV, enfim, a produção de mídia em geral. Nas teorias pós-gramscianas, a comunicação assume uma centralidade grande.
No Brasil, tal tendência pode ser constatada com a profusão de análises que sobrevalorizam o papel da “grande mídia” na articulação da vontade coletiva. Não admira que, segundo o diagnóstico dessa linha hegemonista, um dos maiores obstáculos para a contra-hegemonia consista na impermeabilidade de rádio e TV em relação a identidades políticas subalternas. O “significante vazio” restaria bloqueado.
Para Gramsci, os intelectuais alinhados com forças historicamente emergentes devem mergulhar na atividade militante cotidiana, em participação orgânica na vida prática como construtor, organizador, convencedor. Mais do que fundir-se ao povo, ele estaria trabalhando, assim, para a construção da consciência nacional-popular, que aspira a tornar-se povo.
No Brasil, no século 20, multiplicaram-se os intelectuais, geralmente formados nas camadas médias, que se atribuíram a missão histórica de conscientizar (e, pelo menos num primeiro momento, liderar) os proletários. O que vai desde a pedagogia do oprimido de Freire ou o teatro de arena de Boal, dedicados à ativação de classe desde dentro, até as lideranças de movimentos sociais, como Guilherme Boulos, do MTST.
No “populismo 2.0″ de um Podemos, a leitura é outra. Mudou a composição de classe na base dos movimentos, de maneira que não faz mais sentido organizar no esquema dialético cúpulas/bases. A própria ideia de “trabalho de base” se tornou anacrônica, em termos de maioria social. A diversificação dos espaços sociais, a mobilidade das pessoas entre eles e a velocidade comunicativa impõem outra maneira de abrir brechas no bloco hegemônico. Daí a concentração nem tanto na capacidade intelectual propositiva, de sedução e síntese, quanto na vocalização transversal de amplos setores dispersos e autônomos em seu próprio direito. Desaparece a figura do intelectual orgânico junto às massas, de cariz gramsciano: Iglesias se coloca no cenário midiático como intelectual pós-orgânico, ou melhor, inorgânico.
Multidão x hegemonia
A diferença do populismo para a teoria da multidão, de Negri e Hardt, consiste em que, para a última, a potência não está na construção de um povo. O povo falta na multidão, porque ela consiste de forças singulares que não admitem qualquer tipo de unificação. O “significante vazio”, dessa maneira, não passa de uma abstração estruturalista, que perde de vista como o vazio é produto de um êxodo e não de um deslocamento estrutural. O êxodo vai ao deserto porque está prenhe de mundo e não precisa de significantes.
A crise é gerada pela convergência de plenitudes constituídas por singularidades, do que por alguma lacuna entre identidades e a totalidade. Muda a perspectiva. O 15-M, nesse sentido, é antes uma experiência de viver o “sim”, uma experimentação de cooperação, rede e amor à potência comum, do que um mero deslocamento de significados. O trabalho da multidão não está em consolidar uma “universalidade concreta” mediante a sutura dos sentidos, mas multiplicar pontos de atrito numa variedade de táticas, visando ao aprofundamento das conquistas.
Para Negri e Hardt, não é que a construção de um nacional-popular esteja moralmente errada porque tentaria unificar a diversidade de identidades políticas não-representadas, a conformar-se segundo outro projeto de poder (“nacional-popular” ou não). É que, primeiro, tais “identidades” não podem ser representadas, porque são singularidades em permanente transformação. E, segundo, porque a tentativa de unificação subtrai o poder próprio da diferença que elas exprimem. É que a potência está com a multidão. O que condiz com o fundo marxista da teoria, visto que a multidão é um conceito de classe e quem faz a revolução é a luta de classe. A essência da multidão é a sua própria potência, no sentido que suas forças singulares são imediatamente produtivas — de formas de vida, afetos ativos, direitos vivos, capacidades criadoras de cidade.
Laclau e Negri divergem quanto às coordenadas da luta nas condições atuais. Se Laclau postula uma era pós-ideológica, em que a luta de classe cede à diversidade de identidades que buscam se afirmar; Negri aponta uma mutação no capitalismo determinada por uma nova forma de vida social, baseada na autonomia dos sujeitos, na colaboração transversal e, na esteira de Deleuze e Guattari, na amálgama entre humano e não-humano, no plano maquínico. Não é que a classe tenha se dissolvido numa diversidade de “novos movimentos”, nos termos de Laclau; em realidade, a classe se reorganiza nas condições da organização social do capitalismo hoje, e é sobre esse terreno que a multidão poderá emergir — sempre no antagonismo e na ação criadora.
A crítica do populismo 2.0
Com o foco na teoria do discurso, o “populismo 2.0″ (Errejón) perde de vista todo o substrato com que funciona o próprio capitalismo. Com as mutações de que falam Negri e Hardt, desaparece qualquer possível divisão entre o terreno material das lutas em que se constituem os sujeitos, e o terreno cultural e ideológico em que são articuladas as vontades coletivas. Não tanto que cultura e ideologia sejam super-estrutura de relações econômicas, — o que seria marxismo vulgar, — mas sim que estão imediatamente atravessadas pelo plano pré-discursivo ou pré-linguístico, o plano maquínico do desejo.
As experiências de luta dos novos movimentos e de ciclos insurgentes — na Bolívia ou na Espanha — produzem transformações no nível da sensibilidade, uma nova maneira de sentir a democracia e a ação comum. Os afetos gerados pelos bons encontros são cristalizados em hábitos, mesclando-se com os comportamentos mais “naturalizados”. Se o capitalismo tem uma evidência e uma querência, tais construções político-afetivas têm o condão de produzir outras evidências e outras querências.
A mudança real não pode ser totalizada em ideologia abrangente que substitui a velha ordem e não procede desta forma, ficando no plano linguístico. Com prioridade ontológica, a mudança real precisa ser metabolizada pelos próprios movimentos minoritários na construção de novos hábitos, afetos e agenciamentos maquínicos. Isto não é privilegiar alguma micropolítica localista romantizada, mas praticar movimentos expansivos com capacidade propagadora de alta intensidade, atravessando fronteiras, identidades, espaços delimitados. Afinal, as minorias são todo mundo.
Muitas transformações, da segunda metade do século passado em diante, dessa maneira, não passam pela reforma da representação, nem pela ocupação de algum significante vazio, de resto um esquematismo a-histórico igualmente vazio. O leitor veja, por exemplo, a revolução sexual e das drogas dos anos 1960, ou então uma série de mutações de sensibilidade que, por vezes, são entendidas impropriamente como “evolução social”, mas que no fundo significam a produção de práticas concretas, afetos cristalizados, hábitos. O plano da linguagem não capta um mundo de fluxos e reagenciamentos operantes diretamente entre os corpos e a composição dos corpos, inclusive com corpos não-humanos, maquínicos, em sua dimensão molecular.
No fundo, a luta da multidão é mais potente do que a construção discursiva de um povo porque opera no mesmo fundo inconsciente da vida comum que o capitalismo coloniza e explora. Isto vale, inclusive, para a questão da mídia, denotando o vício daqueles tão maceteados pela oposição ao Leviatã da “grande mídia”. Nenhum órgão de comunicação tem o poder de emitir enunciados que, uma vez recebidos, passam a circular pelo tecido social. Esta seria uma análise molar e discursiva do fenômeno. O máximo que podem fazer é conectar-se ou conjugar-se a redes de afetos e fluxos desejantes pré-existentes, que adquirem certa consistência. Basta ver como a força de um telejornal de uma grande emissora está, através dos circuitos do desejo, ligada à maquinaria da telenovela e do futebol.
Obviamente, tal percepção não nos deve levar a subestimar o “poder da mídia”, mas a entendê-lo melhor na medida em que nós fazemos ele funcionar (querendo ver o jogo no Galvão, por exemplo).
O Podemos na berlinda?
Disso tudo, não deveríamos cair num esquematismo precipitado. Como se a descrição do MAS a partir do hegemonismo laclauliano, ou a autoelaboração do Podemos por seus professores-ideólogos, fosse determinante para apreender o sentido histórico e material daqueles. É preciso atentar que existe um lag entre o que falam de uma experiência (mesmo aqueles implicados nela), e o que essa experiência nos interpela.
A busca da maioria social do Podemos já foi criticada como captura dos devires do 15-M, vago sincretismo populista, conchavo elástico demais, personalismo de Iglesias ou, como escreveu o antropólogo argentino Salvador Schavelzon, uma tradução político-cultural deficiente (oportunista?) dos experimentos da América do Sul. O Podemos levaria à Espanha não o que de melhor teria sido produzido na América do Sul, mas justamente a parte problemática que tem levado governos a fechar-se em termos de poder constituinte. Seria por demais luta hegemonista, socialista e nacional-popular, e por de menos anti-pós-colonialista, plurinacional e cosmopolítica.
O caso é que, por outro lado, assim como na Bolívia, na Espanha quem disse que o Podemos abafará o povo que falta, isto é, a multidão? Na Bolívia, o fechamento progressivo do governo de Evo e do MAS levou à abertura de novos atritos e frontes de disputa, que se somaram aos anteriores irresolvidos, o que o marxista boliviano (e vice-presidente) Alvaro Linera chama de empate catastrófico. A multidão seguiu atuando com Evo, a despeito de Evo, contra Evo — simultaneamente, segundo uma variedade de táticas.
De maneira semelhante, se o “poder do Podemos” consiste no atravessamento pela multidão, não será um governo podemista refém da força dispersa, que agora nele parece apostar enquanto tática eleitoral? Se a potência está com a multidão, por que ter medo de uma alternativa hegemonista cuja força depende dela em primeiro lugar?
O erro não seria, talvez, considerar o Podemos, em moldes gramsciano-laclaulianos, como uma estratégia de construção de povo — em vez de mais uma das táticas da multidão, uma maneira de concatenar poder e potência (potestas e potentia)? Traçar um destino para a experiência organizativa em face de sua ideologia assumida não é, exatamente, confirmar pela via negativa que aquela ideologia descreve e prescreve a própria experiência?
De onde vejo, essa questão está em aberto.
Referências básicas
BEASLEY-MURRAY. La clave del cambio social no es la ideología, sino los cuerpos, los afectos y los hábitos. Eldiário.es, 2015.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. O anti-Édipo. 34, 2010.
ERREJÓN, Iñigo. La lucha por la hegemonía durante el primer gobierno del MAS en Bolivia (2006-2009): un análisis discursivo. Tese de doutorado. Madrid, 2012.
FERNÁNDEZ-SAVATER, Amador. Fuerza y poder; reimaginar la revolución. Eldiario.es, 2013.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere, 6 vols. Civilização Brasileira, 1999-.
HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multidão. Record, 2005.
____. Commonwealth. Harvard, 2009.
LACLAU, Ernesto. A razão populista. EdUERJ, 2013.
SÁNCHEZ, Raúl Cedillo. O poder do Podemos. UniNômade, 2014.
SCHAVELZON, Salvador. Podemos, América do Sul e república plurinacional. UniNômade, 2015.
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O Podemos entre hegemonia e multidão: Laclau ou Negri - Instituto Humanitas Unisinos - IHU