23 Fevereiro 2015
Ao 1º de março de 2005 o cardeal arcebispo de Buenos Aires, Jorge Mario Bergoglio, interveio na assembléia plenária da Congregação para o culto divino e a disciplina dos sacramentos com uma reflexão dedicada à ars celebrandi. Aquele texto – que publicamos integralmente – foi escolhido como base de reflexão para o encontro do Papa Francisco com o clero da diocese de Roma, realizado na manhã de quinta-feira, 19 de fevereiro, na Aula Paulo VI.
O artigo foi publicado pelo jornal L’Osservatore Romano, 20-02-2015. A tradução é de Benno Dischinger.
Eis o artigo.
Na Igreja hodierna, muitos bispos, sacerdotes e leigos sentem a exigência que seja dada maior atenção ao aspecto por assim dizer contemplativo da celebração litúrgica, isto é, àquela dimensão de interioridade que abriria a mente e o coração ao mistério celebrado, que é Cristo nossa Páscoa.
Esta sensibilidade se exprime de diversas maneiras segundo as circunstâncias, os lugares, as gerações e os gostos. Há quem sustenta que seria preciso insistir no retorno de uma celebração realizada segundo o modelo ideal dos séculos passados; e quem fala, ao invés, de inculturação da liturgia nos diferentes contextos sociais. Não poucos apontam para a qualidade artística do interior das nossas igrejas, para sua harmonia arquitetônica, para os materiais preciosos, para o engenho de escultores e pintores.
Aponta-se acima de tudo para uma música que leve os participantes “ao alto”, além dos sentimentos passageiros dos indivíduos, além das costumeiras dificuldades e preocupações da vida cotidiana. Alguns, depois, imaginam que uma música “popular” poderia estar em condições de atrair a atenção dos jovens, bem como de favorecer neles o desejo religioso. Depois, a percepção de uma meta não atingida impele em muitos outros que se satisfaçam com o enquadramento dos livros litúrgicos ou com a própria tradição da Igreja. Em consequência disso, procuram nas inovações livres uma melhoria da celebração, com maior envolvimento do povo.
Diante destas e de tantas outras propostas, se pode certamente argumentar a partir de um sentimento mais vivo do ‘ex opere operato’, ou seja, a partir da eficácia da celebração dos sacramentos, que brote do fato deque foram instituídos de parte do Salvador e que emanam como que de sua gloriosa e salvífica paixão. De qualquer modo, isto é simbolizado no fluxo de água e sangue do lado de Jesus Cristo por nós crucificado. É realmente ter em conta esta visão da inesgotável eficácia “universal” dos sacramentos, quando se trata de celebrações em meio à pobreza do povo, em circunstâncias humildes, longe do fausto, na perseguição e na clandestinidade, onde se celebra com o pusillus grex [a grei pusilânime].
Em todo caso, nas circunstâncias normais, nas nossas paróquias da cidade e do campo, durante o domingo e os dias de festa, realçar certamente a eficácia do ex opere operato não basta para assegurar um verdadeiro envolvimento das pessoas. Então, retorna-se às propostas de antes: o embelezamento do espaço da celebração e dos adornos, com vasos, paramentos música em condições de atrair a atenção do povo e de sugerir certa “riqueza” da experiência religiosa. Haveria, em todo caso, muito a ganhar de uma pequena e sagaz meditação e aplicação das sadias normas que, a mais de uma geração, se encontram nos próprios livros litúrgicos e documentos da Santa Sé sobre estes e outros argumentos do gênero. Mas, isso corre o risco de tocar apenas superficialmente a realidade humana e de fazer florescer ainda menos a realidade da fé.
Recuperar o “estupor”
Onde o discurso da interioridade e a impressão que não obstante todos os esforços, também generosos e bem intencionados, destes anos a favor de uma celebração litúrgica mais bela, compreensível e envolvente, frequentemente tem faltado na práxis algo muito importante.
O próprio Santo Padre captou este sensor, endereçando-se recentemente, em várias ocasiões, à necessidade de recuperar o sentido de “estupor” do cristão perante o mistério de salvação em Cristo e, em particular, ante a Eucaristia (cf. Ecclesia de Eucharistia, n. 6). Mas, diz isso também o povo simples, as mães de família e os jovens.
De fato, também a interioridade corre o risco de permanecer ao nível de uma vazia subjetividade, se não se eleva firmemente o discurso do mistério cristão.
Recuperar o “estupor” diante do mistério. Como atingir este objetivo?
Um conceito do qual se fala agora há anos em vários ambientes é a ars celebrandi. A noção exata ainda precisa ser definida. Mas, em geral a ideia é a de um documento, das linhas-guia, capazes de por em relevo a necessidade e destacar certos elementos da celebração litúrgica, de modo a aumentar sua qualidade.
Na última década se deu muita importância, nos documentos pontifícios, à responsabilidade do Bispo, também em matéria litúrgica. É correto assim. Porém na práxis, do ponto de vista do povo, é o sacerdote que é o ponto de referência essencial. Por isso, na ars celebrandi penso que se deva tratar quanto se refere acima de tudo ao sacerdote. Isso não significa que o documento deva ser um texto somente para os sacerdotes. De fato, caso se consiga definir a conduta do sacerdote, tal reflexão ajudará também o povo. Ajudá-lo-á a ver no sacerdote quanto deve ver, e a aprofundar a própria função complementar, mas, sobretudo favorecerá a prece.
No contexto da campanha que a Igreja adotou por uma atenção renovada ao mistério eucarístico e, em todo caso, em vista de uma simplicidade e linearidade de expressão, limitarei a ars celebrandi à celebração da Eucaristia, e àquela pública, sobretudo paroquial.
Um estilo visado
Desejarei um documento límpido e claro do ponto de vista expressivo, com uma dimensão também bíblica e dos textos litúrgicos; um texto de meditação, antes do que um tratado de teologia: exortativo, ou melhor, capaz de oferecer motivações, antes do que jurídico ou rubricativo. Deveria, contudo, distinguir-se de uma exposição genérica sobre a espiritualidade sacerdotal, de modo a ser não obstante um texto prático que considere a celebração da Eucaristia e, em particular, os diversos aspectos que deve cumprir o sacerdote.
Antes de tudo, o sacerdote celebrante deve estar cônscio do mandato recebido na ordenação sacerdotal: agnosce quod agis, initiare quod tractas [reconhece o que fazes, inicia o que tratas]. Que capte primeiramente o sentido do mistério, para depois comunicá-lo à comunidade cristã, de modo que essa se conforme à grandeza do mistério. Isso requer uma fé viva, nutrida, e um sadio espírito de prece.
De resto, não é necessário um cerimonial, mas, em todo caso, se deve tratar também dos aspectos exteriores da celebração, no que concerne ao sacerdote. Estou convencido que se poderia falar não só da preparação, mas também do cuidado dos gestos, da conduta do corpo, da dignidade, daquela liderança humilde, porém incisiva que consiste em deixar o povo intuir que gosta de um homem que sabe rezar a liturgia, que sabe vestir-se não só com os paramentos tradicionais, mas, principalmente da pessoa do Senhor Jesus Cristo. Em tudo isso, não se trata de refinamento, de esteticismo; não é questão de devocionismo individualista e clerical. Está antes em jogo um verdadeiro ministério pastoral, meritório diante de Deus, mas – de maneira tão verdadeira quão dificilmente definível – perceptível por quem faz parte das nossas comunidades cristãs; de quem se dirige à celebração da Eucaristia para receber e par dar; de que, com a graça de Deus, deseja fazer da eucaristia realmente a ‘fons et culmen’ [fonte e cume] da própria existência.
É claro que tudo isso deve deixar aparecer o sacerdote em estrita relação com o povo do qual é pastor e ao qual não faz, celebrando a Eucaristia, um ato de caridade, e sim um ato de justiça.
Ars dicendi [Arte de dizer]
É aqui que entra em jogo o discurso daquilo que chamarei uma ars dicendi.
A esta expressão atribuirei dois sentidos: o primeiro é a maneira na qual o sacerdote fala quando pronuncia os textos prescritos. Neste caso, ele não fala simplesmente com sua voz pessoal. Mas, sua voz é propriamente o veículo da voz prece da Igreja e dos fiéis congregados naquela ocasião. O que ele diz é comunicação e testemunho. O sacerdote deve estar cônscio disso; e mesmo, deve fazê-lo tornar-se um tema de suas meditações, nas quais também deve aprofundar o sentido dos vários textos litúrgicos. Além disso, o sacerdote, também através do tom da voz, de seu ritmo e da relativa velocidade com que fala, deve de certo modo levar as pessoas consigo na prece. É necessário um modo de falar que não é simplesmente um ler, um pregar, um anunciar, mas antes um orar sincero.
Um segundo sentido que gostaria de atribuir à expressão ars dicendi intercepta em algum aspecto o discurso da homilia que será objeto de atenção particular nesta Plenária. Aqui entendo mais especificamente evocar a necessidade que o sacerdote atenda bem ao uso daquelas partes onde é exigida dele a formulação livre. Deve saber distinguir entre a “língua vulgar” (no sentido do vulgus), e a “língua popular”, no sentido da linguagem da rua, ou seja, das conversações privadas. Deve comunicar numa língua viva e acessível. Deve falar ao coração. Não deve, todavia, afastar-se daquilo que requer a circunstância e a celebração do mistério.
Do sacerdote
Se com um documento sobre a ars celebrandi se pudesse ajudar o sacerdote a celebrar com a justa consciência (agnosce quod agis [reconhece o que fazes]), se inseriria, ipso facto, também no povo maior consciência acerca da celebração litúrgica. Condicionaria – no melhor sentido do termo – também o diácono, os leitores e os ministrantes. Tal consciência é um dom de Deus que é implorado na prece e que é concedida por Deus aos santos. Diz-se, por exemplo, que a teve o beato Ildefonso Schuster, mas a arte cristã o atribui a muitos santos, como São Gregório Magno, São Bernardo, Santo Inácio.
Voltando ao primeiro sentido que dei à ars dicendi, vale a dizer a maneira pela qual o sacerdote pronuncia os textos prescritos, insistirei também na variedade de formulários à escolha que de fato já existe nos livros litúrgicos atuais. Para mim são mais do que suficientes. Tal possibilidade de escolha aumentou muito após o Concílio e constitui um fato notável diante, por exemplo, de diversos ritos orientais. Portanto, que o sacerdote faça com cuidado a sua escolha entre os textos à disposição e depois, para o restante, saiba fazer uma prece viva da Igreja, levando consigo o povo. Se souber fazer isso, então resultarão supérfluos os míseros textos da “criatividade” selvagem. É uma grande arte aquela de pronunciar como se deve aqueles textos litúrgicos que se repetem com muita frequência, como a prece eucarística.
É preciso, a meu aviso, encontrar um modo de tocar rapidamente – sem dúvida, sem ceder à polêmica – os comportamentos a evitar, como aquele do sacerdote de gestos rígidos, que quase parece ignaro da presença do povo, ou então o comportamento do padre “mestre de espetáculo”, um “showman” que investe energias numa espécie de animação superficial. Também se encontra o padre super-atarefado que não tem tempo para uma digna celebração em tempo razoável (a “síndrome de Marta“). Porém seria, segundo meu parecer, um erro transformar a ars celebrandi num tratado sobre os abusos. Oferecer motivos para uma boa práxis já é uma ação potente contra os abusos, sem que sejam explicitados.
Eu exprimia aqui sobre minha convicção que a ars celebrandi não deveria ter uma feição jurídica. Uma concepção de tipo jurídico ou disciplinar, embora seja legítima no momento devido, estaria neste caso fora de lugar. Além disso, convém que o texto não tenha um aparato pesado de notas ao pé da página. Pelo mesmo motivo, sou de parecer que se deva evitar uma colagem de trechos conciliares ou pontifícios.
Embora a gente se limite a tratar da celebração da Eucaristia, a ars celebrandi não pode, me parece, retomar simplesmente a Institutio Generalis Missalis Romani. Não convém nem que se torne uma espécie de vade mecum o prontuário do conteúdo de tal Instituição, nem que se ocupe de argumentos como a música sacra ou a arte sacra. Para ter sucesso deve, ao contrário, resistir serenamente à tentação não só de dizer tudo sobre tudo, mas também muito sobre muito: que diga pouco e de modo visado; e o diga bem, de maneira convicta e convincente.
Conclusão
Pondo o argumento da ars celebrandi na ordem do dia desta Plenária, a Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos distribuiu, para ilustrar quanto eram diversos há alguns anos em canteiro, duas versões de textos que se propõem tratar desta questão. Como foi explicado, os textos são coligados entre si nas origens. Nem um, nem o outro são propostos numa redação definitiva. Todavia, ambos podem ser úteis para suscitar o argumento e oferecer uma primeira exemplificação. Em obséquio à tarefa de expositor que me foi confiada, considero conveniente não procurar comentar estes textos, visto que estão ao alcance da mão de todos. Gostaria, ao invés, de propor à discussão dos Padres alguns critérios para progredir em direção à redação de um texto definitivo.
1. Sou de parecer que efetivamente tenha chegado o momento para se proceder à confecção de um documento sobre a ars celebrandi.
2. Retenho que tal documento deva ser breve e centrado em argumentos essenciais, segundo uma ótica precisamente definida.
3. Deveria, a meu ver, assumir também um tom pastoral e espiritual, e até meditativo, deixando de lado uma visão de tipo jurídico ou disciplinar. O estilo deveria ser singelo, direto e simples, excluindo as expressões rebuscadas; mas, evitando também os incisos e as frases ornamentais antes habituais nos documentos oficiais.
4. Para evitar o desvio da\atenção, proporei tratar unicamente da celebração da Santa Missa, na consciência de que tal reflexão exercerá seu influxo de modo natural e inevitável sobre todas as celebrações litúrgicas.
5. Pela mesma razão, considero que se requer um texto que explicite a conduta pastoral e espiritual que o sacerdote celebrante deve assumir no próprio ato da celebração, na consciência que isso também será de ajuda ao povo e, em meio a isso, àqueles que têm um papel particular.
6. Reputo, todavia, necessário prestar grande atenção a não andar sequer na linha de redigir qualquer texto sobre a espiritualidade sacerdotal. Ao contrário, deve-se ter bem em vista que se trata da ação prática do sacerdote, no contexto especifico da celebração da Eucaristia.
7. Embora apreciando o trabalho de quantos contribuíram à confecção de um ou de outro texto à disposição do arquivo da Congregação, me parece que os critérios aqui anunciados poderiam por de parte ambos e empreender do início uma nova redação mais meditativa, rejuvenescedora e vital.
8. Penso que tal documento não possa ser uma instrução e provavelmente nem sequer um Diretório, que resultaria demasiadamente pesado. Ao contrário, poderia ser publicado como um texto sui generis, com uma apropriada fórmula conclusiva que indique a aprovação do Santo Padre.
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Ars celebrandi – Como se faz uma homilia – Pouco e bem - Instituto Humanitas Unisinos - IHU