20 Fevereiro 2015
"A religião é um fenômeno radical que a cultura dos direitos modificou, mas não modificou em sua natureza. Eis porque ela tem dificuldade de acomodar-se com a tolerância, um termo que ainda designa uma virtude fria ou uma não-virtude, precisamente porque requer que se aceite a existência daquilo que de dentro da própria fé se considera um erro", escreve Nadia Urbinati, cientista política italiana e professora da Columbia University, em artigo publicado pelo jornal La Repubblica, 18-02-2015. A tradução é de Benno Dischinger.
Eis o artigo.
Ao comentário do ataque criminoso dos extremistas islâmicos aos chargistas e aos jornalistas de Charlie Hebdo, o intelectual francês Abdenour Bidar, em sua “carta aberta ao mundo islâmico”, escreveu que os intelectuais ocidentais parecem ter perdido a capacidade de compreender o fenômeno religioso. Para muitos deles a religião é um sinal que existe para algo diverso: a narrativa que substitui as ideologias políticas decaídas; o meio para mostrar contrariedade a leis e sistemas políticos; a arma para denunciar a discriminação, a marginalidade, a exclusão.
Certamente, a religião exerce e exerceu todas estas funções. De resto, precisamente pela sua capacidade de remover o medo e comandar a obediência, a ela se dirigiram fundadores de Estados e seus conselheiros para induzir homens e mulheres a fazerem coisas que de outro modo jamais teriam tido a coragem de fazer. Explica Maquiavel que somente quando os romanos foram levados sentir medo da punição divina os seus chefes militares conseguiram impor o comando supremo nos campos de batalha, porque o medo de Deus superava aquele da morte. De resto, o uso político da religião tem sentido porque somente quem a usa e move conhece seu poder tremendo e trágico, que vai além da vida e da morte.
A cultura moderna, a nossa cultura iluminista, nasceu e se radicou para domar e despotencializar este poder tremendo. Teve êxito permeando a vida civil com a cultura dos direitos. Mas, a convicção de ter domado a força se retorceu contra ela, tornando-a incapaz de compreender plenamente os recursos de que a religião dispõe, de lê-la como mais ninguém como um sinal que está para qualquer outra coisa, um fenômeno arcaico e um refúgio para quem não tem, por exemplo, recursos culturais e econômicos suficientes.
Opium populi
A religião é um fenômeno radical que a cultura dos direitos modificou, mas não modificou em sua natureza. Eis porque ela tem dificuldade de acomodar-se com a tolerância, um termo que ainda designa uma virtude fria ou uma não-virtude, precisamente porque requer que se aceite a existência daquilo que de dentro da própria fé se considera um erro. Como nos recordou Norberto Bobbio num artigo magistral, os que crêem aceitam a tolerância como uma regra de prudência, mas não a abraçam como um imperativo ou um princípio em si. Requereu-se a retórica simples do Papa Francisco para no-lo recordar: “se ofendes minha mãe te mostro o punho”. Certamente, mostrar o punho não é a mesma coisa como usá-lo. Mas, é bom recordar que é à cultura dos direitos que devemos reconhecimento por fazer-nos entender plenamente essa diferença.
Criticar o autor de uma sátira ao invés de suprimi-lo: aqui está toda a diferença do mundo. Mas, esta diferença é sinal que a tolerância funciona como regra de prudência, ou então, que sabe sugerir comportamentos estratégicos sem necessidade de mudar a atitude espiritual de quem crê.
Ora, é evidente que, se nos Países ocidentais esta regra de prudência não custa tanto e funciona bastante bem, é porque aqui a prática opera no interior de uma cultura ética que está embebida por uma semente religiosa preponderante. A cultura européia tem sua homogeneidade, tanto quando fala a língua da religião como quando fala a língua dos direitos. E usar a regra da tolerância mostrando o punho é, tudo somado, um fato excepcional.
Ser tolerantes entre iguais custa menos, torna o autocontrole menos difícil. E, principalmente, nos faz esquecer a radicalidade do fenômeno religioso. Faz esquecer que a cultura dos direitos é algo bem delicado: que o hábito que temos adquirido nestes dois séculos de dissentir com razões, ao invés de o fazer com os punhos, não nos modificou a fundo; que a religião não se tornou uma filosofia ou uma visão do mundo como as outras; que, enfim, também o pluralismo, quando consegue estabilizar-se, não é propriamente o mesmo daquilo que se encontra no livre mercado das idéias, onde se escolhe entre várias opções (dizia Antonio Labriola aos otimistas positivistas de seu tempo que os valores não são como “queijos duros suspensos” que encontramos já prontos no mercado).
Isto para dizer que o argumento que nos convida a considerar as condições do diálogo e dos seus limites, que nos recorda a natureza irredutível e radical da religião, que nos põe em guarda do pensar que as condições materiais de vida sejam, no fundo, a única e verdadeira colocação em jogo de quem crê num deus, é sensato e sábio. Nenhuma justificação e nenhuma tolerância para com aqueles que usam o punho. Mas, seria redutivo pensar que, se a religião é permeável à intolerância isso é porque as pessoas não desfrutam de bastante bem-estar, cultas, integradas, reconhecidas; que o fenômeno religioso seja sinal de algo diverso.
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A religião incompreendida - Instituto Humanitas Unisinos - IHU