18 Fevereiro 2015
"O que estamos fazendo como cristãos? Em primeiro lugar, devemos lembrar-nos de que servimos Jesus, que revela a própria natureza de Deus, que carregou a cruz e que não iria tolerar por um único segundo a ideia de não ostentá-la em toda a sua totalidade como algo essencial à sua vocação, e, assim também à nossa."
A seguir, publicamos a homilia feita pelo arcebispo anglicano de Canterbury, Justin Welby, na "Frauenkirche" [Igreja de Nossa Senhora], durante uma visita a Dresden, na Alemanha, para celebrar o 70º aniversário do bombardeio dos aliados à cidade.
O texto foi publicado no sítio do arcebispo de Canterbury, Justin Welby, 15-02-2015. A tradução é de Claudia Sbardelotto.
Eis o texto.
Isaías 62, 6-12
Marcos 8, 31-37
Ao contrário do meu maravilhoso predecessor, eu não falo alemão, fato que me deixa um tanto envergonhado e decepcionado. Por isso, tenho de lhes pedir para ouvir o meu inglês nesta ocasião em que me encontro aqui, pregando nesta igreja extraordinária, um dos grandes privilégios da minha vida.
Durante os meus cinco anos no comando dos trabalhos da Community of the Cross of Nails [rede internacional de organizações pela promoção de reconciliação em áreas de conflito] na Coventry Cathedral, a história de Dresden, os terríveis acontecimentos de 70 anos atrás, o sofrimento terrível da Europa daqueles dias, todos fazem parte da história que tem moldado a minha própria prioridade na reconciliação em tantas partes do mundo.
Até poucos anos, a Europa central e ocidental poderia sentir-se confiante de que a reconciliação estava bem estabelecida e que nunca mais nenhum de nós iria lutar ou enviaria os nossos filhos ou netos para lutar contra outros europeus no campo da batalha.
Como é trágico que essa Igreja gloriosa, que fala de liberdade, esperança, fidelidade de Deus e testemunho da boa nova de Jesus Cristo hoje e nos séculos passados, deve estar estabelecida, uma vez mais na Europa, onde o som da batalha é talvez, apenas um rumor, mas um rumor que está crescendo com força.
É uma lembrança profunda de que a reconciliação é um dom de Deus, que deve ser tomado, que deve fazer parte de nós mesmos, e, em seguida, alimentado e cuidado, como faríamos com uma planta tropical em um clima frio, sabendo que o descuido pode levar à morte da planta.
Encontramos esse desejo de renovação contínua de viver nossa vocação de discípulos de Cristo definido claramente na leitura do Novo Testamento através das palavras de Jesus.
Quem pode duvidar de sua frustração? Ele acabou de ouvir a declaração de Pedro de que é o Filho de Deus vivo, que ele é o único a quem Israel tem estado à espera. E depois de um instante, em outra frase, Pedro não só demonstra sua própria incapacidade de reconhecer a natureza desta revelação - natureza que muda a história, transforma a vida, inverte o mundo -, mas também toca Jesus no ponto de maior vulnerabilidade.
Devemos levar a humanidade de Cristo a sério. Acima da minha lareira no meu escritório tenho um desenho de Sutherland do rosto de Cristo na cruz, o mesmo artista que fez a grande tapeçaria na extremidade leste da catedral de Coventry. É um rosto em que a realidade da humanidade é mostrada no nível mais profundo. Abaixo está uma reprodução da madeira torcida da cruz marcada pela guerra, que fica no altar-mor da Coventry. Perto dela está uma imagem chamada de "Victim, No Resurrection" de Terry Duffy. Novamente, é uma imagem do mais profundo sofrimento. Será que não conseguimos entender que, para Jesus a ideia de que Ele poderia não precisar passar pela cruz era imensamente atraente em todos os níveis de sua humanidade? Será que nós mesmos não preferimos evitar a cruz?
É por isso que ele se vira para dizer que não apenas ele deve carregá-la, mas também todos aqueles que se dizem cristãos. Devemos tomar a nossa cruz e, à imitação de Cristo, segui-Lo. A cruz pesa sobre nós de muitas formas.
Acima de tudo, porém, está a cruz que machuca e nos aflige à medida que os eventos nos afligem e os medos acumulam-se ao nosso redor. No entanto, o chamado do cristão não é colocá-la para baixo, virar as costas e fingir que o mundo é diferente do que é, mas como Jesus, suportar todo o peso do pecado do mundo, indo em frente, proclamando as boas novas de salvação e de esperança para todos.
No entanto, assim como a cruz que Deus coloca sobre os nossos ombros, para que possamos ser verdadeiros discípulos de Cristo, assim também é o dom de esperança e redenção, a certeza da alegria e libertação. Olhe para Isaías. O povo de Israel, retornado do exílio, não encontrou o caminho fácil do novo império e o novo reino davídico que esperava, mas sim as lutas diárias exacerbadas por senhores da guerra e bandidos locais, pelo medo e perigo de todos os lados. Para constatar essa realidade temos o livro de Neemias.
O profeta não finge que as coisas são diferentes do que são. Ele é absolutamente realista como nós, cristãos, também devemos ser. Ele reconhece o mal que tanto ameaça Jerusalém quanto o interior da comunidade de fé. Temos de ser igualmente realistas e igualmente humildes sobre nossas próprias falhas, bem como os perigos do mundo ao nosso redor. Não podemos demonizar o outro sem deixar de lembrar de que o outro tem muitas vezes causas legítimas para falar sobre o nosso próprio pecado.
No entanto, Isaías não perde de vista o fato de que Deus é fiel e vai redimir. E, portanto, ele chama as sentinelas para orar, como a viúva importuna no Evangelho de Lucas, a orar tanto ao ponto de que Deus não pode deixar de responder. A Igreja precisa clamar a Deus em sinal de protesto e lamentar a tragédia do mundo, para dizer como no Evangelho de Marcos "Vou tomar a cruz", como Isaías, no início de sua vida, que diz "Eis-me aqui, envia-me".
A realidade do mundo em que vivemos, a realidade em que está esta grande Frauenkirche é a de um mundo onde o desejo de poder e a fome de dominação, o desejo de manter o que temos, mesmo quando não foi justamente adquirido, é tão dominante agora como nunca antes na história.
Nós olhamos para o leste e vemos a Ucrânia ameaçada de invasão. Nós olhamos para o sul e encontramos imensa pobreza e dificuldades como resultado de governos endividados, uma escravidão que agora deve ser suportada por aqueles que são meros observadores do erro. Nós olhamos um pouco mais para o sudeste e sudoeste e encontramos uma crueldade indescritível com o ISIS e o Boko Haram, mascarados como uma religião revelada por Deus.
Por todos os lados, ouvimos o grito dos oprimidos, e ainda assim na nossa parte do mundo e em muitas outras há mais paz, mais prosperidade, mais remédios, uma vida mais saudável e melhores relações com a comunidade do que jamais existiu.
O que estamos fazendo como cristãos? Em primeiro lugar, devemos lembrar-nos de que servimos Jesus, que revela a própria natureza de Deus, que carregou a cruz e que não iria tolerar por um único segundo a ideia de não ostentá-la em toda a sua totalidade como algo essencial à sua vocação, e, assim também à nossa.
Em segundo lugar, devemos ser um povo que, em meio às mudanças e chances desta vida, nos agarramos totalmente à realidade de um Deus a quem clamamos com toda a emoção, do louvor e da ação de graças, passando pelo lamento e pela tristeza, à raiva e ao ressentimento.
Devemos ser sentinelas que não cessam de orar, sabendo que o Deus a quem nós clamamos é o único que vai transformar a nossa sociedade, que permitirá a vinda do Reino dos Céus. Podemos levar a cruz, mas é somente ao suportá-la em sua plenitude que existe a alegria transformadora que nos enche à medida que caminhamos nos passos de Jesus.
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Guerra e cruz. Homilia de Justin Welby, arcebispo de Canterbury - Instituto Humanitas Unisinos - IHU