13 Fevereiro 2015
Os povos indígenas terão este ano um cenário nebuloso sujeito ao agravamento de todas as formas de violência das quais têm sido vítimas no Brasil. A avaliação é do antropólogo e professor-doutor da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), Gersem José dos Santos Luciano Baniwa, e tem base nos indicadores político-econômico colocados como esteios do projeto de desenvolvimento do País.
A entrevista é de Ivânia Vieira, publicada por A Crítica, 10-02-2015.
Um dos embates difíceis dos indígenas é a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) no 215 (transfere para o Congresso a responsabilidade de aprovar a formalização de Terras Indígenas, de Unidades de Conservação e dos Territórios Quilombolas hoje de competência da União). Arquivada no ano passado, a matéria voltará a tramitar no Congresso Nacional nessa nova legislatura. “É necessário e urgente que o movimento indígena construa outras estratégias de luta”, afirma Gersem Baniwa.
O pesquisador aponta o perfil conservador do Congresso Nacional eleito no ano passado, onde um segmento do setor ruralista - “uma parcela sanguinária que destrói, devasta, explora e invade sem pudor ou moral nossas florestas e territórios” - está fortemente representada como uma das dificuldades para fazer avançar conquistas e direitos coletivos dos indígenas e ameaça real de retrocessos. Os povos da Amazônia, na opinião de Gersem Baniwa, têm nesse cenário duras lutas pela frente.
Eis a entrevista.
A PEC 215, arquivada no ano passado, será retomada este ano? O que essa matéria representa aos povos indígenas do Brasil?
A PEC 215, articulada e defendida pela bancada ruralista no Congresso Nacional para inviabilizar os processos demarcatórios de terras indígena no Brasil, transfere do Poder Executivo para o Poder Legislativo as atribuições constitucionais de demarcação de terras indígenas, de titulação dos Territórios Quilombolas e de criação de Unidades de Conservação. Digo a você que esse é o maior pesadelo dos povos indígenas na atualidade e o maior desafio na pauta de luta do movimento indígena. Na verdade, o que está sendo proposto é inviabilizar qualquer demarcação de terras indígenas, uma vez que o Congresso Nacional (Senado e Câmara dos Deputados) teria enormes dificuldades para operacionalizar política e administrativamente os processos necessários para isso.
Como o senhor vê a volta da matéria à pauta do Congresso?
Uma ameaça contínua sobre todos nós porque a bancada ruralista não vai desistir de querer usurpar os direitos indígenas. Os ataques aos direitos indígenas, quilombolas e à biodiversidade brasileira vão continuar porque o segmento empresarial de ruralistas e do agronegócio representam o que tem de mais bárbaro, atrasado, conservador, racista e criminoso no País. É bom que se diga que não são todos os empresários do agronegócio, mas uma parcela deles, a maioria. É parcela sanguinária do segmento que destrói, devasta, explora e invade sem pudor ou moral nossas florestas e territórios, do mesmo modo que violenta e mata quem fica no seu caminho, principalmente os povos indígenas. É um segmento que parou no tempo da barbárie capitalista, que não quer saber da moral de direitos humanos, de democracia igualitária e de desenvolvimento humanos sustentável. Na verdade, é um segmento que perpetua a ideologia racista capitalista que provoca a insustentabilidade do nosso País e do nosso Planeta.
Nesse caso, a PEC 215 deixa de ser “problema dos indígenas e das comunidades quilombolas e tradicionais" para ser problema dos cidadãos..
É isso mesmo. Quando analisamos o teor dessa PEC constatamos que ela não ameaça só os povos indígenas, as comunidades quilombolas, as comunidades tradicionais e os defensores da biodiversidade, e sim todas as pessoas e segmentos sociais interessados na continuidade de vida digna no mundo. Dados de pesquisas mais recentes mostram como, no Brasil, as terras indígenas dão a contribuição mais importante para a manutenção da biodiversidade e do equilíbrio dos ecossistemas brasileiros. Precisamos buscar formas de comunicação e de estratégia política adequadas para envolver outros segmentos sociais progressistas da sociedade brasileira nessa luta, pela sua relevância estratégica para a qualidade de vida de todos os brasileiros e, dessa forma, também ajudar os povos de várias regiões do mundo. No ano passado, na campanha política e nas falas dos governantes (da Presidência da República aos governos estaduais), os povos indígenas foram ignorados.
Como o senhor avalia essa postura?
Historicamente os povos indígenas sempre foram esquecidos e invisibilizados nas campanhas políticas ou mesmo nas pautas dos governos. Quando aparecem é no contexto marginal ou emergencial de situações pontuais. Mas nas campanhas eleitorais de 2014, esse esquecimento foi bem mais percebido, em minha opinião, por duas principais razões: a primeira, pela grande e direta influência do segmento ruralista do agronegócio claramente anti-indígena junto aos candidatos. De olho no poder econômico e político dos ruralistas e com os necessários apoios financeiros, os candidatos tiveram que estrategicamente esconder temas que contrariassem os interesses ruralistas, patrocinadores de campanhas; a segunda razão refere-se às dificuldades que o movimento indígena vem enfrentando no campo da articulação de alianças, principalmente alianças históricas (com comunidades tradicionais, trabalhadores rurais, ambientalistas, movimento negro, etc,) para se aproximar ou mesmo participar dos centros de discussões e decisões político-partidárias. Nas décadas de 1990 e 2000 essas articulações e alianças foram mais concretas e impactantes. Nas duas gestões do ex-presidente Lula (Luiz Inácio Lula da Silva, governou o Brasil por dois mandatos seguidos, de 2003 a 2011), por exemplo, grupos de lideranças indígenas ligados ao PT chegaram a participar de grupos de discussão e elaboração de programas e planos de governo da coligação. Nos últimos anos, por conta da aproximação do partido a outros partidos mais conservadores e anti-indígenas, as lideranças indígenas se afastaram desses espaços. O mesmo aconteceu com o PCdoB, que no Brasil, e, particularmente no Estado do Amazonas, já foi um importante aliado dos povos indígenas e chegou a ser o partido que mais acolheu lideranças indígenas entre seus quadros de filiados, hoje é um dos partidos mais anti-indígenas no Brasil. Basta olhar os posicionamentos e as ideologias defendidas pelos seus principais líderes nacionais: contra os direitos indígenas, contra o código florestal, etc.
O cenário traçado pelo senhor impõe grandes e urgentes tarefas ao movimento indígena brasileiro e da Amazônia...
Sim. É isso! O movimento indígena precisa voltar a ser mais dinâmico, proativo, protagônico e articulado para buscar ou mesmo criar novos espaços de diálogo e de intervenção nas estruturas do Estado em favor dos direitos coletivos dos povos indígenas. É claro para nós que as pautas temáticas defendidas pelos governantes são resultados de correlações de forças dentro de suas coligações e grupos políticos. Daí a ausência ou a fraca participação de indígenas nesses espaços, não contribui para dar alguma visibilidade à agenda indígena. Curiosamente isso ocorre no momento em que há maior presença indígena em espaços de governos (municipais, estaduais e federais: prefeitos, vereadores, secretários, diretores, gerentes, coordenadores indígenas), inclusive número expressivo de indígenas filiados a partidos que concorreram nas eleições de 2015, com 85 candidatos, sem que nenhum conseguisse se eleger. É também o período em que os povos indígenas conseguiram chegar às universidades, que já somam hoje mais 13 estudantes universitários. Isso faz pensar que, por um lado, temos um movimento indígena de vanguarda e de resistência autônoma e independente (faz críticas às vezes radicais ao governo) e, por outro lado, indígenas ligados aos partidos ou aos governos bastante subservientes, que não conseguem se impor e pautar a temática indígena nesses espaços de poder partidários.
Como sair dessa situação e realizar mudanças?
É extremamente importante a vanguarda autônoma de resistência do movimento indígena, mas é necessário e urgente que também o movimento indígena comece a construir outras estratégias de luta mais proativas e construtivas, como participar de formas mais diretas nos espaços de tomadas decisões, por meio de seus representantes eleitos por voto popular por ocasião das eleições e que consiga articular as suas diferentes forças e potencialidades internas, como são o novo exército de universitários, gestores, profissionais e políticos indígenas. A elite de lideranças indígenas que frequenta Brasília e que tenta fazer interlocução junto ao governo precisa envolver, contar e somar força com esses outros novos segmentos indígenas tão importantes para as lutas por direitos cada vez mais complexas.
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'A PEC 215 ameaça todos os segmentos sociais’, diz o antropólogo Gersem Baniwa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU