02 Fevereiro 2015
"Nós agora nos contentaremos somente em colocar sobre uma mesa ideal dois alimentos muito simples, reais e metafóricos ao mesmo tempo: o pão e o vinho", escreve Gianfranco Ravasi, presidente do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado por Avvenire, 30-01-2015. A tradução é de Benno Dischinger.
Eis o artigo.
Em seu Breviário alemão Brecht ironizava: “Para quem está no alto, falar de comer é coisa baixa. Entende-se: eles já comeram!”. Desta vez, no entanto, também aqueles que estão no alto compreenderam que é necessário falar de uma realidade cotidiana como é a comida e a Expo de Milão é disso uma atestação explícita. Também em alto nível se é consciente que o cavaleiro negro do Apocalipse (6,5-6), que rege uma balança para mensurar os produtos alimentares, continua ainda hoje a correr por tantas regiões do nosso planeta onde, infelizmente, com frequência convivem aqueles que têm mais comida do que apetite e aqueles que têm mais apetite do que comida.
É sabido que a famosa frase altissonante Der Mensch ist was er isst, “o homem é que come” do filósofo do século XIX Feuerbach, é considerada como um emblema do materialismo. Na realidade, todavia, poderia ser assumida com outra interpretação. A comida, de fato, em todas as culturas é também símbolo de comunhão na alegria (se pense nas parábolas nupciais de Jesus que incluem um banquete), na dor (“comer o pão do luto” é uma conhecida locução bíblica, e as refeições fúnebres ainda são praticadas em muitas nações), na hospitalidade (basta ler a deliciosa cenazinha de Abraão que acolhe os três hóspedes desconhecidos no capítulo 18 do Gênesis).
Tinha razão o magistrado francês Anthelme Brillat-Savarin quando observava, em sua célebre Fisiologia do gosto 1825), que “os animais se nutrem, o homem come, o homem de espírito almoça”. Se avançássemos na estrada da simbologia religiosa da comida, deveríamos, na prática, desvendar um inteiro horizonte metafórico: há o banquete pascoal do êxodo, o litúrgico dos ‘sacrifícios de comunhão’ no templo com as carnes imoladas, há o banquete messiânico e escatológico, signo de plenitude e de alegria, há aquele sapiencial de cunho ético (leia-se o capítulo 9 dos Provérbios) e há a ceia eucarística de Cristo, para não falar depois da moral configurada precisamente em abertura à Bíblia com a imagem de um fruto “bom de comer, agradável aos olhos e desejável”, aquele da árvore do conhecimento do bem e do mal (Gn. 3,6).
Os banquetes têm um relevo curioso no interior da história de Jesus. Ele, de fato, aceita com frequência sentar à mesa, sem reparar muito nas pessoas que o convidam: uma vez é um fariseu a tê-lo como hóspede, em outra vez é um publicano como Zaqueu ou Mateus. E num certo momento até se murmurará dele: “Aquele recebe os pecadores e come com eles” (Lc 15,2). Além disso, Jesus gosta de usar o símbolo do banquete, principalmente nupcial, para falar do Reino de Deus: se pense na parábola dos convidados a núpcias (Mt 22,1-4), ou aquele das virgens estultas ou prudentes (Mt 25,1-13). Até se chegará a dizer que ele é “um comilão e beberrão, amigo dos publicanos e dos pecadores”, em contraste com o ascético João Batista “que não come pão e não bebe vinho” (Lc 7, 33-34).
Na tradição cristã as duas primeiras obras de misericórdia ‘corporal’ são precisamente o “dar de comer aos famintos e dar de beber aos sedentos”. Há duas cenas emblemáticas a esse respeito na Bíblia. A primeira é aquela na qual Deus se apressa em procurar – como um pai de família – comida e alimento ao seu povo em marcha no deserto (a água que brota do rochedo, o maná e as codornizes). A outra cena é aquela em que Jesus distribui pão e peixes para a multidão que o está seguindo, multiplicando aquele pouco alimento que estava à sua disposição.
Nós agora nos contentaremos somente em colocar sobre uma mesa ideal dois alimentos muito simples, reais e metafóricos ao mesmo tempo: o pão e o vinho. Paul Claudel, em seu Anúncio a Maria escrevia: “Interroga a velha terra, ela te responderá com o pão e com o vinho”. Estes são os arquétipos da alimentação, tanto é verdade que em hebraico ‘lehem’, “pão”, tem a mesma raiz do vocábulo que indica a guerra, precisamente porque se trata de uma conquista primária da existência. Um autor espiritual, o jesuíta Charles Pierre, declarava: “O pão conserva quase uma majestade divina. Comê-lo no ócio é do parasita; ganhá-lo laboriosamente é um dever; recusar-se a dividi-lo é do cruel”.
Ora, na Bíblia, com o pão, se remete ao alimento em sentido geral, tanto é verdade que “comer o pão” é uma expressão que significa simplesmente ‘alimentar-se’. No Oriente Próximo não se pode dar o pão aos animais; quando se encontra um pão caído por terra, ele é recolhido e limpado, e ainda hoje os árabes não cortam o pão com a faca para não ‘matá-lo’, considerando-o quase como uma criatura viva. O pão dos pobres era de cevada, sendo o grão raro e precioso. É sabido, no entanto, que o pão mais comum era o ázimo, isto é, uma espécie de massa não levedada, de fácil preparação no deserto e sem forno (bastava uma lastra aquecida de pedra ou de metal).
O verdadeiro empenho religioso - anunciava Isaías (25,7)- consiste no “dividir o pão com o faminto”. E mesmo, como deveria ser também para nós cristãos (o é para o uso muçulmano do Ramadan), o jejum não é uma dieta ou um gesto masoquista, e sim um ato penitencial de afastamento do bem-estar para transformá-lo em caridade para os míseros.
Exemplares são ainda as palavras de Isaías: “É este o desjejum que eu (o Senhor) quero: solta as algema iníquas, desata os elos da canga, liberta os oprimidos e despedaça qualquer jugo. Não consiste talvez (o verdadeiro jejum) em dividir o pão com o faminto, em acolher em casa os míseros, os sem teto, em vestir alguém que está nu?“ (58,6-7). Jesus deu um relevo espiritual ulterior ao pão: a eucaristia, na linguagem neo-testamentária era definida como “a fração do pão” (Atos 2,42), porque com aquele gesto se assinalava a comunhão de todos os fiéis com Cristo e entre eles.
Naquele rito tipicamente cristão no qual o pão se torna o corpo de Cristo que se doa e comunica aos fiéis, se tem outra presença ‘material’ transfigurada no signo eficaz do sangue de Cristo, ou seja, o vinho. Esta bebida tinha para a Bíblia também um valor imediato e realista, sendo expressão de festa e de alegria. O Salmo 104,15 o canta como aquilo que “alegra o coração do homem”.
A era messiânica é pintada sob imagens ‘enológicas’: “Virão dias nos quais dos montes destilará o vinho novo e correrá colinas abaixo”; “Preparará o Senhor dos exércitos um banquete de vinhos excelentes, de alimentos suculentos, de vinhos refinados” (Am 9,14 e Is 25,6). Na Bíblia, a partir de Noé, o vinho constitui uma presença simples e espontânea, com suas capacidades de gerar alegria, amor, amizade, festa, mas também com os seus riscos.
Evocamos a esse respeito duas passagens muito brilhantes: O Sirácida, sábio do século II, escreve: “Não façam forte uso do vinho porque ele mandou muitos à ruína.. O vinho é como a vida para os homens, beba-o com medida. Que vida é aquela de quem não tem vinho? Ele, de fato, foi criado para alegria dos homens. Alegria do coração e felicidade da alma é o vinho bebido com tempo e sob medida. Amargura da alma é o vinho bebido em quantidade, com excitação e por desafio. A embriaguez aumenta a ira do estúpido para sua ruína...” (31,25-300. Nos Provérbios, ao invés, se tem um retrato vivo do bêbado: “Não olhar o vinho quando enrubesce, quando cintila no copo e desce devagar, devagar; acabará por morder-te como uma serpente. Os teus olhos verão coisas estranhas e tua mente dirá coisas desconexas. Te levará a jazer em alto mar ou de dormir em cima da árvore mestra...” (leia-se Pr 23,29-35).
A religião cristã não é, portanto, uma vaga emoção que nos convida a descolar da realidade em direção a céus místicos e mistificantes. É uma fé ligada aos corpos, à história, à existência. Uma sociedade apressada e superficial que engole comidas à toa num fast food, que ignora o desperdício alimentar, que se enfada quando se evoca o espectro da fome no mundo, que se opõe à hospitalidade, perdeu não só a dimensão simbólica do alimento, mas também a espiritualidade que naquele signo é selada.
Por isso, retornar à civilização e à simbologia do alimento tem valor cultural e espiritual.
Talvez não exagerasse o escritor inglês Charles Lamb, que viveu entre os séculos dezoito e dezenove, quando nos seus Ensaios de Elias escrevia: “Detesto o homem que engole o seu alimento afetando não saber que coisa come. Duvido de seu gosto em coisas mais importantes”.
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Expo 2015 – O banquete da vida plena - Instituto Humanitas Unisinos - IHU