29 Janeiro 2015
Os 43 estudantes da Escola Normal Rural da Ayotzinapa deixaram o mundo dos desaparecidos e entraram oficialmente no dos mortos. Na terça-feira, as autoridades mexicanas concluíram, já sem indício de dúvida, que os jovens foram capturados, assassinados e incinerados. E tudo por uma terrível confusão: os pistoleiros de Guerreros Unidos acreditavam que eram integrantes de um cartel rival, Los Rojos.
A reportagem é de Jan Martínez Ahrens, publicada pelo jornal El País, 28-01-2015.
A conclusão, inteiramente rejeitada pelas famílias, abre caminho para o encerramento de um caso que convulsionou o país como poucos na história recente e cuja persistência nas primeiras páginas, alimentada por dúvidas sobre a investigação oficial, fez dele um hóspede incômodo para o Executivo. Um foco de erosão e protesto diante do qual o presidente, cuja popularidade chega a mínimos históricos, decidiu virar a página: “Estou convencido de que este instante, este momento da história do México, de sofrimento, tragédia e dor, não pode nos deixar imobilizados; não podemos ficar aí”.
JAN MARTÍNEZ AHRENS
Pai de uma das vítimas, no lixão onde estudantes foram mortos. / SAÚL RUIZ
Neste novo capítulo da tragédia de Iguala teve um papel fundamental a recente detenção do Felipe Rodríguez Salgado, também conhecido como El Cepillo. O pistoleiro de Guerreros Unidos, líder de uma célula de 10 criminosos, foi o homem que, segundo confissão própria, recebeu de seu chefe a instrução de liquidar os estudantes. O núcleo de sua horripilante declaração fala por si: “O Chucky [seu chefe] me telefonou para dizer que iam me entregar dois pacotes com detidos e que eram de Los Rojos […] Eram entre 38 e 41, não contei; alguns vinham amarrados com cordas ou algemados, e outros espancados e ensanguentados […]. Ao chegar ao lixão de Cocula, descemos os estudantes das caminhonetes. Percebi que alguns, os que estavam por baixo, já tinham morrido, acredito que por asfixia. Continuavam vivos 15 a 18 estudantes […]. Mandei El Pato se encarregar de tudo, interrogar, dar um fim neles e destruir tudo […]. El Pato já tinha deitado quatro no chão e deu um tiro na nuca deles”.
Com essa explosiva confissão na mão, o Governo mexicano decidiu pôr ponto final nas especulações sobre a tragédia de Iguala. Para isso, pôs diante das câmaras o procurador-geral, Jesús Murillo Karam, e o diretor da Agência de Investigação Criminal, Tomas Zerón. Ambos repassaram minuciosamente as investigações efetuadas: 487 relatórios periciais, 386 declarações, 99 detidos, 95 telefones celulares investigados, 14 registros… Dessa bateria de provas destacaram os restos ósseos (um deles identificado pelo DNA como pertencente ao normalista Alexander Mora Venancio), os vestígios da fogueira que supostamente consumiu os cadáveres, as confissões dos pistoleiros e dos agentes municipais, os reconhecimentos dos sobreviventes, assim como as conexões e localizações dos telefones celulares naquela noite. Tudo isso permitiu oferecer um quadro final, “uma verdade histórica” do ocorrido, e que, em essência, corresponde à reconstrução oficial conhecida desde novembro passado.
Relato do horror
O relato começa na tarde de 26 de setembro, quando os normalistas entraram em Iguala (Guerrero) com a intenção de arrecadar recursos para suas atividades e tomar à força quatro ônibus para participar dos atos em memória da matança de Tlatelolco na Cidade do México. Sua chegada a uma localidade dominada pelo cartel de Guerreros Unidos não passou inadvertida. Os falcões alertaram seus chefes, entre eles o próprio prefeito e sua esposa, dois importantes integrantes da organização criminosa. A ordem de pará-los terminou em loucura. A Polícia Municipal de Iguala, um terminal do narco, iniciou uma feroz perseguição que deixou seis mortos sobre o asfalto e permitiu a captura de 43 estudantes aterrorizados. Para apagar rastros, colocou-os nas mãos dos agentes do município vizinho de Cocula, igualmente corruptos. Os pistoleiros estavam convencidos de que entre os estudantes havia membros do cartel rival, Los Rojos. E da captura se passou ao extermínio. Os normalistas foram entregues aos pistoleiros em Lomas Del Coyote. Colocados em duas caminhonetes, foram levados para o depósito de lixo de Cocula. Empilhados como animais, um em cima do outro, a maioria chegou morta por asfixia. Os sobreviventes foram mortos com um tiro na nuca. Seus cadáveres foram incinerados em uma fogueira e os restos, sempre segundo essa versão, jogados em sacos de lixo no rio San Juan.
Em vista da abundância de testemunhos, a intenção governamental de virar a página vai ser difícil de cumprir. O próprio procurador-geral reconheceu que enquanto não forem detidos todos os envolvidos a investigação continuará aberta. Entre os foragidos estão os chefes de polícia de Iguala e Cocula e também os tenentes do Guerreros Unidos que deram a ordem de matar os estudantes. Seus testemunhos são peças-chave para esclarecer as últimas dúvidas. Entre elas, a fundamental: por que os pistoleiros acharam que os estudantes eram de um cartel rival. Murillo Karam assinalou que não há prova que indique a presença de infiltrados do narcotráfico entre os estudantes. E se é assim, o que ocasionou essa terrível confusão?
Tampouco será fácil para o Governo, em pleno ano eleitoral, restaurar a confiança. As famílias dos falecidos se distanciaram das teses oficiais. Para muitos deles, o Executivo carece de credibilidade e se nega a chegar ao final da trama. “Repudiamos a forma de atuação do Governo, pretendem encerrar o caso de maneira descarada, sem se importar com o dano que causam às famílias. Não bastam as declarações dos assassinos, queremos uma demonstração científica. Os pais continuam na luta”, assinalou o porta-voz das famílias, Felipe de la Cruz. “Na falta de informação detalhada, não podemos permitir que este caso seja encerrado de um dia para outro”, afirmou o representante dos normalistas, David Flores.
Em meio à tempestade, alguns veículos de imprensa chegaram a apontar a responsabilidade do Exército e da Polícia Federal na matança. Uma acusação desmentida pelas autoridades mexicanas. Mas a fogueira dificilmente se apagará. Os protestos pela tragédia de Iguala continuam reunindo milhares de pessoas e, em um país que se viu sacudido em poucos meses por uma sucessão de escândalos nas mais altas esferas, qualquer fagulha pode aprofundar a crise.
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"Mandei matarem os estudantes e destruírem tudo" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU