23 Janeiro 2015
Na última quarta-feira foi publicada uma entrevista interessante com Dom Georg Gänswein no Christ & Welt, suplemento semanal do jornal alemão Die Zeit. Ela lança luz sobre alguns recentes desenvolvimentos no Vaticano, tais como o discurso do Papa Francisco no Natal à Cúria, a relação deste papa com a imprensa, o Sínodo e o Papa Emérito Bento XVI. Vale a pena ler.
A entrevista foi reproduzida por Mark de Vries, no seu blog In Caelo et in Terra, 22-01-2015. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Eis a entrevista.
No Natal, o Papa Francisco causou certo furor com a seu discurso sobre as 15 doenças (ou males) da Cúria Romana. O senhor estava sentado próximo dele. A que altura do discurso o senhor parou de contar?
Na qualidade de prefeito da Casa Pontifícia, como sempre em ocasiões assim, fico à direita do papa. E, também como sempre, eu tinha uma cópia do discurso em minha pasta, mas não tive tempo de lê-lo com antecedência. Quando a lista das doenças começou a ser lida, pensei comigo: “Agora vai ficar interessante”, e foi o que aconteceu. Eu contei até a nona doença...
O que se passou pela sua cabeça?
Geralmente, o papa usa a recepção do Natal para a que a Cúria faça uma retrospectiva do ano que se passou e uma projeção para o ano seguinte. Desta vez foi diferente. O Papa Francisco preferiu realizar um exame de consciência com os cardeais e bispos.
Achou que o discurso se dirigia ao senhor também?
É claro que me perguntei: “A quem esta fala diz respeito? Quais doenças me afetam? O que precisa ser corrigido?” A certa altura, tive que pensar em minhas caixas com objetos de minha mudança…
O senhor se refere à anedota sobre a mudança de um jesuíta, com incontáveis bens? Francisco disse que esta mudança era um sinal da “doença de acumular”.
Exatamente. Desde que deixei o Palácio Apostólico, após a saída do Papa Bento em fevereiro de 2013, muitas de minhas coisas ainda estão encaixotadas. Mas não consigo ver um sinal de doença aí.
O que o Papa Francisco pretendeu com este ato de flagelação? Ele pode ser desmotivador...
Esta é uma pergunta que muitos dos meus colegas também se fazem. O Papa Francisco está no cargo há quase dois anos e já conhece bem a Cúria. Ele obviamente achou necessário falar de forma clara e realizar um exame de consciência.
Quais foram as reações?
Foi uma bomba para a imprensa, evidentemente. Durante a fala, pude ver as manchetes: “Papa castiga os prelados da Cúria”, e outras deste tipo. Infelizmente, para quem estava de fora ficou a impressão de que havia uma rixa entre o papa e a Cúria. Tal impressão é enganadora e não corresponde com a realidade.
O discurso dele foi criticado internamente?
As reações variaram. Elas foram desde a surpresa até um estado de choque e incompreensão.
Talvez com Francisco a Cúria precise se ajustar aos exercícios espirituais permanentes.
Ela já se ajustou a isto. O Papa Francisco não faz nenhum segredo sobre a sua formação religiosa. Ele é um jesuíta, moldado do começo ao fim pela espiritualidade do fundador de sua ordem, Santo Inácio de Loyola.
Quais são os seus pensamentos sobre Francisco, dois anos após sua eleição?
O Papa Francisco é um homem que deixou claro, desde o início, que ele lida diferentemente com as coisas que ele vê diferentemente. Isto é verdadeiro para a escolha de onde vive, o carro que utiliza, todo o processo das audiências em geral... Poder-se-ia pensar que ele estava se acostumando com as coisas no começo e que buscava um grau significativo de flexibilidade. Hoje, isso tornou-se um padrão. O Santo Padre é um homem de criatividade extraordinária e um latino-americano entusiasmado.
Muitos ainda se perguntam para onde estamos indo?
Se escutarmos atentamente as palavras do papa, ouviremos uma mensagem clara nelas. No entanto, a questão continuamente se levanta: Aonde Francisco quer levar a Igreja? Qual o seu objetivo?
Um ano atrás o senhor disse: “Ainda estamos à espera de padrões substanciais”. Estes podem ser vistos agora?
Sim, muito mais claramente do que há um ano. Consideremos a carta apostólica Evangelii Gaudium. Nela, ele apresentou um modelo para o seu pontificado. Além disso, publicou documentos importantes e fez falas também importantes ao longo do ano, tais como aquelas em Strasbourg para o Parlamento Europeu e o Conselho da Europa. Os contornos se tornaram claramente visíveis e prioridades foram estabelecidas.
Tais como...
A prioridade mais importante é a missão, a evangelização. Não autoflagelo, não autorreferência, mas sim partilha do Evangelho com o mundo. Esse é o lema.
O senhor concorda com Francis George, arcebispo emérito de Chicago que criticou o fato de que as palavras do pontífice são, geralmente, ambivalentes?
Houve, realmente, casos em que o porta-voz do Vaticano precisou esclarecer alguns assuntos depois de declarações particulares. As correções são necessárias quando certas falas conduzem a incompreensões.
O Papa Francisco tem uma melhor relação com a imprensa do que o seu predecessor Bento?
Ele lida com os meios de comunicação de forma eficiente. Ele os usa intensa e diretamente.
Quem são os assessores mais próximos dele?
Esta pergunta sempre é feita. Eu não sei [quem são].
Com os Sínodos sobre a família do último mês de outubro e do próximo, Francisco criou um ponto focal. Em particular, a questão de se permitir os fiéis divorciados e recasados participarem dos sacramentos causa grande desacordo. Alguns têm também a impressão de que Francisco está mais preocupado com o trabalho pastoral do que com a doutrina...
Não partilho desta impressão. Ela cria uma oposição artificial que não existe. O papa é o primeiro garantidor e guardião da doutrina da Igreja e, ao mesmo tempo, o primeiro pastor. Doutrina e trabalho pastoral não estão em oposição, são como irmãs gêmeas.
O papa atual e o papa emérito assumem pontos de vista opostos no debate sobre os católicos divorciados e casados novamente no civil?
Desconheço alguma declaração doutrinal do Papa Francisco que seja contrária às declarações de seu predecessor. Isto seria absurdo também. Uma coisa é enfatizar os esforços pastorais de maneira mais clara porque a situação assim exige. Outra coisa é realizar, por inteiro, uma mudança no ensinamento. Eu só posso agir com consistência, consciência e sensibilidade pastoral quando assim o faço com base no pleno ensinamento católico. O conteúdo dos sacramentos não é deixado aos critérios dos pastores, mas foi dado à Igreja pelo Senhor. Isto é também e especialmente verdadeiro para o Sacramento do Matrimônio.
Houve uma visita de alguns cardeais ao Papa Bento durante o Sínodo para que ele intervisse no sentido de resguardar o dogma?
Não houve uma tal visita ao Papa Bento. Uma suposta intervenção pelo papa emérito é pura invenção.
Como Bento responde às tentativas pelos círculos tradicionalistas de reconhecê-lo como um antipapa?
Não foram os círculos tradicionalistas que tentaram fazer isto, mas sim teólogos e alguns jornalistas. Falar de um antipapa é simplesmente um absurdo, e também irresponsável.
Recentemente, houve especulações sobre uma contribuição publicada no quarto volume das Obras Completas de Joseph Ratzinger. O autor mudou algumas conclusões sobre o tópico dos fiéis divorciados e recasados para um sentido mais estrito. Com isto, Bento quer se envolver no debate sinodal?
De forma alguma. A revisão do texto em questão, datado de 1972, foi feita e enviada ao editor muito antes do Sínodo. Deve-se lembrar que todo o autor tem o direito de fazer alterações em seus escritos. Qualquer pessoa informada sabe que o Papa Bento não partilhava das conclusões da dita contribuição desde 1981, o que já faz mais de 30 anos. Como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, ele manifestou isto claramente em vários comentários.
Então a publicação da nova edição coincidindo com o Sínodo foi apenas circunstancial...
O quarto volume das Obras Completas, no qual o capítulo está impresso, deveria ser publicado em 2013. A publicação atrasou por vários motivos e aconteceu somente em 2014. Era absolutamente imprevisto que um sínodo sobre a família iria acontecer naquele período.
Sobre a renúncia, Bento XVI disse que estaria vivendo “escondido do mundo”. No entanto, ele continua fazendo aparições públicas. Por quê?
Quando ele se faz presente em eventos importantes da Igreja, assim acontece porque foi pessoalmente convidado pelo Papa Francisco. Por exemplo, quando ele participou no consistório do último mês de fevereiro, na canonização de João Paulo II e João XXIII em abril e também na beatificação de Paulo VI, em outubro. Ele também escreveu uma saudação pela inauguração do Auditorium Maximum, da Pontifícia Universidade Urbaniana, em Roma, que leva seu nome. O Papa Bento foi convidado para participar da inauguração, mas não aceitou.
Na saudação, que o senhor leu no lugar do Papa Bento, ele faz claramente declarações teológicas. “A eliminação da verdade é letal para a fé”, escreveu.
Este texto foi uma importante contribuição para o assunto “Verdade e Missão”. Poderíamos ouvir um alfinete cair ao chão, [pois] fez-se muito silêncio durante a leitura naquele auditório cheio. Com um conteúdo sábio, é um texto clássico teológico. O Papa Francisco, que recebeu o texto de Bento com antecedência, ficou muito impressionado e o agradeceu por isso.
Bento fala às vezes sobre o seu afastamento? Como ele está?
Ele está em paz consigo mesmo e convencido de que a decisão foi correta e necessária.
O senhor lutou contra a renúncia histórica de Bento em fevereiro de 2013. Como enxerga isto hoje?
É verdade que a decisão foi um momento difícil para mim. Internamente, não foi fácil aceitá-la. Lutei para superá-la. Esta luta, há muito, já acabou.
O senhor jurou ser leal a Bento XVI até a morte. Isso também quer dizer que irá permanecer ao seu lado e também no Vaticano?
No dia de sua eleição como papa, prometi ajudá-lo in vita et in morte. É claro que eu não levei em conta uma renúncia papal na época. Mas a promessa ainda é verdadeira e continua válida.
Os bispos deveriam ser pastores. Como arcebispo na Cúria Romana, o senhor às vezes se sente um pastor sem um rebanho?
Sim, às vezes. No entanto, cada vez mais eu recebo convites para confirmações, missas de aniversário e outras celebrações. Incialmente, eu respondia negativamente e aceitava apenas alguns pedidos. Mas isso mudou nos últimos tempos. O contato direto com os fiéis é muito importante. É por isso que aceito compromissos pastorais sempre que for possível e compatível com minhas outras obrigações. Isto é bom e necessário. É também o melhor remédio conter uma das doenças da Cúria mencionada pelo Papa Francisco: o perigo de se tornar um burocrata.
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Francisco e o exame de consciência com os cardeais e bispos. Entrevista com Georg Gänswein - Instituto Humanitas Unisinos - IHU