16 Janeiro 2015
Marcelo Garcia sustenta, a propósito da barbárie em Charlie Hebdo que, como todas as liberdades, a de expressão é contextual, marcada em normas, costumes, climas de época e consensos sociais, reclama uma ordem mundial com novas normas de convivência e descarta o “olho por olho” como alternativa.
O artigo é de Marcelo J. Garcia, licenciado em Ciências da Comunicação (UBA-FSOC) e integrante de SIDbaires, publicado pelo jornal argentino Página/12, 14-01-2015.
Eis o artigo.
Ser Charlie ou não ser Charlie está longe de ser a pergunta que o Ocidente tem que responder na hora de pensar e exercer suas liberdades, entre elas a liberdade de expressão, num teatro de operações global marcado pela irracionalidade e pelo temor.
O mundo se fez aldeia global a la Mac Luhan, mas esqueceu de escrever regras globalmente aceitas. O sistema das Nações Unidas e o Direito Internacional nascido à luz do fim da Segunda Guerra Mundial ficou encurralado sob os escombros das Torres Gêmeas e das “guerras preventivas” no Oriente Médio nas últimas décadas. Sem eles não fica quase nada que a “comunidade internacional” aceite como comum e legítimo.
O Ocidente irradiou os seus valores ao mundo, bem intencionado e interessado ao mesmo tempo, de que sua visão dominasse a cultura global. Conseguiu, porém só pela metade. E hoje o mundo está ingressando sem retorno numa nova Westphalen planetária cuja marca principal é a regionalização da disputa pela hegemonia.
Entre a comédia absurda em torno do The Interview, cuja especificação do assassinato de Kim Jong-um causou uma torção diplomática entre os Estados Unidos e a Coréia do Norte, e a tragédia desatada contra a revista Charlie Hebdo em Paris, há uma curta distância que revela um desafio mais profundo para o Ocidente: como defender seus valores num mundo que não os toma – nem os tomará – como próprios.
Não faz falta cair no reducionismo religioso do choque das civilizações de Samuel Huntington para comprovar que existe um conflito estrutural. A questão religiosa é somente a ponta do iceberg da disputa geopolítica, ou a forma mais reducionista de explicá-la.
Henri Kissinger, que dificilmente pode ser acusado de anti-ocidental, escreve num livro publicado faz poucos meses (World Order. Reflections on the Character of Nations and the Course of History. Allen Lane, 2014) que aquilo de que necessita o mundo é precisamente uma ordem mundial na qual as grandes tradições continentais ou regionais do mundo (Europa, Estados Unidos, Islã e China, enumera) acertem um conjunto mínimo de regras de convivência. A ordem, escreve Kissinger, tem que ser “cultivada, não imposta” e refletir “duas verdades”, a saber: “A ordem sem liberdade ... gera eventualmente seu contrapeso; mas a liberdade não pode ser assegurada ou sustentada sem um marco de ordem que consiga manter a paz”. Ordem e liberdade, conclui, não são opostos, senão interdependentes.
A reação natural do Ocidente de defender a liberdade de expressão em termos absolutos ante a barbárie é sã e mostra a solidez de seus valores. Mas, o que resta e a pergunta sobre se, mais além da reação espasmódica ante o horror, marchar pelas ruas da Europa com cartazes que dizem “Eu sou Charlie” é a forma mais inteligente e efetiva de fazê-lo.
Como todas as liberdades, a de expressão é contextual, fixada em normas, costumes, climas de época e consensos sociais. A ordem que requer a liberdade para existir é a ordem que requer responsabilidade em seu exercício. Os governos dos Estados Unidos e da França entenderam isto quando em setembro de 2012 pediram em uníssono a Charlie Hebdo que deixasse por um momento de lado sua habitual e orgulhosamente declarada “irresponsabilidade” e evitasse publicar uns desenhos do profeta Maomé desnudo. Ninguém questionou o direito da revista de publicar o que quisesse, mas questionou, sim, a decisão de fazê-lo num contexto marcado pela violência. A revista seguiu adiante e o governo da França decidiu fechar, por precaução, 20 de suas embaixadas.
Os governos das democracias ocidentais têm o mandato e o dever de defender a liberdade de todos os que querem ser Charlie, mas tanto governos como cidadãos têm a responsabilidade de entender o mundo em que vivem e tratar de construir, com seus atos concretos e cotidianos, o mundo no qual querem que vivam seus netos. As caricaturas de Charlie Hebdo, mal que nos pese, se inscrevem no sintagma de um mundo no qual se visualizam pelas redes as decapitações do Estado Islâmico tanto como as torturas de Guantánamo. O olho por olho vai deixar-nos cegos. E a possibilidade de que surja uma ordem mundial visível é que seus integrantes mantenham seus próprios valores, porém com olhos bem abertos adquiram também, como adverte Kissinger, uma “segunda cultura que seja global, estrutural e jurídica; um conceito que transcenda as perspectivas e os ideais de uma região ou de uma nação”. Sim, o Ocidente também.
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Ser ou não ser Charlie - Instituto Humanitas Unisinos - IHU