12 Janeiro 2015
"Eu gostaria de acreditar que o Pontifício Conselho para a Cultura tem as melhores intenções ao solicitar tais reflexões às mulheres, mesmo se isto foi feito da maneira mais inadequada e de forma mais virtual possível", escreve Jamie Manson, editora de livros do National Catholic Reporter e mestre em Teologia pela Yale Divinity School, onde estudou teologia católica e ética sexual, em artigo publicado pelo National Catholic Reporter, 07-01-2015. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Eis o artigo.
No quinto dia de Natal, o Vaticano aparentemente deu um presente às católicas ao redor do mundo.
Não, não foram cinco anéis dourados, mas sim a oportunidade de fazerem um vídeo de um minuto para o Pontifício Conselho para a Cultura.
O Pontifício Conselho para a Cultura, um dos dicastérios ou departamentos da Cúria Romana, anunciou que a sua assembleia de fevereiro seria dedicada ao tema das “Culturas Femininas”.
O dicastério convidou todas as católicas (ou, pelo menos, aquelas que prestavam atenção ao website do Vaticano nos dias após o Natal) para enviarem um pequeno vídeo em resposta a questões que parecem ser mais apropriadas a um grupo de adolescentes: “Quem é você?” e “O que você acha sobre ser mulher?”, ou ainda: “O que você pensa sobre os seus pontos fortes, as suas dificuldades, o seu corpo e a sua vida espiritual?”
Não só o dicastério supôs que o todo da experiência feminina poderia se reduzir a um vídeo de 60 segundos como também que um tal feito poderia ser realizado em menos de uma semana. O prazo para o envio foi dia 4 de janeiro.
A solicitação dos vídeos, admite livremente o dicastério, foi uma tentativa de angariar informações sobre a vida feminina. Eles até mesmo criaram uma hashtag para a iniciativa: #LifeofWomen [Vida das mulheres].
Segundo o site do Pontifício Conselho para a Cultura, a ideia para a escolha deste tema surgiu numa das “sessões de reflexão e pesquisa interna” feitas por membros do dicastério e consultores. Pode-se perguntar como devem ter sido estes momentos, dado que os membros são 14 cardeais (incluindo os cardeais Gerhard Müller e Angelo Scola), 14 bispos e quatro “homens de cultura”; e os consultores são 27 leigos e sete leigas. Após ruminarem sobre a vida das mulheres, estes 59 homens e sete mulheres apresentaram as suas ideias para uma comissão ad hoc chamada Consulta Femminile.
Em algum momento durante este processo, nasceu a ideia de se fazer o vídeo.
Os vídeos, lê-se no site do Vaticano, serão vistos “por um círculo de mulheres apoiadoras que ajudam o Dicastério”. Supõe-se que este seja o mesmo grupo de mulheres que estão também na comissão Consulta Femminile.
Eis o problema: os nomes das mulheres neste círculo jamais são mencionados, nem são os nomes das que participam no Consulta Femminile. Na verdade, depois de uma extensa pesquisa, pude localizar os seus nomes em outro lugar.
O site é também vago sobre quem irá, de fato, escolher os vídeos que serão mostrados no encontro dos cardeais e bispos em Roma, no mês de fevereiro. Portanto, este processo – como a maioria dos processos no Vaticano – está envolto de mistérios.
Este processo poderá ser confiável, visto que as produtoras dos vídeos não fazem ideia de quem serão as julgadoras? Ora, sejamos honestos. Dado o histórico recente do Vaticano em escolher mulheres conservadoras para se juntar à Comissão Teológica Internacional e dado o calibre conservador das mulheres que ajudaram a organizar o recente congresso do Vaticano sobre a complementaridade de gênero, são poucas as chances de que alguma participante na comissão Consulta Femminile seja uma teóloga feminista, proponente do uso de contraceptivos ou defensora da ordenação feminina.
O Papa Francisco deixou claro o seu profundo compromisso em exaltar as virtudes do planejamento familiar natural e da complementaridade de gênero, então por que deveríamos esperar que as mulheres que estão “ajudando o Dicastério” pensem diferente?
Mas, talvez, o mais problemático de tudo seja a questão de quais pessoas irão se envolver neste projeto.
A habilidade de se fazer um vídeo e torná-lo disponível na internet é ainda um privilégio desfrutado por relativamente poucas mulheres ao redor do mundo. Assim, estes vídeos, em sua natureza, já serão autosseletivos.
A triste ironia é que muitas das mulheres que mais sofrem nas mãos do patriarcado e da desigualdade de gênero não são as que, provavelmente, têm acesso a smartphones ou computadores, sem citar o acesso à internet capaz de carregar vídeos de um minuto. Como Phyllis Zagano demonstrou, pontualmente, em seu artigo publicado semana passada no National Catholic Reporter – intitulado “What are they thinking at the Vatican?” –, estas são as mulheres que o Vaticano mais precisa ouvir.
A esperança, obviamente, é que as mulheres que têm o privilégio de fazer estes vídeos usem uma parte de seu tempo de um minuto para dar a voz às demais. Mas mesmo se fizerem, a falta de transparência concernente aos membros do gruo Consulta Femminile e a falta de participação entre as mulheres mais pobres do mundo criam riscos muito sérios de resultados distorcidos.
A campanha #LifeofWomen parece estar sofrendo de um problema semelhante ao do Sínodo dos Bispos sobre a família. Uma vez mais, temos um grupo de padres privilegiados e poderosos analisando questões sobre as quais não têm experiência direta. E, novamente, estes religiosos estão se negando a falar diretamente com a base ampla de católicos e católicas que mais são impactados pelos ensinamentos da Igreja sobre os assuntos tratados.
O pior de tudo, este projeto em particular permite que a hierarquia diga que escutaram as vozes das mulheres sem ter que fazer nenhum esforço para travar um diálogo genuíno. (Já posso ouvir o argumento: “Absolutamente, as mulheres não têm voz na Igreja!” “Ora, o Vaticano tentou dar voz a elas através deste projeto de vídeo.”)
Eu gostaria de acreditar que o Pontifício Conselho para a Cultura tem as melhores intenções ao solicitar tais reflexões às mulheres, mesmo se isto foi feito da maneira mais inadequada e de forma mais virtual possível. As obscuridades, porém, que cercam o processo de seleção dos vídeos, a exclusão das vozes das mulheres em desvantagem e a realidade de que, em última instância, a hierarquia masculina irá ainda ter todo o poder de decisão me fazem perguntar se este dicastério está mais interessado em pacificar os críticos da Igreja do que em fazer uma tentativa autêntica e humilde de escuta às experiências globais femininas.
Agora, de tudo o que foi dito, admiro as mulheres que dedicaram o seu tempo para produzirem vídeos tão significativos e poderosos. Novas comunidades no Facebook e tuítes inteligentíssimos apareceram ao redor da hashtag #LifeofWomen. Enquanto via alguns dos tuítes e vídeos, percebi que a importância da campanha #LifeofWomen não depende de ter ou não sucesso em estabelecer um diálogo genuíno com a hierarquia. Em vez disso, o seu verdadeiro valor encontra-se nos diálogos mais profundos, nas conexões e dinâmicas que está gerando entre as católicas.
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Projeto do Vaticano chamado “#LifeofWomen”: o mal, o feio e o bom - Instituto Humanitas Unisinos - IHU