09 Janeiro 2015
No fim de todo mês de dezembro, a agência missionária do Vaticano chamada Fides apresenta uma lista de agentes pastorais mortos no cumprimento do dever durante o ano que se passou. Não é um índex completo da violência contra os cristãos, mas somente do clero e de leigos assassinados enquanto trabalhavam, em tempo integral, para a Igreja Católica.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada por Crux, 04-01-2015. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Do ano de 2014, a agência lista 26 vítimas, incluindo 17 sacerdotes, um irmão religioso, seis irmãs (freiras), um seminarista e um leigo catequista. A região da América Latina foi a mais perigosa, contando com 11 mortes, seguida pela África com 7.
Uma leitura atenta da lista apresentada desfaz três incompreensões comuns a respeito da violência contra os cristãos no século XXI.
O Oriente Médio não é o único lugar onde os cristãos correm risco, e o islamismo radical não é a única ameaça.
Das 26 vítimas, apenas duas – uma na Síria e outra na República Centro-Africana – foram mortas por grupos militantes muçulmanos.
Esta observação não minimiza o perigo posto pelas forças tais como o ISIS e o Boko Haram, mas faz notar um aspecto em particular: o islamismo radical poderia desaparecer amanhã, o que não significará que os cristãos estariam seguros.
É um erro pensar que os cristãos enfrentam ameaças apenas onde constituem uma minoria.
Dos mais de dois bilhões de cristãos no mundo, cerca de 200 milhões vivem em países ou regiões onde são estatisticamente uma minoria. No entanto, está claro que não é apenas nestes lugares que a violência acontece.
O país com o mais alto número de assassinatos de agentes pastorais em 2014 foi, na verdade, o México, a segunda maior nação católica do mundo – a primeira é o Brasil. A realidade é que não há regiões “livres de perigo”.
Precisamos de um conceito ampliado de martírio.
Tradicionalmente, a Igreja Católica definiu martírio como alguém morto “in odium fidei”, quer dizer, “em ódio da fé”. Um exemplo clássico é São Tomas More, assassinado pelo rei Henrique VIII por se recusar a renunciar a sua lealdade ao papa.
Embora mortes como esta ainda ocorram, a forma mais comum de violência contra os cristãos, hoje, é alguém ser morto por defender os direitos humanos, por resistir à injustiça, ou por simplesmente estar no lugar errado na hora errada.
Na lista de 2014, por exemplo, encontramos a Irmã Mary Paule Tacke, assassinada na África do Sul enquanto tentava visitar um orfanato que havia fundado. Foi agarrada por ladrões que tentavam fugir da polícia, e então estrangulada até a morte.
Encontramos o Pe. José Acuña Ascensción Osorio, sacerdote mexicano cujo corpo foi encontrado num rio perto de sua paróquia em Arcelia. A polícia acredita que ele fora sequestrado por uma das gangues locais, que geralmente mantém a cabeça das vítimas sob a água numa tentativa de extorqui-las, matando-as caso se recusem a pagar.
Há o Pe. Gerry Maria Inau e um catequista leigo conhecido como Benedict, mortos na Papua Nova Guiné enquanto realizaram trabalho pastoral numa área remota conhecida pela violência tribal. Eles podem ter sido alvo porque Inau e Benedict vinham de tribos diferentes, e vê-los trabalhar juntos pôde ter sido encarado como uma traição.
Ainda que não tecnicamente sendo parte da lista, a agência Fides também observa que a ordem missionária Fatebenefratelli, que se especializou na assistência à saúde, perdeu 18 pessoas (quatro irmãos, uma irmã e 13 agentes leigos) na Libéria e em Serra Leoa no ano de 2014 para o vírus ebola, pois se recusaram a parar de prestar tratamento aos doentes da região.
A rigor, poder-se-ia dizer que nenhuma destas pessoas são mártires porque elas não foram mortas em ódio da fé, no entanto esta conclusão apresenta um foco seletivo.
Por que os motivos que importam devem ser somente os do perpetrador, e não os da vítima? Para se compreender se houve um componente cristão numa determinada morte, precisamos entender não só o motivo por que alguém cometeu um ato criminoso como também por que o alvo se colocou numa posição tal onde o crime poderia acontecer.
A Irmã Tacke, por exemplo, nasceu em Idaho mas trabalhava na África do Sul desde a década de 1950. Originalmente, ela ia lecionar em áreas rurais a cavalo, até que as queixas sobre uma mulher branca que ensinava a crianças negras se tornaram demasiado fortes.
Ela então mudou e começou a ajudar crianças abandonadas e órfãs, muitas das quais infectadas pelo vírus HIV-AIDS. Ao trabalhar em bairros perigosos, ela frequentemente enfrentou a ameaça da violência, inclusive uma vez sendo vítima de um roubo de carro.
Tacke obviamente sabia dos riscos, então a questão é: Por que ela escolheu assumi-los? A resposta tem tudo a ver com suas crenças cristãs, fazendo de sua morte um martírio, no sentido original de uma testemunha da fé, em nada menor do que aquele de Tomas More.
Dificilmente os cristãos formam o único grupo que se vê diante de perseguições e violência, mas às vezes é mais difícil de se registrar histórias tais como estas no relatório da Fides, visto que nós, ocidentais, pelo menos diante da ascensão do ISIS, não estamos acostumados a pensar os cristãos como vítimas.
A realidade é que dois terços dos cristãos no mundo, hoje, vivem fora do ocidente global, muitos dos quais são membros de minorias étnicas, linguísticas e culturais, pondo-os – de forma dupla ou tripla – em risco. Em números absolutos, os cristãos são o grupo religioso mais perseguido no planeta atualmente.
Talvez esta seja uma lição final a ser aprendida a partir da lista da Fides – chegou a hora para pararmos de negar a violência contra os cristãos, onde quer que ela persista.
Um Natal ao estilo Bergoglio
Todos sabemos qual o estilo do Papa Francisco: despojado, engraçado, não julgador, humilde, espontâneo, um dissidente derrubando o sistema católico. Em geral, esta imagem é expressa por uma foto dele fazendo o sinal de positivo a uma multidão que o aplaude, acariciando um bebê sorridente ou segurando um papagaio em seus dedos.
(Imaginem que fonte de dinheiro seria se um fotógrafo o capturasse fazendo todas estas três coisas de uma só vez.)
Com certeza, esta não era a reputação do cardeal Jorge Mario Bergoglio em Buenos Aires. Muitos argentinos estão surpreendidos com o carisma que ele, agora, projeta, já que em casa ele era tido como sincero porém um pouco duro demais, tão moralmente sério que, às vezes, poderia parecer um tanto repreensivo. Dizem que ele raramente sorria, algo que parece impensável hoje.
Nesse sentido, as festas de fim de ano de 2014 podem não ter sido tão ao estilo do Papa Francisco, mas certamente foi uma espécie de Natal bem ao estilo Bergoglio.
Provavelmente, a melhor frase para a mensagem que o pontífice tentou deixar durante este período é a do “exame de consciência”. Sublinhar este chamado foi uma avaliação de que tanto dentro quanto fora da Igreja Católica existem sérios problemas que precisam ser abordados.
A primeira parte desta avaliação veio em seu discurso para os escalões superiores do Vaticano, conhecido como a Cúria Romana, em que Francisco pegou um estetoscópio metafórico e, bruscamente, informou os cardeais e arcebispos de que eles estavam infectados por 15 doenças espirituais, incluindo a do “terrorismo da fofoca” e “Alzheimer espiritual”.
Em seguida, veio o discurso “Urbi et Orbi” no Dia de Natal, em que ele, com tristeza, afirmou que “há tantas lágrimas neste Natal” para se juntar aos gritos do menino Jesus. O papa ficou visivelmente emocionado ao falar sobre o sofrimento das crianças, “enterradas sob o egoísmo de uma cultura que não ama a vida” e, mais uma vez, condenou uma “globalização da indiferença” para com a miséria humana.
Esta mensagem pode ter variadas interpretações, mas com certeza ela tem um caráter de crítica.
A sua homilia para a missa na véspera de Ano Novo foi mais voltada para a comunidade dos fiéis cristãos. Novamente, nela ele fez uma forte crítica. Francisco pediu um exame de consciência pelos pecados tanto “pessoais quando comunitários”, dizendo que Cristo veio a este mundo para “resgatar-nos da escravidão”, ou seja, do pecado.
Em seguida, o papa fez algumas perguntas pontuais: “Vivemos como filhos de Deus ou como escravos? Vivemos como pessoas batizadas em Cristo, ungidas pelo Espírito, resgatadas, livres? Ou vivemos segundo a lógica mundana, corrupta, fazendo aquilo que o diabo nos faz acreditar que seja de nosso interesse?”
Ficou claro, na maneira como o papa formulou estas coisas, que ele não crê que a resposta a esta questão seja fácil.
“Paradoxalmente, nós, mais ou menos inconscientemente, preferimos a escravidão”, disse ele. “A liberdade nos assusta, perante a responsabilidade que implica viver bem o nosso tempo. A escravidão nos reduz ao momento, e portanto nos sentimos mais seguros”.
Francisco ainda falou sobre os jogos que acontecem com os fogos de artifício no Ano Novo, dizendo que eles “duram apenas uns poucos instantes” e advertindo as pessoas para não se deixarem seduzir pela “fascinação do momento”.
Há duas conclusões a serem tiradas sobre o Papa Francisco que vimos durante as festas de fim de ano.
Em primeiro lugar, o Bergoglio de antes – o denunciador do pecado e da hipocrisia, por vezes quase um profeta do Velho Testamento no tom empregado – pode não ser mais a única face pública do pontífice.
Em segundo lugar, está claro que o Papa Francisco não acredita que os males morais do mundo moderno começam e terminam com os mandarins do Vaticano ou com os fracassos da Igreja Católica.
A verdade é que Francisco poderia facilmente ter proferido as suas “15 doenças espirituais” no Dia de Natal, direcionando este discurso ao mundo todo. Em todo caso, ele considera a origem dos problemas na Igreja como o produto daquela “lógica mundana corrupta” referida na véspera de Ano Novo.
Os que se deleitam toda vez que Francisco critica a estrutura de poder do catolicismo, em outras palavras, devem se abraçar, pois este é um papa capaz de criticar todos os demais também.
É válido dizer, a face populista e otimista deste papa encenou um retorno no Ano Novo, quando ele, por duas vezes, conduziu um canto improvisado de “Maria, Mãe de Deus” em honra da solenidade de Maria, no dia 1º de janeiro.
Nas duas vezes ele contou a história de como um grupo de pessoas, em Éfeso, gritava este trecho aos bispos reunidos para um concílio no século V, com efeito ameaçando destituí-los se não declarassem, formalmente, que Maria era Mãe de Deus.
“Desta vez”, disse Francisco com um sorriso estampado no rosto, “entoemos o canto sem a gritaria da multidão”.
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Desfazendo três mitos sobre a violência contra cristãos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU