15 Dezembro 2014
"O papa Francisco parece consciente de que, se qualquer um de nós isola "a verdade", como se a Virgem tivesse dado à luz a um silogismo, vamos gradualmente transformar a Igreja em uma peça de museu, um artefato que só coleta poeira. Não haverá nenhuma novidade", escreve Michael Sean Winters, jornalista e autor do livro Left at the Altar: How the Democrats Lost the Catholics. O artigo foi publicado no sítio National Catholic Reporter, 12-12-2014. A tradução é de Claudia Sbardelotto.
Segundo ele, "há uma revolução (a Revolução Francisco) relacionada que está no coração do papado do Papa Francisco, uma que tem a ver com a teologia sistemática, mas com ramificações eclesiológicas óbvias, e ela está relacionada ao livro do cardeal Kasper - não aquele sobre o casamento, mas aquele sobre a misericórdia".
Eis o texto.
Em sua audiência geral de quarta-feira, o Papa Francisco falou sobre o Sínodo sobre a família. Ele agradeceu aos meios de comunicação social para o seu trabalho, mas acrescentou que muitas vezes a visão da mídia foi um pouco "no estilo da cobertuta esportiva ou política", e "eles sempre falavam de duas equipes, pró e contra, conservadores e liberais, e assim por diante".
O papa explicou que, em primeiro lugar, pediu aos padres sinodais para falar com franqueza e coragem e ouvir com humildade. Ele observou que não havia censura prévia e que todos tiveram a oportunidade de dizer o que estava em seu coração. A reunião, segundo ele, começou com uma discussão muito franca dos sérios desafios pastorais que afetam a família, à luz das verdades fundamentais sobre o sacramento do matrimônio - sua indissolubilidade, unidade, fidelidade e abertura à vida.
O Santo Padre disse que "não houve choque entre facções, mas um diálogo entre bispos, após um longo processo de preparação e que agora continua, para o bem da família, da Igreja e da sociedade. Perguntam-me", disse o papa, "se os padres sinodais brigaram". O Santo Padre respondeu: "Eu não sei se eles 'brigaram', mas eles trocaram palavras fortes. Essa é a liberdade, esse é o tipo de liberdade que existe na Igreja".
Então, ele está certo? A questão é um pouco ridícula. Ele estava na aula sinodal e o resto de nós estava do lado de fora, no meu caso, muito longe, na minha mesa no subúrbio de Washington, lendo os relatórios sobre o que estava acontecendo. Mas, nós, os jornalistas também não estávamos envolvidos em escrever ficção. Nós relatamos sobre as divisões entre a hierarquia, em parte, porque a hierarquia está geralmente tentando mascarar o fato de que eles entretêm pontos de vista divergentes. E, antes do Sínodo, houve o duelo de textos do cardeal Walter Kasper e de cinco cardeais que se opuseram à abordagem de Kasper sobre a espinhosa questão da comunhão para os divorciados que voltaram a casar. Toda manhã, parecia que havia uma nova entrevista do cardeal Raymond Burke, sugerindo que Kasper e aqueles que pensam como ele, estavam flertando com a heresia. E, por fim, havia a votação final que demonstrou amplo consenso em muitos pontos, mas também mostrou que, em algumas das questões mais controversas, houve apenas o apoio da maioria.
Será que ambas narrativas estão corretas? O que o Papa Francisco vê que o resto de nós precisa ver? A resposta, gostaria de sugerir, chega ao coração da Revolução Francisco.
Este sínodo foi diferente. Como o próprio papa observou, ele apelou para uma discussão franca e ele conseguiu isso, e a discussão franca mostrou amplas divergências de opinião sobre algumas questões. Claramente, olhando para o discurso de encerramento do Sínodo, o papa está mais preocupado com o processo sinodal do que com esta ou aquela proposição. Aqui está uma chave hermenêutica: para que o processo sinodal funcione, os participantes devem discernir juntos. A maneira mais fácil de frustrar esse discernimento é que qualquer um dos participantes parta do princípio de que ele ou ela sabe a verdade e a conhece em sua totalidade. Isso não é normalmente apresentado com tanta ousadia. A pessoa que pensa assim, invariavelmente, atribui sua opinião a Jesus Cristo. E, claro, todos nós, como cristãos, somos chamados a nos conformar a Cristo.
O compromisso do Papa Francisco com o processo sinodal exige que todos nós na Igreja vejamos Cristo como o Caminho e a Vida, se quisermos encontrar-Lo como a Verdade. Este é o coração da Revolução Francisco. O papa parece consciente de que, se qualquer um de nós isola "a verdade", como se a Virgem tivesse dado à luz a um silogismo, vamos gradualmente transformar a Igreja em uma peça de museu, um artefato que só coleta poeira. Não haverá nenhuma novidade. Haverá apenas o que alguns de nós chamam de abordagem da "guerra cultural", aquela onde nós, católicos, temos a verdade, e os outros não têm, e que a melhor coisa que a Igreja deve fazer é erigir fronteiras claras entre nós e eles. Não tome minha palavra para isso: leia o que George Weigel escreveu em um artigo sobre o Sínodo:
A experiência do século XX e início do século XXI sugere que há uma lei de ferro construída no encontro cristão com a modernidade, segundo a qual as comunidades cristãs que mantêm uma noção clara de suas fronteiras doutrinárias e morais sobrevivem e até mesmo prosperam, enquanto as comunidades cristãs cujos limites doutrinários e morais tornam-se murchos e porosos e acabam por morrer.
Mark Silk, em um artigo, contrastou as palavras do papa, na sua recente entrevista com Elisabetta Pique, com uma declaração do bispo Thomas Paprocki para mostrar o mesmo: o que estamos tratando aqui não é um debate especial sobre os divorciados que se casaram de novo ou se os gays devem ser "acolhidos" ou simplesmente "atendidos". O que estamos lidando é com um entendimento fundamentalmente diferente do que significa ser a Igreja de Jesus Cristo. A Revolução Francisco é principalmente uma revolução eclesiológica.
O cardeal Sean O'Malley abordou algo semelhante em seu discurso no ano passado aos Cavaleiros de Colombo, quando disse: "A verdade não é um pano molhado que jogamos na cara das outras pessoas". O cardeal O'Malley estava fazendo meramente um argumento superficial? Eu suspeito que ele estava, de fato, desafiando um certo tipo de abordagem dos guerreiros culturais com relação à evangelização que falhou e falhou muito, não porque não recrutou um número maior de pessoas, mas porque se desviou do caminho de Cristo.
Há uma revolução relacionada que está no coração do papado do Papa Francisco, uma que tem a ver com a teologia sistemática, mas com ramificações eclesiológicas óbvias, e ela está relacionada ao livro do cardeal Kasper - não aquele sobre o casamento, mas aquele sobre a misericórdia.
Segundo minha análise do livro, Kasper argumenta que a misericórdia é o atributo por excelência de Deus e que, infelizmente, os teólogos têm prestado pouca atenção. Colocar a misericórdia no centro da teologia da Igreja não nega qualquer ensinamento moral particular da Igreja, mas dá a esses ensinamentos morais um contexto diferente. Eu ainda estou lutando com isso - lutando porque eu acho que as implicações são generalizadas e muito, muito profundas - mas acho que vi um pouco do seu significado em algo que o papa disse ontem em sua missa matinal: "O amor de Deus é gratuito, assim como o amor de uma mãe para o seu filho", disse o papa. E a criança "se permite ser amada" - "esta é a graça de Deus". Ele continuou: "Mas, muitas vezes, só para ter certeza, queremos controlar a graça". Ele disse que "na história e também em nossas vidas, somos tentados a transformar a graça em uma espécie de mercadoria, talvez dizendo a nós mesmos algo como 'eu tenho tanta graça' ou 'Eu tenho uma alma limpa, sou agraciado'. Desta forma, esta bela verdade da proximidade de Deus desliza para um tipo de contabilidade espiritual: 'Vou fazer isso porque vai me dar 300 dias de graça ... eu vou fazer isso, porque vai me dar isso, e fazendo isso vou acumular graça'. Mas o que é a graça? Uma mercadoria? Isso é o que parece. E ao longo da história, essa proximidade de Deus ao seu povo foi traída por essa atitude egoísta, egoísta por querer controlar a graça, transformá-la em mercadoria".
Este magnífico sermão do papa coloca-se em contraste com os comentários de uma filantropa católica em um relatório sobre os irmãos Koch e o seu financiamento de um instituto de economia da Creighton University. Gail Werner-Robertson, que afirma compartilhar muitos dos pensamentos dos irmãos Koch sobre a vida econômica, disse a um jornal de Omaha, "Eu sou fascinada com a história de muitas coisas, mas principalmente sobre economia e porque diferentes países têm diferentes níveis de prosperidade" disse ela ao jornal The World-Herald. "Nós somos o país mais abençoado sobre a face da terra. (...) Tem sido realmente uma das minhas paixões: o que temos de diferente, que talvez outros países não têm?". Quando li essas palavras - "Somos o país mais abençoado sobre a face da terra" - nesse contexto, me faz perguntar se ela estava se referindo à riqueza dos Estados Unidos. Eu suspeito que ela e eu ouvimos coisas semelhantes ditas por outras pessoas. Eu li isso e me perguntava se talvez tivesse passado por cima dessa frase nas bem-aventuranças, a frase "Bem-aventurados os muito ricos". Mas, não é apenas a relação entre riqueza e saúde moral e espiritual que é distorcida em nossa experiência do catolicismo norte-americano, é o neopelagianismo que vê a graça como uma mercadoria, evidenciada pela acumulação de riqueza, quando, se não me falha a memória, é o acúmulo de sofrimento que nos leva para mais perto de Cristo.
Então, sim, o papa está certo sobre o que aconteceu no Sínodo, e também estava a mídia, e isso é o que é realmente emocionante. Porque, em vez de a Igreja se transformar em uma sociedade debatedora, o Papa Francisco está nos chamando para o trabalho, o trabalho duro de aprender uns com os outros. Eu sei que alguns dos meus amigos da direita acham que os métodos do papa semeiam, ou, pelo menos, convidam à confusão. Convido-os a se aproximar de Francisco como eu me aproximei do Papa Bento XVI, não como um parceiro de debate, mas como alguém com algo a me ensinar. Eu fui muito bem recompensado pelo entendimento da rica visão teológica do Papa Bento XVI e rezo e espero que aqueles que temem a confusão sejam recompensados por ouvir o que o Papa Francisco está nos pedindo, para termos uma visão de Igreja que não é impulsionada por uma convicção de que nós, e somente nós, possuimos a verdade, mas que nós, como Igreja, podemos encontrar as profundezas da verdade de Cristo se adotarmos também os seus caminhos e a sua vida.
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O Papa Francisco está certo sobre o que aconteceu no Sínodo? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU