Por: Cesar Sanson | 11 Dezembro 2014
Em relatório final, comissão recomenda punir os envolvidos em violações cometidas pelo Estado durante a ditadura e pede que as Forças Armadas reconheçam sua responsabilidade. Documento aponta 377 autores de violações.
A reportagem é de Marina Estarque e Clarissa Neher e publicada por Deutsche Welle, 10-12-2014.
Após dois anos de trabalho e investigações, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) lançou nesta quarta-feira (10/12) seu relatório final. O documento condena a Lei da Anistia e recomenda a punição dos agentes públicos envolvidos em graves violações dos direitos humanos durante o regime militar.
Segundo a comissão, as detenções arbitrárias e ilegais, a tortura e as execuções, os desaparecimentos forçados e a ocultação de cadáveres são crimes contra a humanidade. De acordo com a ordem jurídica internacional, tais violações são "imprescritíveis e não passíveis de anistia". Apesar de não pedir diretamente a revogação da Lei 6.683, de 1979, conhecida como Lei da Anistia, o relatório a condena com base nas decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Além disso, o documento responsabiliza claramente o Estado pelos crimes, perpetrados de forma "generalizada e sistemática". "Na ditadura militar, a repressão e a eliminação de opositores políticos se converteram em política de Estado, concebida e implementada a partir de decisões emanadas da presidência da República e dos ministérios militares", reforça.
Para a historiadora alemã Nina Schneider, da Universidade de Constança, é de extrema importância o governo reconhecer sua responsabilidade nas práticas de violação de direitos humanos cometidas durante esse período. "Não podemos esquecer que foi uma política de Estado, um Estado que perseguiu os seus próprios cidadãos, é importante denunciar isso", afirma.
Embate nas investigações
O relatório também aponta a morte e o desaparecimento de 434 pessoas, mas ressalta que esse número não equivale ao total de vítimas da ditadura: corresponde, apenas, aos casos que puderam ser comprovados pelo trabalho da comissão.
Nesse ponto, a CNV destaca os obstáculos encontrados na investigação. "Em especial a falta de acesso à documentação produzida pelas Forças Armadas, oficialmente dada como destruída."
Apesar das dificuldades na investigação, a comissão aponta ainda 377 nomes de pessoas que praticaram ou participaram de atos de tortura e assassinato, assim como os autores intelectuais, mandantes e idealizadores dessas violações. Entre os acusados estão os ex-presidentes da República Humberto Castello Branco, Arthur da Costa e Silva, Emilio Garrastazu Médici e Ernesto Geisel.
As considerações finais da CNV reconhecem que os crimes investigados, como a tortura e as execuções, são práticas recorrentes até hoje. "Esse quadro resulta em grande parte do fato de que o cometimento de graves violações de direitos humanos verificado no passado não foi adequadamente denunciado, nem seus atores responsabilizados, criando-se as condições para a sua perpetuação."
Recomendações
O relatório apresenta um conjunto de 29 recomendações, com o objetivo de prevenir novas violações e promover a "reconciliação nacional". Além da punição dos envolvidos, a CNV pede que as Forças Armadas reconheçam a sua "responsabilidade institucional" pelos crimes.
A comissão também propõe que as indenizações, pagas pelo Estado às vítimas, sejam ressarcidas ao erário público pelos agentes que cometeram os crimes.
Eventos oficiais comemorativos do golpe devem ser proibidos, e princípios democráticos e de direitos humanos precisam ser inseridos nos processos seletivos das Forças Armadas e na grade curricular da formação de militares, sugere a comissão.
O documento também propõe a retificação das causas de morte (em caso de violações) e das condenações criminais de vítimas durante a ditadura, que permanecem registradas nos sistemas de informação de segurança pública.
Prevenção e continuidade
Com o objetivo de prevenir futuras violações, a CNV recomenda diversas medidas, muitas delas reivindicações antigas dos movimentos de defesa dos direitos humanos.
Estão presentes no documento a desmilitarização das polícias estaduais; a revogação da Lei de Segurança Nacional, adotada durante a ditadura; e a eliminação da figura do "auto de resistência" – termo que deveria ser substituído, segundo a comissão, por "morte decorrente de intervenção policial".
O relatório também determina a criação de um órgão permanente para dar continuidade ao trabalho de pesquisa da CNV e apoiar as medidas de reparação coletiva.
Também ressalta a importância de garantir o sepultamento digno dos restos mortais dos desaparecidos políticos, além de promover a preservação da memória através de tombamentos, museus e marcas em locais de violações de direitos humanos.
Debate aberto
Para o historiador Carlos Fico da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), apesar da dificuldade enfrentada pela CNV para investigar esse período e da pouca visibilidade dada ao seu trabalho, o que fez com que o tema não fosse amplamente debatido na sociedade, ela foi uma iniciativa importante do governo.
"Um dos objetivos da comissão era fazer recomendações para o aprimoramento da democracia brasileira. Assim, essas recomendações talvez sejam mais importantes para chamar a atenção da sociedade para alguns problemas que ainda existem em relação à ditadura militar que houve no passado. Embora o trabalho da CNV não tenha sido perfeito, ele vai ser muito útil", diz Fico.
Segundo o historiador, o conhecimento de crimes e violações cometidos durante esse período é importante não só do ponto de vista histórico, mas também social.
"Os militares tentavam de todo modo ocultar essas atividades de repressão, e há pessoas que foram vítimas e nem sabem que foram. Por exemplo, um funcionário público de uma empresa estatal pode ter sido cogitado para um cargo mais importante e não conseguiu a promoção porque foi denunciado pelos órgãos de informação, como sendo de esquerda. A repressão de pessoas que não eram só de esquerda, mas pessoas comuns também foram atingidas", afirma.
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CNV responsabiliza Estado por crimes cometidos pelo regime militar - Instituto Humanitas Unisinos - IHU