30 Novembro 2014
No Fanar, tudo está pronto para a chegada do "bispo irmão da Primeira Roma". Aqui, na antiga sede do Patriarcado Ecumênico de Constantinopla, os ruídos do tráfego somem. Só a voz do muezim da mesquita ao lado rompe o silêncio. Nestes muros seculares, recém-restituídas pelas restaurações ao seu formato original, o irmão da Igreja do Oriente, Bartolomeu, acolherá o Papa Francisco.
A reportagem é de Stefania Falasca, publicada no jornal Avvenire, 28-11-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Sobre o que falarão? As palavras do patriarca nos levam direto às fontes, "à fonte que ilumina a Igreja". Indicam "uma teofania nova na vida da Igreja", com lucidez se detêm "no espírito mundano", "na autoafirmação", como "raízes últimas da divisão" e da falta de unidade, revelando o profundo sensus ecclesiae que o une ao bispo de Roma.
É na vigília da festa do apóstolo André e é justamente na comum memória do primeiro chamado que o Papa Francisco e o Patriarca Bartolomeu marcaram um encontro para olhar juntos para o futuro.
Eis a entrevista.
Santidade, depois de Jerusalém, qual é o sentido deste novo encontro?
O sincero abraço e o beijo da paz entre aqueles que presidem a sedes de Roma e de Constantinopla indicam a vontade de percorrer a estrada desejada por nosso Senhor Jesus Cristo "ut unum sint". Os nossos antecessores deram início ao diálogo teológico entre as nossas Igrejas, e os encontros posteriores abrangeram muitos temas que precisavam de uma reavaliação histórica. Agora, o nosso amado irmão Francisco continua esse gesto que não representa uma forma de cortesia eclesiástica, mas é muito mais.
Abre-se uma nova perspectiva no diálogo católico-ortodoxo?
A confiança íntima que sentimos com o Papa Francisco, desde a sua eleição, são, sem dúvida, um novo propulsor para o caminho rumo à unidade. Confiança que não é o fruto de um sentimentalismo, mas adesão plena à mensagem de Cristo, vontade do encontro entre irmãos para um testemunho comum. A nova perspectiva que o Papa Francisco está dando ao papel do bispo de Roma, à sinodalidade no governo da Igreja são temas caros para o Oriente, que olha com particular especial para esses aspectos. Portanto, este encontro também abre uma perspectiva nova no diálogo católico-ortodoxo, não mais ligada aos esquemas do passado, mas purificada à luz do Evangelho e da Tradição da Igreja.
Passaram-se 960 anos desde o cisma entre Oriente e Ocidente. Quais são, essencialmente, as raízes últimas que ainda fazem com que permaneça a divisão das Igrejas irmãs?
A Igreja dos primeiros séculos apoiava o seu ser no anúncio do Logos que se fez carne por amor do homem e na participação no seu banquete eucarístico. Os mártires testemunharam com o sangue essa pureza da mensagem, da cruz e da ressurreição. O Edito de Milão deu liberdade à Igreja. Ela pôde testemunhar o anúncio com mais vigor e força, empreendeu uma obra de evangelização ainda maior. Mas o Sedutor do mundo tentou e tenta tornar vão esse anúncio. A ideia do império cristão, da Societas Christiana, foi muito além do princípio bom, para introduzir o espírito mundano. E esse espírito mundano é um processo que afasta da fonte que ilumina a Igreja, Cristo morto e ressuscitado, para produzir uma autoconsciência eclesial, que gostaria de brilhar por si só. Esse pensamento mundano, que o Papa Francisco chama de "doença espiritual", essa mundanidade, esse pecado espiritual, sem dúvida, facilitaram o nascimento das raízes da contraposição, da autoafirmação e, portanto, da divisão.
E como se pode remediar isso?
Se a Igreja, como Corpo de Cristo, não pode ser dividida, e nela o Espírito Santo age através dos grandes mistérios de salvação, deve-se remediar juntos. E o fármaco não é a criação de um Estado de Deus, como às vezes foi teorizado por alguns, mas uma metanoia profunda de cada homem, uma mudança de mentalidade que produza uma conversão sincera ao Deus feito homem, uma teofania nova na vida da Igreja.
O senhor se referiu à Igreja do primeiro milênio. O que ela ainda pode sugerir no caminho presente para a unidade dos seus filhos?
Como dizíamos, a Igreja antiga está permeada e vive da vital presença de Cristo. Ambrósio de Milão nos lembra que "a Igreja não resplandece por luz própria, mas pela luz de Cristo". Para Cirilo de Jerusalém, "a Igreja é circundada pela luz divina de Cristo, que é a única luz no reino das almas". Na fidelidade a essa luz, a Igreja dos primeiros séculos viveu a grandeza dos grandes concílios ecumênicos, respirou a sinergia dos Padres apostólicos não como uma realidade autorreferencial, mas como uma realidade continuamente edificada pela presença viva de Cristo. As diferenças que apareciam no Corpo de Cristo só se tornaram contraposições por causa de estratégias humanas estranhas a ele.
Mais uma vez, a Igreja deve se redescobrir para além dos esquemas humanos em que muitas vezes ela se confinou e se reapropriar do caminho de Cristo. Na superação de si mesma, ela reencontra o caminho comum para além das barreiras jurisdicionais, teológicas, exegéticas. Nessa perspectiva, o primeiro milênio sugere à Igreja aquela "vida em Cristo" que conforma em unidade os seus filhos. O primeiro milênio da Igreja viveu profundamente a unidade, enquanto era completamente desconhecida a ideia de união.
Pode explicar melhor, nessa perspectiva, a diferença entre união e unidade, e como podem ser superadas as dificuldades relacionais entre as Igrejas?
A ideia de união surge na Igreja no segundo milênio, por causa de uma excessiva centralização do seu ser Igreja, quase em contraposição ao seu ser Corpo santificante de Cristo. É a prerrogativa humana de um corpo indiferenciado, desprovido dos dons do Espírito Santo. A unidade, no entanto, não é a única solução de disputas teológicas, mas é o modus vivendo que nos é ofertado pela experiência eclesial dos primeiros séculos. E redescobrir esse aspecto da unidade, como vivido no primeiro milênio de vida da Igreja, pode ajudar as nossas Igrejas a superar hoje as dificuldades relacionais que ainda podem ser encontradas entre elas. A unidade, por isso, não será o resultado de estratégias humanas, mas a descoberta de sermos companheiros de estrada, fiéis aos pensamentos e aos sentimentos de Cristo.
Mas a unidade dos cristãos também pode ser entendida hoje como aliança e luta comum contra um inimigo comum...
A unidade dos cristãos é principalmente um dom de Deus, que só podemos atualizar, como dissemos, redescobrindo-nos no seguimento de Cristo. Consequentemente, é totalmente evidente que não pode se tratar de uma aliança ou de uma batalha comum contra um inimigo comum, segundo a ideologia do mundo. A unidade é um ato de fidelidade ao anúncio do Logos de Deus. A ideia do inimigo comum, muitas vezes, é citada por aqueles que, nas religiões, não veem um ato de amor de Deus pela sua criatura e um ato de fidelidade do fiel a Deus, mas um tipo de sociedade humana que busca manipular o homem criando-lhe um inimigo comum.
Essa manipulação, muitas vezes, criou e cria também hoje elementos estranhos à vida religiosa, como os tantos fanatismos que percorrem mundo. Sob o aspecto espiritual, ao contrário, a luta contra um inimigo comum é justa. Os cristãos combatem uma luta espiritual contra o inimigo por excelência, aquele astutamente dividiu as Igrejas e tenta atrasar a sua unidade. Um testemunha comum contra o Príncipe deste mundo, que divide, que governa, que impera muitas vezes é um ato de adesão ao ensinamento evangélico. A voz das Igrejas cristãs deve ser harmônica para poder despertar o homem contemporâneo de um torpor espiritual que, quando não rejeita a presença e a intimidade com Deus, torna-o um fato meramente cultural e privado ou, em antítese, cria a idolatria do próprio conceito de Deus, chegando ao extremismo fanático, que é a própria negação de Deus. Os cristãos unidos devem falar a uma só voz contra esse tipo de inimigo comum.
Os cristãos do Oriente Médio vivem hoje grandes sofrimentos. Que repercussão a sua situação particular pode ter nas Igrejas e para o ecumenismo?
Durante as perseguições, os cristãos de diferentes confissões misturaram o sangue derramado. Em toda a história da Igreja, da Igreja nascente até os dias atuais, os mártires são os santos que têm a graça de Deus em vasos de barro, que vivem realmente em seu interior a luz da transfiguração. No entanto, isso não pode tornar as Igrejas insensíveis aos sofrimentos que muitos de nossos irmãos e irmãs, todos os dias, são chamados a viver. E o desafio é ainda maior, especialmente no Oriente Médio e nos países em que nosso Senhor e os apóstolos caminharam e onde se consolidou a Igreja dos primeiros séculos. O sofrimento não pergunta a que confissão o mártir pertence. Verdadeiramente, como diz o Papa Francisco, vivemos ainda um "ecumenismo de sangue". O ecumenismo do sangue é oferecido diante do altar celeste do Senhor por todos nós, para que possamos apressar um ecumenismo de testemunho diante do mundo.
Muitas vezes, porém, é feito um uso instrumental da religião...
Esse uso é um crime estranho à própria religião, que, infelizmente, tem repercussão sobre a vida e as relações das nossas Igrejas. Devemos saber testemunhar, todos, que ninguém tem o direito de matar em nome de Deus e que ninguém tem direitos exclusivos de Deus, e estamos juntos por uma paz duradoura e justa, para que não prevaleçam apenas as lógicas do lucro e da exploração. Somente unidos os cristãos são credíveis e podem ser de grande ajuda para todos aqueles que sofrem por causa das muitas injustiças que todos os dias são perpetradas contra inocentes. O "ecumenismo do sangue", o sangue dos mártires, não pede vingança, mas interroga cada fiel, torna as Igrejas hoje, como no passado distante e recente, mais sensíveis ao aflito apelo do sofrimento, à superação do preconceito, ao caminho comum.
Como o senhor avalia o percurso político e civil da Turquia e como ele é percebido pelas comunidades cristãs e pelas outras minorias?
O processo político e civil do nosso país teve desenvolvimentos positivos durante o governo do presidente Erdogan, especialmente em relação à questão das liberdades religiosas. Houve a autorização para celebrar a liturgia em lugares históricos do cristianismo e a reestruturação de alguns sítios de importância para as Igrejas na Turquia. Apesar disso, resta muito a fazer. A percepção desse percurso ainda é pouco compreendido nas comunidades cristãs e nas outras minorias religiosas.
Quais são os perigos?
Como se sabe, a Constituição da Turquia prevê que ele é um país laico, em que todas as religiões tem igual dignidade. Nos fatos, isso se revelou, às vezes, porém, contraproducente. Para salvaguardar a laicidade do Estado, o poder político se introduziu nas escolhas e nas atividades das confissões religiosas, privando-as, assim, da liberdade de agir e reduzindo, de fato, os fiéis das minorias religiosas a cidadãos de segunda classe. Os Estados devem ser garantes de uma igualdade dos seus cidadãos. Os cristãos na Turquia são também cidadãos turcos e, por isso, devem ter as mesmas possibilidades dos cidadãos turcos muçulmanos. Deve haver para eles uma atenção política, ética e materialmente mais clara. Um dos aspectos ainda controversos é, por exemplo, o reconhecimento jurídico da Igreja como entidade de direito público. Para o Patriarcado Ecumênico, a Turquia ainda não reconhece plenamente o seu status jurídico, a sua posição histórica no mundo ortodoxo e, injustamente, ainda obstaculiza a reabertura da Escola Teológica de Halki.
Voltemos à unidade dos cristãos. Por que há tantas resistências ao caminho rumo à plena comunhão? O que se tem a perder ou a defender?
A Igreja, no seu devir histórico, sempre seguiu o seu próprio povo na atividade pastoral, nunca avançando demais e sempre esperando por quem chegava com fadiga. Como mãe cuidadosa, ela se ocupa do crescimento espiritual e humano dos próprios filhos e, ao mesmo tempo, guia-os ao encontro com o Salvador. Isso também ocorre no diálogo ecumênico. A grande esperança suscitada em tantos cristãos e também nas hierarquias das Igrejas pelo encontro de Jerusalém, em 1964, foi acompanhada também pelo ceticismo e, às vezes, pela contrariedade de outros. No entanto, o impulso à abertura e ao encontro que daí derivou foi muito mais forte do que qualquer resistência. O mesmo também ocorre hoje. A purificação da memória histórica ocorre lentamente, com muita paciência, mas o seu caminho é imparável. E o diálogo teológico é um exemplo disso. Há a necessidade de gestos incisivos, que saibam envolver positivamente também aqueles que são céticos ou duvidosos. O diálogo pode e deve sempre enriquecer, nunca é um fim em si mesmo e, certamente, não faz com que se perca a própria identidade. Não temos nada a perder e a defender.
Em 2016, ocorrerá o grande Sínodo da Igreja Ortodoxa. Poderá ser um evento importante também para o diálogo ecumênico?
Depois de tantos anos de preparação e, por decisão unânime de todos os primazes das Igrejas Ortodoxas, ele será convocado em Constantinopla. É um fato novo que vê todas as Igrejas Ortodoxas reunidas, juntas, para discutir temas de caráter administrativo e de interesse comum, a fim de apresentar a mensagem da Ortodoxia ao mundo "com um só coração e uma só voz". Um dos temas que envolvem essa grande cúpula é a vontade de continuar no diálogo ecumênico, diálogo que não pode não interessar à Igreja em diferentes graus, mas deve ser amadurecido do mesmo modo por todos e em todos os lugares.
O bispo de Roma também será convidado?
Deve ser uma decisão de todos os primazes das Igrejas ortodoxas autocéfalas, mas a ruptura milenar da comunhão eucarística entre as nossas Igrejas ainda não permite a convocação de um grande concílio ecumênico. Estamos certos de que o nosso amado irmão da Igreja de Roma estará conosco em comunhão de oração e pedimos a ele que reze por este nosso encontro histórico.
Qual é o seu desejo pessoal?
Queira Deus que, em um futuro próximo, haja o encontro das nossas Igrejas na vida sinodal uma das outras, para a glória do nosso Deus na santa, consubstancial, vivificante e indivisível Trindade.
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''Frente a frente, como irmãos, na fidelidade ao Evangelho.'' Entrevista com Bartolomeu I - Instituto Humanitas Unisinos - IHU