28 Novembro 2014
No dia em que o governo brasileiro oficializou um novo ministro da Fazenda simpático ao mercado, o economista francês Thomas Piketty, autor do best-seller "O Capital no Século 21", afirmou considerar um erro pensar que o Brasil precisa de mais mercado e menos intervenção na economia.
Piketty, que está no Brasil para promover o livro que lhe rendeu status de celebridade no debate econômico, não quis discutir especificamente a nova equipe econômica, mas afirmou que "seria um erro pensar que o Brasil fez demais na área social e para reduzir a desigualdade".
A reportagem é de Rodrigo Vizeu, publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, 28-11-2014.
Em seu livro, o francês sustenta que a desigualdade voltou a aumentar nas últimas décadas, beneficiando herdeiros e prejudicando a ascensão social, o que colocaria em risco a democracia.
Em entrevista, Piketty, que já foi citado em discurso pela presidente Dilma Rousseff, reclamou que dados de má qualidade fazem com que a desigualdade brasileira seja subestimada, e sua redução, alardeada pelo governo, talvez exagerada.
Eis a entrevista.
Recentemente, Dilma disse que o Brasil vai contra a corrente internacional de alta da desigualdade que seu livro aponta. O sr. concorda?
Políticas de educação e transferências sociais como as que foram aplicadas em certa medida no Brasil nestes dez últimos anos podem permitir ir contra a corrente de aumento da desigualdade, mas ela realmente diminuiu?
Não é tão certo, é possível que tudo tenha sido puxado para cima, inclusive os mais pobres, mas não necessariamente em maior proporção que os mais ricos.
A forma como medimos a desigualdade sem dúvida a subestima. No Brasil, ela é sem dúvida ainda mais alta do que muitas estatísticas oficiais dizem porque a maior parte delas se baseia em pesquisas familiares com autodeclaração. O problema dessas pesquisas é que temos tendência a subestimar o topo da distribuição. Infelizmente, tem sido muito difícil acessar os dados fiscais do Brasil.
Falta transparência?
Estudo recente (de pesquisadores da Universidade de Brasília) sugere que, se utilizamos dados fiscais, o nível das desigualdades no Brasil aumenta. Não sabemos muitas coisas sobre a distribuição da renda no Brasil e precisamos de mais transparência para ver melhor em que medida os diferentes grupos sociais se beneficiam do crescimento.
É evidente que todo o mundo se beneficiou do crescimento dos últimos 15 anos. Agora, em qual proporção exatamente os diferentes grupos se beneficiaram dele não sabemos muito bem. É possível que se tenha exagerado um pouco a [divulgação da] redução das desigualdades no Brasil.
Dilma também disse preferir investir em consumo e educação para lutar contra desigualdade a fazer taxação, como o sr. defende. Isso é suficiente?
Também é preciso reforma fiscal, de um imposto progressivo sobre a renda e sobre o patrimônio. Precisamos da reforma fiscal para financiar a educação. Acrescento que uma parte das desigualdades grandes do Brasil se explica pela relativamente baixa progressividade do sistema fiscal.
Como seria a reforma?
A faixa mais alta de Imposto de Renda no Brasil é de 27,5%, inferior à menor dos Estados Unidos. Creio que uma das razões pela qual há muito desigualdade no Brasil é a progressividade de IR relativamente baixa. Há também muitos impostos indiretos, que são regressivos e pesam sobre as camadas populares.
É importante também tratar de forma diferente as rendas anuais de R$ 100 mil e de R$ 1 milhão, R$ 5 milhões e R$ 10 milhões. Poderíamos ter faixas mais elevadas, de 50%, 60%.
Como na sua França natal?
Também como os EUA, o Reino Unido, a Alemanha, que têm taxas que vão até 40%, 50%. É ainda mais impressionante o imposto sobre herança, 4% [na maioria dos Estados] é realmente baixo, muito perto de zero.
É possível ter uma economia dinâmica e sistema capitalista próspero com imposto sobre herança alto. Para as novas gerações que não têm patrimônio familiar e procuram comprar apartamento em São Paulo, é muito difícil se você só tem a renda de seu trabalho. Não é normal que você ganhe R$ 100 mil por ano com seu trabalho e pague muito mais de imposto do que se você recebesse R$ 100 mil de herança de sua família.
O governo oficializou uma nova equipe econômica com um ministro da Fazenda mais ligado ao mercado e vindo de uma escola liberal. Que avaliação o sr. faz disso?
Não conheço o contexto político brasileiro, não posso me pronunciar. Quem quer que seja colocado no comando da política, qualquer que seja a orientação, os níveis de desigualdade muito altos que temos no Brasil devem ser questionados e tratados pelo governo, assim como a baixa progressividade do sistema fiscal.
Mas abordagem liberal e pró-mercado é boa ideia para enfrentar tais desafios?
Precisamos de mercado e também de poder público que tome decisões que permitam a cada um de se beneficiar da globalização e dos mercados.
Eu tento ir além dessas oposições um pouco teóricas e ideológicas. Creio que que seria um erro pensar que o Brasil fez demais na área social, que fez demais para reduzir a desigualdade, que agora é preciso mais mercado, menos intervenção, eu acho que isso seria um erro. Apesar dos esforços que foram feitos em políticas sociais nos últimos 15 anos, o Brasil continua extraordinariamente desigual. O nível de investimento social, educacional para os desfavorecidos da população brasileira continua insuficiente.
O sr. defende que os estudos em economia levem em conta aspectos históricos, sociais, políticos e culturais. Isso é importante também para a gestão econômica do governo?
Sim, é importante para o governo também. A questão econômica é importante demais para ser deixada para economistas, que às vezes tentam fazer crer que dispõem de uma ciência realmente complicada que os outros não podem compreender e que é preciso deixá-los em paz. Isso é uma piada gigantesca.
O nome de seu livro, que remete a Karl Marx, e algumas de suas opiniões fazem que muitos o considerem anticapitalista.
O problema é que há gente que vive ainda na Guerra Fria e tem necessidade de inimigos anticapitalistas. Não sou esse inimigo. Creio no capitalismo, na propriedade privada e nas forças do mercado.
Nasci tarde demais para ter a menor tentação que seja pelo comunismo de tipo soviético. Isso não me interessa. Ao mesmo tempo, acho que temos necessidade, basta ver a crise de 2008, de instituições públicas muito fortes para regular o mercado financeiro e as desigualdades produzidas pelo capitalismo.
Sua defesa de um imposto global sobre grandes fortunas já foi feita por outros autores e nunca avançou. Não é ingênuo crer que seja realmente possível contrariar tantos interesses contrários?
Não precisamos esperar ter um governo mundial, um imposto unificado mundial para fazer progressos, se não arriscamos esperar um longo tempo. Podemos fazer progresso por etapas e a nível nacional. Há diferentes formas de imposto sobre capital e patrimônio em cada país, que podem ser melhorados de forma mais progressiva. Em seguida podemos progredir na cooperação internacional, como já tem sido feito quanto aos paraísos fiscais.
Como o sr. demonstra, a desigualdade no século 20 só caiu em um contexto de crise e reconstrução das sociedade após duas guerras mundiais. Seria mesmo possível algo tão ambicioso em tempos de paz?
As lições de história são importantes, as elites que não querem pagar mais impostos no Brasil, nos EUA e na Europa devem se lembrar que não é uma boa solução esperar a crise. Todo o mundo precisa de uma globalização que seja mais justa, que beneficie diferentes grupos sociais em proporção equilibrada. Se não, é a própria globalização que arrisca ser questionada.
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'É um erro achar que país precisa de mais mercado', diz economista francês - Instituto Humanitas Unisinos - IHU