25 Novembro 2014
"A recepção que o Papa Francisco concedeu a Gustavo Gutiérrez aos 22 de novembro de 2014 não só encerra uma complicada e tensa relação entre um dos padres da teologia da libertação e a Santa Sé , senão que abre um tempo para avaliar (e superar) as críticas injustas e os elogios desmedidos sobre a contribuição do teólogo peruano, tanto da parte de seus críticos mais desafetos, como de seus apologetas mais apaixonados", escreve Jesús Martínez Gordo, em artigo publicado por Religión Digital, 23-11-2014. A tradução é de Benno Dischinger.
Eis o artigo.
A recepção que o Papa Francisco concedeu a Gustavo Gutiérrez aos 22 de novembro de 2014 não só encerra uma complicada e tensa relação entre um dos padres da teologia da libertação e a Santa Sé , senão que abre um tempo para avaliar (e superar) as críticas injustas e os elogios desmedidos sobre a contribuição do teólogo peruano, tanto da parte de seus críticos mais desafetos, como de seus apologetas mais apaixonados.
Por razões de espaço assinalo algumas das críticas (frequentemente convertidas em preconceitos) dos primeiros, remetendo ao meu livro “a força da debilidade” [La fuerza de la debilidad] (DDB- IDTP, Bilbao, 1994) a explicitação das segundas, bem como uma avaliação de todas elas.
Confesso que, ao repassar (depois de vinte anos) ditas críticas e preconceitos, não só me chamou a atenção sua persistência, senão, sobretudo, seu recente deslocamento à pessoa, ao magistério e ao governo do Papa Francisco: os setores eclesiais que não faz muito dirigiam ditos dardos contra o teólogo peruano parecem ter mudado de alvo. Não deixa de ser uma boa notícia que, diversamente do padecido por Gustavo Gutiérrez, estas pessoas possam expressar suas opiniões sem ter que comparecer ante a Congregação para a Doutrina da Fé, nem viver sob a espada de Dâmocles de uma possível condenação doutrinal.
Algo está mudando neste pontificado. E, afortunadamente, parece que para o bem. Também o dos críticos do teólogo peruano que, até não faz muito, não admitiam nem a mudança ou revisão de uma vírgula ou que vetavam qualquer publicação que citasse o Catecismo da Igreja Católica.
A debilidade ou inconsistência
Em determinados meios teológicos, particularmente sensíveis a uma apresentação especulativa e racional da Revelação, circula faz tempo a convicção de que Gustavo Gutiérrez viria a ser uma espécie de anão (quando não, um cretino), incomprensivelmente infiltrado neste seleto clube formado, entre outros, por Karl Rahner, H. Urs von Balthasar, W. Pannenberg, E. Schillebeeckx, J.M.Y. Congar e tantos outros. Sua contribuição não teria o devido timbre intelectual. Estaria impedindo isso o sociologismo, o pastoralismo, o pedagogismo e a forma assistemática que caracterizam, desde o princípio até o final, toda a sua teologia e, por extensão, uma boa parte da teologia da libertação.
Em primeiro lugar, a contribuição de Gustavo Gutiérrez não seria tanto uma teologia capaz de manter pulso com o pensamento moderno e ilustrado, quanto uma espécie de sociologia teológica necessitada de constantes retificações e atualizações. Tantas, pelo menos, como numerosas são as vicissitudes históricas. Em duas palavras: puro sociologismo.
O mesmo seria preciso dizer de sua irrenunciável inquietude pastoral. Quando esta se erige na preocupação primeira do trabalho teológico, se acaba abordando um tipo de problemática excessivamente pedestre, imprópria dos autênticos teólogos de raça; um excesso que, como parece, também estaria afetando o Papa Francisco. Por isso, os mistérios fundamentais da fé cristã já não se estariam repassando com o rigor requerido e a teologia estaria correndo o risco de converter-se numa precipitada e desassossegada reflexão sobre a atualidade; num piedoso (e, às vezes, até poético ou dramático, depende) comentário sobre o momento. Em definitivo, nada veritativamente consistente e duradouro.
Porém há mais. Uma teologia presidida por uma inquietude pastoral concederia uma importância aos aspectos pedagógicos, já que tão relevante como os conteúdos seria o modo como se dizem e se transmitem as verdades alcançadas. Quando a preocupação pela forma e o modo de comunicar acabam por relegar o conteúdo do que se há de expor, se incorre no pedagogismo. A debilidade, portanto, da teologia de Gustavo Gutiérrez descansaria também na desmesurada atenção que presta aos aspectos pedagógicos, algo que o impossibilitaria de atender como seria devido os conteúdos da Revelação e da fé. Seu mérito consistira em ser, no melhor dos casos, um original divulgador da reflexão realizada por outros teólogos de mais talhe e, obviamente, sempre veritativos.
A assistematicidade seria, finalmente, outra manifestação da debilidade que apresentaria a contribuição do teólogo peruano. Em sua obra tudo estaria embaralhado, formando uma espécie de “totum revolutum“ que pouco ou nada tem a ver com um pensamento organizado e sistematizado. Também algo disto poder-se-ia constatar no magistério de Francisco e no que é seu santo e senha de magistério, até o presente: a “Evangelii Gaudium”.
O dogmatismo e autoritarismo
Mas a teologia de Gustavo Gutiérrez (e, por extensão, quase toda a chamada teologia da libertação) viria a ser, ademais, uma reflexão que, sob a aparência de modesta contribuição, estaria impregnada de dogmatismo e autoritarismo. O aforismo de “luva de seda e punho de aço” serviria para qualificar perfeitamente o modo de entender e exercer a teologia dele e daqueles que, como ele, formam parte desta corrente de pensamento.
O emprego excessivamente acrítico de um método tão proclive a dogmatizar seus próprios pressupostos como o é o marxista (embora seja como método sociológico para conhecer a realidade) explicaria, em primeiro lugar, a consistência desta crítica. O uso de uma metodologia analítica marxista seria inquestionável em suas primeiras publicações. Como consequência disso, ele se veria obrigado a realizar um montão de ‘alambicamentos’ teológicos para articular o preceito do amor cristão com a luta de classes.
Também seria um indubitável sinal de dogmatismo e autoritarismo a prepotência ética que ressumariam a grande maioria de seus escritos e intervenções. Isto é algo que se poderia constatar nas condenações sem paliativos (inclusive em nome do Evangelho) de alternativas sócio-políticas e econômicas que não foram revolucionárias, quer dizer, que não defenderam claramente a supressão da propriedade privada dos meios de produção. Obviamente esta prepotência ética passaria pela desqualificação, sem paliativos, de todo o sistema ocidental (o chamado capitalismo democrático) e a própria (democracia formal burguesa) como causa, tanto imediata como mediata, de uma boa parte dos males do terceiro mundo e, por extensão, de todo o mundo. Os cidadãos dos países ricos ficariam desautorizados para propor normas de conduta moral, pelo menos enquanto não reconhecessem (e ativassem operativamente) uma forte hipoteca social sobre seu nível de vida e sobre seu consumo. E, enquanto seguissem defendendo certas fronteiras nacionais que, apesar de todos os discursos formalmente bem intencionados, seguem impossibilitando a universalização da democracia e a constituição de um governo realmente mundial.
Tão pouco o magistério de Francisco estaria distante desta acusação. E, se não, que o perguntem aos ideólogos do neoliberalismo norte-americano. Embora não só a eles. Também na Europa se poderiam encontrar críticos papais.
Outro indicador deste preconceito poder-se-ia apreciar numa suposta patrimonialização da causa dos pobres. Quando uma pessoa ou um coletivo de pessoas fala em nome ou se “apropria” (entre eles, Francisco e Gustavo Gutiérrez) desta causa e constata, ademais, suas dimensões planetárias, frequentemente costuma ultrapassar – apontam estes críticos – o umbral da denúncia ética para adentrar-se na condenação dogmática de tudo aquilo que não coincida com sua concepção de como há de ser e como se há de conceber a solução alternativa. A demagogia seria, segundo o núcleo deste preconceito, a fiel companheira de uma teologia de verbo inflamado e autoritária condenação.
Dogmática e autoritária seria também a distinção estabelecida por Gustavo Gutiérrez entre os diferentes destinatários e interlocutores da teologia européia e da latino-americana. O ilustrado descrente europeu teria pouco ou nada a ver com o famélico e meio morto não-pessoa latino-americano; caso se excetue que quem questiona a existência de Deus é o mesmo que explora, oprime e reprime a não-pessoa que povoa o subcontinente latino-americano. Ou, em todo o caso, quem mantém a capa e espada seu nível de vida à custa dos párias e famintos deste mundo. Puro fundamentalismo econômico (vem a recordar os partidários de Gustavo Gutiérrez) que deveria eclipsar (mas não, por isso, justificar, obviamente) o religioso.
Não é de estranhar que uma soma nada depreciável de comportamentos que roçam ou incorrem em semelhante dogmatismo desemboque numa generalizada atitude de imunização e impermeabilidade a toda crítica. Esta atitude de fundo poder-se-ia constatar não só em sua prepotência ética, senão também em seu sistemático fechamento para aceitar qualquer crítica feita a partir de fora do subcontinente e em seu sistemático rechaço de qualquer observação efetuada por pessoas presentes na América Latina, mas que não se converteram devidamente ao mundo dos pobres tal e como eles (críticos discernidores e repartidores de patentes) entendem por “conversão”.
A pré-modernidade
Existe, em separado ou conjuntamente com os preconceitos de debilidade e dogmatismo, outro, não menos importante: o referido à suposta pré-modernidade dos teólogos da libertação e, em certa medida, também do Papa Francisco. O trabalho de Gustavo Gutiérrez mereceria tal qualificativo por partir da afirmação (tão espontânea como acrítica) da existência de Deus e por estabelecer uma clarificadora separação entre pobreza e ilustração. Sua teologia não passaria de ser senão um reflexo do atraso (tanto intelectual como sócio-econômico) no qual se vê imerso o subcontinente latino-americano.
Gustavo Gutiérrez não se tem cansado de repetir até a saciedade que o problema número um (e, portanto, o mais urgente) do subcontinente não é o da secularização, senão o da pobreza, da fome, da miséria, da repressão e da morte. Segundo seus críticos, somente uma pessoa, um país ou um ‘subcontinente’ que tivesse logrado cobrir as necessidades mais elementares poderiam propor-se os problemas derivados da ilustração. A Europa já teria passado por esta situação histórica e já teria conhecido, por isso, os rigores e as preocupações de subsistência que assaltam nestes momentos os latino-americanos. Entrar-se-ia na modernidade quando se tivesse alcançado um nível de vida que permitisse levantar, quando menos, a vista por cima dos peremptórios problemas derivados da subsistência pessoal ou familiar. Não seria esta, certamente, a situação da América do Sul. Normal e lógico que a teologia do peruano se faça eco e seja reflexo dela e que, portanto, não seja, para nada, moderna.
De todas as formas, não seria previsível (a não ser que se seguisse propugnando projetos revolucionários mais próprios de alucinados fundamentalistas) uma perpetuação nesta quase secular prostração. Cedo ou tarde iriam desaparecendo as causas mais deter-minantes de tal atraso, iria emergindo uma classe média tão empreendedora e trabalhadora como consumista e zelosa de suas liberdades. O ídolo do dinheiro e do consumo acabaria apropriando-se não só dos ricos, nem unicamente das classes médias, senão também dos pobres que inevitavelmente teriam que existir. A fé em Deus ver-se-ia questionada, segundo este preconceito, não só porque graças ao progresso se abriria passagem à pergunta por sua existência, senão também porque se assistiria a um inexorável processo de erradicação deste arcádico ou idílico binômio (pelo menos para reflexão teológica) entre pobreza e fé em Deus, no que tão bem se desenvolve o peruano. E, com ele, os teólogos da libertação. Então ver-se-ia (com maior clareza, se cabe) a pré-modernidade da teologia de Gustavo Gutiérrez ao minimizar a importância da secularização.
Mas, a raiz sócio-econômica do preconceito sobre a pré-modernidade da teologia da libertação vem acompanhada do questionamento da qualidade intelectual e significatividade de dita teologia. A partir de tal questionamento se acabaria por sustentar que o qualificativo de pré-moderna lhe adviria por limitar-se a ser uma expressão orgânica e acrítica de uma fé tão inquestionada como incapacitada para manter um diálogo medianamente crível com a ilustração e com a suspeita traída pela modernidade. Com efeito, só poderia receber o qualificativo de moderna aquela reflexão que não se limitasse a ser (como assim o aparenta sua concepção da teologia como ato segundo) uma ampliação do comportamento existente, senão que submetesse tal comportamento às exigências críticas traídas pela ilustração ou, em todo o caso, a uma revelação recebida na modernidade. A teologia de Gustavo Gutiérrez seria, segundo este preconceito, pré-moderna porque acolheria acriticamente o binômio formado pela fé cristã e os pobres, poupando-se de passar dito binômio pelo crisol ou pelo crivo ilustrado.
Ao sujeito moderno e ilustrado não valem as críticas voltadas à práxis que ensaia o teólogo peruano quando se questiona como é possível falar de Deus a partir do sofrimento do inocente, já que não parece ser muito consistente sustentar (como assim o defende) que é possível porque o inocente o faz. Respostas deste estilo são e serão (em sua autoritária aplicação à práxis) pré-modernas e, precisamente, por isso, inaceitáveis.
O pelagianismo
Finalmente, outro dos preconceitos que funciona com relativa frequência é o que considera, tanto a teologia da libertação como a contribuição de Gustavo Gutiérrez, expressões claras de pelagianismo, ou seja, de uma desmedida confiança nas possibilidades salvíficas e saneadoras que resultam do esforço e do compromisso. Em sua versão mais radical é uma clara e rotunda afirmação das possibilidades auto-salvificas do ser humano.
A contribuição teológica de Gustavo Gutiérrez seria, segundo este preconceito, o resultado mais claro e, ao mesmo tempo, mais imaturo de um pensador que não teria sido capaz de manter o devido equilíbrio entre a indubitável presença da graça de Deus na história e na vida cristã e a iniludível importância do compromisso ou das obras. Sua teologia correria o grave perigo de olvidar algo tão elementar como o fato de que, se a fé sem as obras está morta, a fé cimentada – ou pronta a sustentar-se – na prepotência das obras corre o risco de olvidar que a salvação é um presente, fruto do amor de Deus, e não o resultado maduro de um caminhar comprometido, embora seja de entrega total e por toda a vida com os mais pobres e oprimidos deste mundo.
O final predizível de uma teologia marcadamente pelagiana, algo já perceptível entre alguns dos seguidores mais insignes da teologia da libertação, seria a afirmação prática de que a salvação, ou acontece na história ou é irrelevante. Este final estaria acompanhado de uma progressiva perda religiosa de sangue, de uma constante dificuldade para celebrar, na limitação e fragilidade da história diária, a entrega de Deus na Cruz. A ânsia de alcançar a justiça acabaria por afogar o fundamento cristão da mesma, que é o amor e a gratuidade. Tudo isso finalizaria na exaltação prometeica do compromisso humano e no ocultamento prático da gratuidade da salvação.
Desta maneira, a libertação não seria salvação de Deus na história e (se Ele quisesse) também além da história, senão lisa e simples auto-salvação. Segue daí que o pelagianismo da teologia de Gustavo Gutiérrez se apresente sob as formas, umas vezes, de urgência ética: outras, de obsessiva escuta das análises sociológicas e, quase sempre, mediante permanentes e injustificadas aterrissagens (por se efetuarem em nome da fé) em pontos operativos mais que opináveis.
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O Papa Francisco, Gustavo Gutiérrez e seus críticos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU