24 Novembro 2014
Um destacado jesuíta americano recentemente nomeado pelo Papa Francisco para processar os padres acusados de abusar sexualmente de menores foi, ele mesmo, uma das várias autoridades católicas que permitiram que um notório padre abusador continuasse a ministrar, durante anos, mesmo depois de saber da longa história de abusos sexuais que ele tinha. É o que mostram documentos jurídicos.
A reportagem é de Michael Rezendes, publicada pelo jornal The Boston Globe, 23-11-2014. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
O Pe. Robert J. Geisinger, nomeado em setembro como o “promotor da justiça” no Vaticano, era a segunda mais alta autoridade entre os jesuítas de Chicago na década de 1990, quando os seus líderes estavam enfrentando múltiplas queixas de abusos contra o Pe. Donald J. McGuire, um sacerdote itinerante com muitos apoiadores influentes, inclusive Madre Teresa de Calcutá.
Os jesuítas, porém, não notificaram a polícia nem tomaram medidas eficazes para evitar com que McGuire continuasse a molestar menores.
Documentos analisados pelo jornal The Boston Globe, a maioria deles da própria Igreja produzidos durante ações movidas pelas vítimas de McGuire, mostram que Geisinger tinha conhecimento detalhado das queixas contra o religioso já em 1995 e aconselhou algumas autoridades em Chicago sobre como disciplinar McGuire só em agosto de 2002.
McGuire foi, finalmente, condenado em 2006 por um júri de Wisconsin por molestar dois meninos que haviam notificado as autoridades civis. Foi também condenado por acusações federais em 2008 e está cumprindo uma sentença de 25 anos de prisão.
“É espantoso que, para um cargo tão importante e sensível, o Vaticano não iria querer alguém cujos antecedentes fossem impecáveis, no sentido de que nenhuma dúvida poderia ser levantada”, disse Philip F. Lawler, o editor do Catholic World News, sobre Geisinger. Lawler tem sido um importante crítico do tratamento que a Igreja dá às crises envolvendo abusos sexuais.
Geisinger, que se encontra em seu escritório em Roma, submeteu suas dúvidas à Sala de Imprensa do Vaticano, dizendo: “A Santa Sé espera que o Pe. Geisinger continue a fazer um excelente trabalho como promotor de justiça, com base em seu histórico, em seu compromisso com a justiça e com sua preocupação junto às vítimas”.
O Pe. Federico Lombardi, diretor da Sala de Imprensa da Santa Sé, disse em nota que Geisinger “manifestou preocupações quanto à conduta de McGuire” enquanto trabalhava com os jesuítas de Chicago, e creditou Geisinger como sendo quem apresentou o caso para a expulsão de McGuire do sacerdócio em 2008.
Lombardi observou que o Papa Bento XVI deliberou sobre o caso, a pedido de Geisinger, em menos de dois meses.
A nomeação do Pe. Geisinger – o seu título completo é promotor de justiça na Congregação para a Doutrina da Fé – foi anunciada na época em que o Vaticano também confirmava que o cardeal da Arquidiocese de Boston, O’Malley havia sido nomeado presidente de uma comissão consultiva antiabuso lançada no ano passado.
As nomeações foram vistas por muitos como um sinal de que o Papa Francisco estaria determinado a enfrentar os escândalos contínuos envolvendo abusos sexuais por parte do clero, em grande parte por causa do histórico de O’Malley em tomar fortes medidas para evitar abusos futuros e das declarações que este religioso tem feito sobre o assunto.
Na semana passada, O’Malley ressaltou esta nova ênfase em entrevista ao programa “60 Minutes”, do canal CBS, dizendo que o Papa Francisco “está muito comprometido com a tolerância zero e a responder, de maneira apropriada, ao fenômeno dos abusos infantis”.
O’Malley também abordou uma questão que, para muitas vítimas e seus defensores, levanta dúvidas quanto ao compromisso da Igreja em pôr fim nos casos de abusos infantis: o fracasso do Vaticano em disciplinar um bispo da cidade do Kansas condenado em 2012 por não notificar um padre suspeito de abuso infantil.
“Esta é uma questão que a Santa Sé precisa abordar com urgência”, disse O’Malley.
Contatado pelo The Boston Globe, O’Malley não quis responder a perguntas sobre a falha do Pe. Geisinger, junto de seus colegas jesuítas, de informar às autoridades civis sobre o Pe. McGuire.
Os documentos dos processos movidos pelas vítimas de McGuire mostram que Geisinger desempenhava um importante papel nos esforços, demorados e sem sucesso, dos jesuítas em evitar com que McGuire continuasse estar junto e viajar com adolescentes – muitas vezes compartilhando o mesmo quarto que eles –, apesar das queixas que datam da década de 1960.
Um memorando escrito a Geisinger em agosto de 2002, mais de seis meses depois que um escândalo envolvendo abusos sexuais eclodia em Boston, menciona seis queixas contra McGuire e pede conselhos a Geisinger sobre como tomar medidas disciplinares que acabariam desligando McGuire da ordem jesuíta.
Na época, McGuire havia ignorado quatro advertências feitas pelos líderes jesuítas e Geisinger havia se mudado para Roma, num novo cargo na sede da ordem religiosa.
“Donald J. McGuire pode ser bastante beligerante e, provavelmente, irá desejar contratar um conselho canônico para representá-lo”, disse o memorando, escrito pelo Pe. Richard H. McGurn, a segunda mais alta autoridade na Província Jesuíta de Chigago à época. “Em outras palavras, parece ser melhor dar-lhe uma nova avaliação do que instituir um processo para desligamento”.
O memorando a Geisinger foi citado por um juiz de Illinois numa decisão que permitiu às vítimas de McGuire buscar indenizações em suas ações judiciais contra os jesuítas em Chicago. O memorando, disse o juiz Jeffrey Lawrence, “reconheceu que McGuire tinha uma longa história de comportamento inadequado junto a adolescentes, que ele tinha, em princípio, violado diretrizes postas a ele e que não havia sido adequadamente monitorado”.
Em sua responsa de 2002 ao memorando, Geisinger forneceu conselhos sobre como restringir o ministério de McGuire à Arquidiocese de Chicago além de medidas necessárias para removê-lo do próprio ministério, caso os jesuítas locais escolhessem assim. Porém, não sugeriu notificar a conduta de McGuire às autoridades civis.
Geisinger também deixou claro que, há tempos, sabia dos detalhes das acusações contra McGuire, observando que escreveu uma carta a McGuire – em 17 de fevereiro de 1995 –, delineando as queixas contra ele, inclusive uma feita pela mãe de uma das vítimas que “de forma muito veemente pede que você não tenha mais contato com o filho dela”.
A carta foi assinada pela mais alta autoridade jesuíta de Chicago à época, mas Geisinger disse que foi ele quem a escreveu.
Em sua curta entrevista, também aconselhou o jornal The Boston Globe a contatar a Província Jesuíta de Chicago. Mas o porta-voz para o que é hoje a Província Jesuíta Chicago-Detroit não retornou a ligação telefônica nem respondeu ao email enviado.
Defensores das vítimas de abusos sexuais clericais criticaram a escolha de Geisinger como o promotor-geral do direito canônico por causa de seu papel no caso McGuire.
O autor católico Lawler disse que a falha aparente de Geisinger em recomendar uma ação mais incisiva no caso envolvendo McGuire antes dos procedimentos de expulsão dele do sacerdócio levanta dúvidas sobre a sua adequação para processar padres pedófilos.
“O que eu desejo ver em sua função é alguém que vá persistir, através da resistência institucional, em vista de processar os acusados”, disse. “Alguém poderia dizer que Geisinger estava só sendo um assessor leal àqueles em posições de maior responsabilidade, mas o que não se pode dizer é que foi incisivo”.
Lawler e sua esposa, Leila, abrigaram uma das vítimas de McGuire durante o ano letivo 1999-2000, quando a vítima era um aluno da oitava série da Escola Trivium, uma pequena escola católica em Lancaster.
Anos mais tarde, uma vítima que havia morado junto aos Lawlers notificou as autoridades civis sobre múltiplos incidentes de abuso cometidos por McGuire durante viagens a outros estados e países, o que levou a acusações federais de atos sexuais envolvendo uma pessoa menor de 18 anos. Estas acusações levaram à condenação criminal de McGuire em 2008.
Um dos supervisores de Geisinger, o Pe. Bradley M. Schaeffer, provincial jesuíta de Chicago durante os anos de 1991 a 1997, finalmente se desculpou por suas falhas em lidar com o caso de McGuire após a publicação detalhada da história feita pelo jornal The Boston Globe ter mostrado o papel que ele desempenhou.
“Profundamente lamento que minhas ações não foram suficientes para impedi-lo de se envolver nestes crimes horríveis”, disse em nota Schaeffer.
Geisinger era o assessor de Direito Canônico de Schaeffer em Chicago.
Atualmente, as vítimas de McGuire e defensores dos sobreviventes de abusos cometidos pelo clero estão dizendo que o Vaticano deveria ou explicar-se ou reconsiderar a nomeação de Geisinger.
Terence McKiernan, fundadora do grupo de defesa “bishopaccountability.org”, perguntou-se: “Vocês realmente querem escolher alguém que, de fato, está no rastro de um dos casos de abuso mais flagrantes que os jesuítas já se envolveram?”
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Importante procurador vaticano não informou sobre abusador - Instituto Humanitas Unisinos - IHU