12 Novembro 2014
"Alguns mecanismos carreiristas ainda são “quase nepotistas” e o Papa Francisco está tentando tornar este sistema mais dinâmico. Hoje ele pode acelerar a rotatividade reforçando o limite de idade, mas também pode fazê-lo ao usar o seu direito para movimentar os seus recursos humanos na Cúria pondo-os em outros postos internos ou enviando-os de volta ao país de origem. O sistema carreirista como uma passagem só de ida não só sobreviveu ao Vaticano II, mas, de certa forma, se tornou ainda mais pernicioso hoje do que no período posterior ao Concílio de Trento", escreve Massimo Faggioli, professor assistente de Teologia na Universidade de St. Thomas, em St. Paul, Minnessota, EUA e autor do “John XXIII: Medicine of Mercy” (Collegeville: Liturgical, 2014), em artigo publicado por Global Pulse, 11-11-2014.
A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Segundo o autor, "está ficando claro que Roma não é mais a última parada da carreira de um bispo. Na verdade, é até possível que um bispo – até mesmo um cardeal – possa ser rebaixado um degrau da escada eclesiástica e ser enviado de volta para casa ou para outro lugar".
Eis o artigo.
As novas disposições promulgadas pelo Papa Francisco em 5 de novembro deste ano relativas à renúncia de bispos não são, na verdade, inteiramente novas.
O rescrito papal cita os passos que a Igreja, enquanto instituição, tomou desde o Concílio Vaticano II para normalizar a aposentadoria de sua hierarquia, especialmente daqueles bispos que, até o Vaticano II, nunca se aposentaram. Com o decreto conciliar sobre o ministério pastoral dos bispos, o Christus Dominus (de 1965), e o motu proprio de Paulo VI, Ecclesiae Sanctae (1966), os bispos no Vaticano e o papa que concluiu o evento abriram as portas para os últimos desenvolvimentos.
No entanto, o debate conciliar começou, na verdade, focando-se no problema da inamovibilidade dos padres nas paróquias diocesanas. Antes do Vaticano II, os bispos não podiam remover os párocos (em sua maioria de ordens religiosas). Isso colocava um freio significativo no poder ordinário diocesano. Mas o debate no Concílio rapidamente moveu-se para a questão da inamovibilidade dos próprios bispos. Assim como outros assuntos durante os eventos, um debate que incialmente começou abordando um problema para os bispos evoluiu para um debate no qual os próprios bispos se tornaram o problema. Os padres conciliares e os peritos teológicos prolongaram o debate sobre a idade de aposentadoria dos bispos (65, 70, 75, ou 80?) e o decreto continuava sendo vago. Ele não estipulava um limite exato de idade, mas claramente indicava que os bispos que não mais estivessem em condições de servir a suas igrejas deveriam renunciar. O Papa Paulo VI juntou as peças do Concílio e estabeleceu a idade de 75 para se pedir a renúncia.
Assim como acontece frequentemente na Igreja, houve exceções. A mais óbvia em causa foi a do bispo de Roma. Os que participaram no concílio nem mesmo imaginaram que as disposições estabelecidas se aplicariam a este bispo também. Porém ouve exceções menos óbvias, tais como aquelas para os cardeais e bispos que serviam na Cúria Romana. Estas autoridades somente tinham a permissão para trabalhar até os 80 anos, mas eles permaneciam em Roma por toda vida. Os bispos curiais não eram normalmente enviados de volta para a suas dioceses locais tal como está acontecendo agora no papado de Francisco. Por outro lado, Paulo VI pressionou por uma reforma para além das provisões do Vaticano II em 1970, com sua carta apostólica, Ingravescentem Aetatem, ao decidir (sem fundamentos teológicos ou e sem base na tradição, mas puramente fora do senso comum) que os cardeais que chegassem aos 80 anos não mais poderiam votar nos conclaves. Isso também significou que um cardeal acima dos 80 anos jamais iria praticamente se tornar papa, mesmo se em teoria isto continuasse possível.
A decisão do Papa Francisco de reconfirmar o limite de idade é, no entanto, um outro exemplo de suas semelhanças com Paulo VI. Houve cardeais mais velhos que nunca perdoaram o Papa Paulo por causa de seu documento Ingravescentem Aetatem, e Francisco está certo que irá enfrentar a mesma animosidade ao publicar este último rescrito. Enquanto o papa argentino e seu “conselho dos nove cardeais” preparam uma ampla reforma da Cúria, pelo menos uma coisa já ficou clara neste documento do dia 5: os bispos curiais vão continuar a perder “automaticamente” os seus cargos no momento em que completarem 75 anos. O documento também deixou claro que o papa espera que os cardeais na Cúria continuem apresentando suas renúncias aos 75 anos, permitindo a ele – o papa – decidir se as aceita imediatamente ou não. Resta saber o que vai acontecer na prática. Mas uma coisa é, de fato, “novo” se se comparar com as disposições estabelecidas por Paulo VI. Trata-se de um artigo que afirma que o papa pode e irá pedir a alguns bispos diocesanos que renunciem mesmo antes de alcançarem a idade limite de 75 anos.
Faz-se importante compreender o que está acontecendo na Igreja, pois o contexto é muito diferente daquele período imediatamente posterior ao Vaticano II. Após o Vaticano II, havia a expectativa de que estas reformas que tentavam acelerar a rotatividade na hierarquia (aposentadoria de bispos, não votação nos conclaves para os cardeais octogenários) eram os meios infalíveis para o aggiornamento institucional da Igreja.
Sabemos que isso não aconteceu de acordo com as expectativas. João Paulo II e Bento XVI, especialmente, permitiram (e mesmo pediram) que bispos diocesanos destacados ficassem até os 77 ou 78 anos de idade. Mas imediatamente aceitavam os pedidos de renúncia daqueles que eram tidos como estando fora das políticas doutrinárias de seus pontificados. Alguns bispos e cardeais influentes na Cúria puderam sobreviver à parte de todas estas reformas. As nomeações vaticanas eram a última parada em suas carreiras eclesiásticas, em vez de uma função limitada a um mandato ou uma idade limite.
Há muitas expectativas de que o Papa Francisco irá reformar profundamente a Cúria. Alguns acreditam que as suas recentes disposições sobre as renúncias dos bispos visavam especificamente os cardeais que trabalham na Cúria. Mas é o sistema de carreira dentro da Igreja que mais precisa ser mudado. De alguma forma, este permaneceu sem sofrer reforma alguma desde os séculos XII ou XIII, quando os cardeais eram criados como “parte do corpo do papa”.
Os que se queixam sobre as decisões feitas pelo Papa Francisco a respeito do departamento pessoal da Cúria (o cardeal Burke sendo somente um dos casos com os quais o papa lidou) se esquecem que, em todas as organizações no mundo, os novos líderes trazem junto os seus parceiros e que estes substituem aqueles que não os são. A Cúria é um “sistema de patronagem” que se desenvolveu a partir da prática do nepotismo.
Porém, alguns mecanismos carreiristas ainda são “quase nepotistas” e o Papa Francisco está tentando tornar este sistema mais dinâmico. Hoje ele pode acelerar a rotatividade reforçando o limite de idade, mas também pode fazê-lo ao usar o seu direito para movimentar os seus recursos humanos na Cúria pondo-os em outros postos internos ou enviando-os de volta ao país de origem. O sistema carreirista como uma passagem só de ida não só sobreviveu ao Vaticano II, mas, de certa forma, se tornou ainda mais pernicioso hoje do que no período posterior ao Concílio de Trento. Está ficando claro que Roma não é mais a última parada da carreira de um bispo. Na verdade, é até possível que um bispo – até mesmo um cardeal – possa ser rebaixado um degrau da escada eclesiástica e ser enviado de volta para casa ou para outro lugar.
No período inicial pós-conciliar, as reformas de Paulo VI significaram perdas de empregos na Cúria Romana para muitos italianos na medida em que ele buscou tornar a força de trabalho vaticana mais internacional, trazendo pessoal a partir das “igrejas mais jovens” ao redor do mundo. Ninguém apresentou objeções a isso exceto, talvez, os italianos. Numa igreja que está mais global do que há 50 anos, e numa Cúria que também está mais internacionalizada, a maioria dos italianos percebem que eles não têm mais o direito exclusivo de administrar o governo da Igreja. Mas há outros grupos e nichos de poder na instituição cujo papel cresceu bastante sob João Paulo II e Bento XVI. Eles estão preocupados que as reformas imaginadas pelo papa argentino irão diminuir a influência deles. E é aqui onde o recente caso do cardeal Burke – “rebaixado” do posto de administrador do mais alto tribunal para ser capelão dos Cavaleiros de Malta – nos diz algo sobre o que está, hoje, acontecendo na Igreja.
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Papa Francisco põe o carreirismo curial na mira. O Vaticano não é mais o último degrau na escalada eclesiástica - Instituto Humanitas Unisinos - IHU