10 Novembro 2014
Apenas lendo as notícias nos jornais e sites, tem-se a impressão de que a liberdade religiosa está sob ameaça. Com a carnificina desencadeada pelo autodeclarado Estado Islâmico no Iraque e na Síria e as tensões entre Igreja e Estado no ocidente, o cenário parece estar ficando mais e mais sombrio a cada dia.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada por Crux, 09-11-2014. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Não precisamos, no entanto, ficar apenas no nível anedótico. A organização caritativa católica, com sede na Alemanha, chamada “Ajuda à Igreja que Sofre” produz atualmente um relatório sobre o estado da liberdade religiosa ao redor do mundo, e a sua edição de 2014 contém resultados preocupantes.
Segundo os autores, a conclusão é esta: “Está se tornando cada vez mais urgente a necessidade, por parte de todos os líderes religiosas, de proclamar bem alto a oposição à violência inspirada na religião e reafirmar o apoio à tolerância religiosa”.
O líder religioso mais facilmente identificável e influente no planeta é o papa. Assim, a interrogação feita por aquilo que o relatório chama de uma “maré crescente” de intolerância religiosa vem a ser esta: “O que Francisco pode fazer?”
É claro que ninguém tem a capacidade de abanar uma varinha mágica e mudar as marés da história. Dito isso, a seguir apresento três possibilidades atualmente ao alcance do papa.
1. Francisco poderia fazer uso de viagens internacionais para estabelecer alguma pontes
Por exemplo, no final deste mês ele irá fazer uma viagem de três dias onde vai se encontrar com o Patriarca Bartolomeu de Constantinopla, quem disse que o seu pequeno rebanho ortodoxo se sente “crucificado” pelo governo turco.
O símbolo mais convincente neste sentido é o famoso Seminário Halki, fundado em 1844 pelo Patriarca Ecumênico de Constantinopla, centro histórico do cristianismo oriental. Este seminário esteve, certa vez, entre os centros mais importantes de estudos no mundo ortodoxo, mas foi fechado em 1971 por uma lei que baniu as instituições de ensino privadas.
Em 2012, o presidente turco Recep Erdoğan teria garantido ao presidente Barack Obama que o seminário seria reaberto e que o terreno da ilha onde ele se encontra seria retornado ao controle ortodoxo. Até o momento, no entanto, o seminário continua fechado, em parte devido à oposição de facções islâmicas e ultranacionalistas.
Francisco, portanto, tem uma boa oportunidade para expressar o que muitos querem ouvir na Turquia: “Sr. Erdoğan, reabra o seminário!”
2. Francisco poderia organizar uma grande assembleia inter-religiosa em Assis
Esta ideia poderia estar alinhada com um famoso encontro de 1986 do Papa João Paulo II, na época da tensão da Guerra Fria entre os EUA e a União Soviética, feito com a finalidade de rezar pela paz. (João Paulo realizou dois outros encontros semelhantes em 1993 e em 2002, e Bento XVI organizou um em 2011.)
Desta vez o assunto seria a liberdade religiosa, com o objetivo de não apenas produzir um apelo anêmico, mas um plano específico de ação promovido pelos líderes espirituais mais respeitados do mundo.
Por exemplo, Francisco poderia engendrar um compromisso em Assis a partir de uma coalizão entre organizações caritativas de muçulmanos, judeus e cristãos reunindo forças a fim de trazer alívio a todas as vítimas de perseguição religiosa no Oriente Médio.
3. Francisco poderia usar as ferramentas tradicionais do culto e devoção cristão para fomentar a consciência sobre os fiéis perseguidos
Por exemplo, o texto de apresentação para o relatório deste ano do gropo “Ajuda à Igreja que Sofre” foi escrito por Paul Bhatti, cujo irmão Shahbaz foi assassinado no Paquistão em 2011 por fazer oposição às duras leis antiblasfêmicas do país. Com apenas 42 anos na época, Shahbaz Bhatti era o único católico entre os ministros do país e foi um forte ativista em nome das minorias religiosas.
Não há dúvidas sobre a piedade católica de Bhatti. Após sua morte, os únicos três itens encontrados em sua escrivaninha foram a Bíblia, um rosário e uma imagem da Virgem Maria. Em entrevista concedida um pouco antes de sua morte, ele falou: “Conheço Jesus Cristo que sacrificou sua vida pelos outros. Compreendo bem o significado da cruz. Estou pronto para dar a minha vida pelo meu povo.
No dia 31 de março d 2011, os bispos católicos do Paquistão escreveram ao então papa Bento XVI para dizer que eles haviam aprovado por unanimidade uma petição para que Bhatti fosse inscrito na “martiriologia da Igreja universal”, ou seja, que ele fosse declarado santo.
Francisco já mostrou querer dispensar os passos protocolares para a nomeação de santos, tais como as exigências de milagres. Se ele dispensasse tais protocolos no caso do líder paquistanês, as vítimas de perseguição religiosa em todo o mundo iriam ter um novo padroeiro.
Isto o que apresento são apenas ideias fugazes, mas são o suficiente para mostrar onde quero chegar. A capacidade do papa em mudar as realidades na prática pode ser limitada, mas ela ainda não está fora de opção.
Burke está fora, mas outros prelados de língua inglesa ganham força
Num dos movimentos mais já esperados na Igreja, o Vaticano oficialmente confirmou que o cardeal norte-americano Raymond Burke fora removido da Assinatura Apostólica, o Superior Tribunal vaticano, tendo sido designado para a Ordem do Cavaleiros de Malta, que funciona como um grupo católico de caridade.
Burke é o ferrenho conservador em termos teológicos e litúrgicos que surgiu como líder de uma ala tradicionalista no último Sínodo dos Bispos sobre a família. A sua retirada será, provavelmente, vista nos círculos católicos como outro sinal de desaprovação por parte do Papa Francisco.
A imprensa italiana informou a saída iminente de Burke no início de setembro, e o próprio cardeal a havia confirmado em comentários a jornalistas durante o mês passado. Consequentemente, a única dúvida era “quando” e não “se” a remoção iria acontecer. Ficou claro que Francisco decidiu realizar a mudança o quanto antes.
Avançando ainda nesta questão, talvez o elemento a ser pensado sobre a destituição de Burke é como ele irá se estabelecer na sua nova função.
Será que o religioso de 66 anos vai se aquietar, decidindo sair dos holofotes públicos? Ou decidirá que, visto não ter mais nenhuma responsabilidade real no Vaticano, está livre para falar o que quiser e até de forma mais dura – em suas palestras, artigos, em entrevistas –, surgindo como o rosto e a voz daquilo que se pode chamar de “oposição conservadora leal” ao papa?
Assim diz a velha sabedoria: “Mantenha os amigos próximos, e os inimigos mais próximos ainda”. Embora “inimigo” possa não ser bem a palavra mais adequada para descrever a relação entre Burke e o pontífice, Francisco claramente optou por seguir numa direção diferente, neste caso mandando o cardeal Burke para algo parecido com um exílio eclesiástico.
Resta saber se, do ponto de vista do papa, esta transferência vai resolver um problema sem, ao mesmo tempo, criar outro.
Para constar, com esta saída de Burke não há nenhum americano presidindo algum departamento vaticano importante. Tradicionalmente, pelo menos um estadunidense está entre os prelados que presidem departamentos de relevância. Então, de hoje em diante, a especulação será sobre qual prelado americano poderá ser convocado a Roma para assumir um posto na hierarquia.
Nestes movimentos e trocas anunciadas no sábado, está a nomeação de Dom Paul Richard Gallagher como o novo ministro das Relações Exteriores do Vaticano.
Com efeito, Francisco fez o jogo das cadeiras: Burke foi tirado da Assinatura Apostólica para ser substituído pelo arcebispo francês Dominique Mamberti, que até então era o seu secretário para as Relações com os Estados; Gallagher assume a função de Mamberti.
A escolha por Gallagher é significativa por dois motivos.
Em primeiro lugar, o posto de ministro das Relações Exteriores é, provavelmente, o posto diplomático mais importante do Vaticano em termos de fazer acontecer a sua agenda.
O secretário de Estado é formalmente o principal diplomata do papa, porém este papel vem com muitas outras responsabilidades, e a Secretaria para Relações com os Estados acaba fazendo grande parte do serviço.
Tradicionalmente, a diplomacia vaticana foi dominada por europeus, em particular por italianos. (Desde 1953, o posto foi ocupado por cinco italianos e dois franceses.) Esta é a primeira vez que um religioso de língua inglesa assume a posição, e portanto pode considerado como outro movimento feito pelo papa na direção de internalizar os postos-chave em Roma.
Em segundo lugar, com a nomeação de Gallagher também aumenta a emergência da língua inglesa como o segundo idioma de trabalho padrão do Vaticano.
Francisco já confiou a sua reforma financeira a uma toda-poderosa estrutura sob o comando do cardeal australiano George Pell, chefe da poderosa Secretaria para a Economia, onde o idioma inglês faz paralelo ao italiano como língua oficial. Muitos dos conselhos e diretorias financeiros do Vaticano, tais como a diretoria do Banco Vaticano e a da agência antilavagem de dinheiro também do Vaticano, estão desproporcionalmente povoados por falantes de língua inglesa.
Neste momento, o importante posto de assessor na Secretaria de Estado, basicamente a posição número 3 que supervisiona as operações do dia a dia da Igreja em várias áreas, é ocupado por um americano: Peter Wells. Agora com a nomeação de Gallagher, dois dos três mais importantes trabalhos sob a Secretaria de Estado são encabeçados por falantes nativos de língua inglesa.
Isso tudo é um tanto irônico, dado que Francisco não se sente confortável, como se sabe, com este idioma [o inglês], preferindo falar espanhol e italiano. No entanto, talvez seja exatamente porque ele percebe os seus próprios limites no idioma, e sua falta de familiaridade com as regiões do mundo onde ela é falada, o que o levou a aumentar a participação de anglófonos em sua equipe.
Em terceiro lugar, Gallagher é, indiscutivelmente, o primeiro secretário para as Relações com os Estados que traz para este posto uma grande familiaridade com os escândalos de abusos sexuais da Igreja.
Gallagher chegou como o embaixador papal para a Austrália em 2012, numa época em que uma atenção por parte da imprensa e várias investigações parlamentares se dirigiam ao legado dos abusos e da exploração de menores em várias instituições administradas pela Igreja.
“Eu esperava ter uma missão agradável, animadora, desafiadora”, disse em entrevista recente, “mas não esperava que esta experiência acabasse contando com tantos problemas”.
No passado, diplomatas vaticanos em Roma eram, às vezes, vistos como letárgicos ou surdos nas respostas aos escândalos envolvendo abusos sexuais, pois careciam de toda e qualquer experiência pessoal das regiões do mundo onde o problema se mostrava mais agudo.
Quando uma onda de escândalos irrompeu na Europa em 2010, por exemplo, o ex-secretário de Estado, cardeal Angelo Sodano, criou uma polêmica quando se referiu às queixas das vítimas de abuso como “fofocas mesquinhas” durante um discurso na missa de Páscoa presidida pelo Papa Bento XVI.
Com Gallagher, diferentemente, o Papa Francisco tem uma outra importante autoridade em seu governo, de que se pode esperar trazer uma sensibilidade maior para a necessidade de reformas.
A normatização dos papas eméritos
Quando renunciou em fevereiro de 2014, Bento XVI prometeu manter-se “escondido do mundo” e, na maior parte do tempo, vem cumprindo a sua palavra. Francisco, no entanto, incentivou o seu predecessor a “sair e participar na vida da Igreja”, e ele recentemente fez exatamente isso em dois casos.
No dia 21 de outubro, Bento enviou uma mensagem à Pontifícia Universidade Urbaniana, em Roma, a principal residência para seminaristas vindos dos países em desenvolvimento. Na ocasião, o seminário nomeou uma de suas salas com o nome do papa emérito em sua homenagem. O texto foi lido por Dom Georg Gänswein, assessor pessoal de Bento XVI e prefeito da Casa Pontifícia.
A mensagem era caracteristicamente do pontífice, centrando-se no porquê o diálogo com as outras religiões jamais pode substituir a proclamação do evangelho de Cristo e o empenho em realizar conversões. Advertiu que se isto acontecesse, significaria que “a questão da verdade (...) seria colocada entre parênteses”, o que seria “letal à fé”.
Ao mesmo tempo, Bento disse que a confiança na mensagem cristã não significa fechar os olhos para os problemas.
“Cada religião, para permanecer no lado daquilo que é certo, deve também criticar a religião”, escreveu Bento. “A religião cristã deve, sempre, desenvolver um tal poder de crítica até mesmo com respeito à sua própria história religiosa”.
A sua conclusão, no entanto, foi um claro apoio aos esforços missionários.
“A tarefa de comunicarmos o Evangelho aos outros permanece sendo uma tarefa justa, sensata”, disse, acrescentando que, ainda, há uma justificação mais simples para isto: “O amor exige ser comunicado”.
Uma outra mensagem recente de Bento direcionou-se ao Ordinariato Pessoal de Nossa Senhora de Walsingham, na Inglaterra, lançado em 2011 para ex-anglicanos que queiram se tornar católicos. A ocasião marcava o quinto aniversário de uma decisão de 2009 tomada pelo então papa que pavimentou o caminho para tais estruturas.
Bento escreveu em alemão, dizendo que “o meu inglês não seria bom o suficiente”. Aqui o papa emérito estava respondendo a uma carta enviada a ele por Nicolas Ollivant, que chefia uma organização caritativa criada para apoiar o grupo de ex-anglicanos.
“Os seus agradecimentos pela criação do Ordinariato Pessoal de Nossa Senhora de Walsingham me comoveram muito, e peço-lhe que transmita os meus agradecimentos a todos os membros”, escreveu.
“Naturalmente, estou particularmente feliz que a antiga Capela da Bavária agora se tornou a igreja de seu ordinariato, desempenhando um importante papel na Igreja de Deus. Fazia muito tempo que não ouvia uma notícia sobre este lugar sagrado, e foi portanto com todo interesse e gratidão que li a discrição que acompanhou a sua carta”.
O texto da mensagem foi divulgado pela Rádio Vaticano.
O debate sobre como balancear o diálogo com as demais religiões e o trabalho missionário vem existindo há muito tempo no catolicismo, dando uma clara relevância política à mensagem de Bento à Universidade Urbaniana. Até mesmo a sua breve nota a Ollivant pode ser dita como tendo um subtexto político, desde que a criação daquelas estruturas há cinco anos fora criticada por alguns como uma ameaça às relações ecumênicas com o anglicanismo.
Totalmente além de quaisquer implicações políticas, no entanto, o fato de que ambos os textos se tornaram públicos sem qualquer clamor real ou fanfarra é algo significativo em si, a saber: é mais um marco para a “normalização” da realidade de se ter um papa emérito.
Quando Bento anunciou, pela primeira vez, a sua intenção em se retirar do papado, especulou-se que ter dois papas vivos poderia ser uma receita para um cisma. No mínimo, alguns observadores pensaram que Bento seria um ponto de encontro para se fazer oposição ao novo pontífice.
A promessa que fez de permanecer em silêncio e ficar fora dos holofotes era a forma que Bento XVI tinha para difundir esta sua preocupação, e até o momento ele tem se recusado a assinar como representate de qualquer movimento de resistência a Francisco.
Até agora, está bastante claro quem está no comando em Roma. Bento tem 87 anos e, apesar da crescente fragilidade e fadiga, as pessoas que o viram recentemente relatam que todas as luzes estão, definitivamente, ligadas ainda. Mais do que isso, poderemos ver e ouvir de Bento XVI mais regularmente.
Quanto menos balbúrdia houver, mais fácil será aos futuros papas contemplar a renúncia sem se preocupar em não prejudicar a Igreja que eles foram chamados a liderar.
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Burke está fora. Uma resenha do que aconteceu no Vaticano na última semana - Instituto Humanitas Unisinos - IHU