07 Novembro 2014
Nós recebemos a Palavra de Deus mediada pela doutrina e pela disciplina medieval do matrimônio. Essas categorias, que desempenharam, de modo bastante eficaz, uma função de mediação por quase um milênio, entraram em crise com o século XIX. A crise, no entanto, não é da Palavra de Deus, mas da sua transcrição/tradução medieval.
A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu S. Anselmo, de Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, de Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, de Pádua. O artigo foi publicado no blog da revista Il Regno, 04-11-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Configurando um modelo de tradição eclesial bastante linear, o cardeal Gerhard Müller afirmou recentemente: "Há tantos meios, mas há um só mediador, que é Jesus Cristo e o seu Evangelho. Portanto, a Palavra de Deus nunca pode ser ignorada de modo algum e não pode ser submetida a compromissos em nenhuma de suas passagens. Ela deve ser aceita plenamente. A Igreja, nem antes, nem depois, nem durante o Sínodo pode mudar o que vem do ensinamento de Cristo. No que se refere ao matrimônio, são prioritárias as palavras: 'O que Deus uniu, o homem não divida'" (Vatican Insider, 03-11-2014).
De fato, nós recebemos a Palavra de Deus mediada pela doutrina e pela disciplina medieval do matrimônio. Tal disciplina se instituiu mediante o recurso a categorias que não fazem parte da cultura cristã, em sentido estrito, mas que foram tomadas da tradição metafísica grega, do pensamento jurídico romano e, em parte, do bárbaro.
Em tal configuração, o modelo de concepção do matrimônio e da sua indissolubilidade foi modelado sobre uma complexa relação entre a "objetividade do vínculo" e a subjetividade das condições exigidas para um consenso "válido" e uma "real" consumação.
Essas categorias, que desempenharam, de modo bastante eficaz, uma função de mediação por quase um milênio, entraram em crise com o século XIX.
A crise, no entanto, não é da Palavra de Deus, mas da sua transcrição/tradução medieval. O que o mundo tardo-moderno pôs em discussão não é principalmente a unidade da família, mas o modo medieval de pensar essa unidade.
O pensamento medieval realizou, nesse campo, duas autênticas obras-primas: de um lado, esculpiu finamente o monumento à autoridade do amor. Um grande vínculo objetivo, forte e, ao mesmo tempo, delicado, que estrutura a vida dos sujeitos e das comunidades, que assegura a continuidade das gerações e a educação dos jovens.
Ao lado desse grande resultado, fez o não menos importante trabalho de cinzel sobre o sujeito, sobre a sua vontade, sobre a sua liberdade, sobre o seu corpo e sobre a sua alma.
Tudo isso se tornou, do século XII em diante, o duplo versante, objetivo e subjetivo, do matrimônio cristão. Certamente, já essa época conhecia a alternativa arriscada que essa compreensão podia revelar: como primeiro e como último dos sacramentos, o matrimônio tinha em si, não muito escondidas, as suas belas tensões.
Mas tudo isso podia ser gerido, justamente, com um sábio equilíbrio do monumento objetivo do vínculo com a fineza das condições subjetivas do consentimento e da consumação.
Essa doutrina jurídica dava palavra e forma à tradição teológica, oferecendo-lhe também um "caminho processual" para ir ao encontro das – raras – ocasiões de "matrimônio fracassado".
Foi assim elaborado, naquele contexto e com aquelas categorias de pensamento, um procedimento para poder "declarar", sob certas condições, uma condição de reversibilidade dos sujeitos em relação ao seu vínculo. Não para que fossem "dissolvidos do vínculo restritivo", mas porque o vínculo objetivo podia ser reconhecido como que em falta de condições subjetivas e, portanto, inexistente.
Note-se: a solução não era oferecida senão com a constatação de uma carência de elementos subjetivos à constituição do próprio vínculo. Se o vínculo tinha se constituído validamente e a consumação tinha ocorrido, o vínculo devia ser considerado objetivo, subtraído de toda história do sujeito.
Se, ao invés, consentimento ou consumação estivessem "viciados" por alguma falha, então se devia constatar que o vínculo nunca tinha ocorrido.
Fisiologia e patologia do vínculo, no entanto, tinham, nessa transcrição medieval, um elemento em comum: não admitiam nenhuma "história do vínculo". Isso está tipicamente ligado ao método de pensamento e de argumentação da era medieval.
No entanto, tal modelo medieval entra em crise quando, com a modernidade tardia, realiza-se um mundo que pensa o sujeito com os critérios da consciência e da história. Com tal crise, repito, não é a indissolubilidade que entra em dificuldade, mas o seu modo de ser compreendida e transcrita segundo categorias medievais.
Como prova desse limite "categórico", gostaria de me deter sobre dois aspectos da questão, assim como se apresentam no mundo tardo-moderno:
- de um lado, muda o modo de compreender a relação entre "comunhão" e "liberdade";
- de outro, manifesta-se uma espécie de "degeneração" do remédio processual de constatação da nulidade do vínculo.
1. O modelo medieval de compreensão do matrimônio opera uma passagem muito rápida e desenvolta entre o sujeito livre e relativamente autônomo e o objeto de autoridade, que superintende a vida dos sujeitos. A Palavra de Deus, com efeito, não define de modo detalhado o que devemos entender por "o que Deus uniu", em relação ao que "o homem não deve separar". Ato divino e ato humana, de vez em quando, encontram uma representação e uma configuração diferentes. O que muda, com a modernidade tardia, é precisamente a "não exterioridade" entre autoridade e liberdade. Comunhão e da liberdade de consciência se tornaram realidades recíprocas, em que a autoridade não tem mais, ao menos imediatamente, nenhum direito adquirido. E em que a comunhão, se não passa por consciências livres, parece ser suspeita e imposta, e perde, por assim dizer, a própria autoridade.
2. Por isso, o equilíbrio entre autoridade e liberdade não pode ser pensado em analogia com um "contrato", mas sim ao longo das linhas de uma aliança ou de um pacto: a mudança não é apenas uma passagem do "direito" para a "teologia", mas também entre configurações jurídicas diferentes do próprio matrimônio. Isso tem, como consequência, um grande paradoxo: justamente se deixarmos em uso as "categorias medievais" que transcrevem a palavra de Deus nesses termos não mais adequados, geramos contínuas contradições entre sistema jurídico e realidade matrimonial. Assim, se buscamos salvaguardar, a todo custo, a "objetividade" do matrimônio com as categorias medievais, acabamos favorecendo, dessas mesmas categorias medievais, apenas o lado subjetivo, submetendo a realidade matrimonial objetiva à carnificina impiedosa das "causas subjetivas de nulidade", que, inevitavelmente, se multiplicam e esvaziam de consistência toda objetividade. Erradicada do seu ambiente original, a conceitualidade medieval introduz contínuas forçações na realidade e também acaba gerando "monstros". Note-se: esse não é um efeito das categorias como tais, mas da sua utilização descontextualizada, em um clima e em uma cultura que pensa o ser humano, as relações, a liberdade e a autoridade de modo profundamente diferente.
Como a Idade Média escolástica e jurídica transcreveu a palavra de Deus e a sabedoria eclesial nas categorias do direito e da metafísica do seu tempo, relacionando tradição grega, romana e bárbara, como finíssimas mediações, assim também hoje a modernidade tardia deve saber transcrever o sentido dessas obras-primas escolásticas em uma nova linguagem.
A linguagem da liberdade de consciência, da história do sujeito e dos seus laços e da transformação da intimidade podem se tornar, hoje e amanhã, novas obras-primas de custódia e de transmissão da Palavra de Deus sobre o matrimônio.
Para que isso possa acontecer, é necessário superar a rígida e forçada contraposição entre objetividade sacramental e subjetividade do consentimento e da consumação. Acredito que só assim seremos capazes de servir a Palavra de Deus "propter homines".
De um lado, portanto, realmente precisamos retornar ao Evangelho e à Palavra de Deus, antes que à doutrina eclesial. Mas, de outro, temos uma necessidade urgente de uma melhor formulação doutrinal, para honrar verdadeiramente a Palavra de Deus nas categorias culturais a ela mais adequadas.
As duas coisas não estão em contradição; ao contrário, uma coisa requer, necessariamente, também a outra. Por isso, às questões levantadas pelo Sínodo, não há soluções simples, nem em um sentido, nem no outro.
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Qual matrimônio e qual tradição? Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU