07 Outubro 2014
"Os padres sinodais são chamados a dar-se conta do fato de que a moral oficial da Igreja católica em âmbito sexual e familiar é atualmente uma “caricatura”, e o é também para grande parte dos católicos praticantes (como o demonstrou a sondagem pré-Sínodo querida pelo Papa). Ainda se pode continuar a defendê-la por amor à tradição, mas se deve ter consciência que isso significa colocar-se fora do mundo e, portanto, tornar-se incapazes de exercer a ação fecundadora da qual o mundo tanto necessita", escreve Vito Mancuso, teólogo, em artigo publicado no jornal La Repubblica, 06-10-2014. A tradução é de Benno Dischinger.
Eis o artigo.
A colocação do que está em jogo do Sínodo é muito grande: diz respeito à Igreja em si mesma, enquanto verificará a efetiva liderança de que goza o Papa Francisco junto aos bispos e aos cardeais, e se refere também à capacidade do catolicismo de voltar a falar à consciência contemporânea.
No que se refere ao primeiro aspecto, é preciso considerar que este pontificado, a um ano e meio de seu início, se encontra pela primeira vez ante uma prova decisiva: a de ver ou não confirmada pela assembléia sinodal o estilo completamente novo por ele impresso à ação da Igreja, e portanto inevitavelmente também à sua identidade. Com o Papa Francisco se passou de fato de um papado de perfil essencialmente doutrinário (segundo o qual o Papa é aquele que explica, ensina, corrige e assim governa) a um papado de perfil existencial e espiritual (o Papa é aquele que entende, compartilha, sofre e se alegra com, e assim governa), mas não é por nada claro se esta transformação radical seja apreciada e desejada pelos bispos e pelos cardeais. Além da retórica das declarações oficiais, quantos deles estão dispostos a seguir Francisco até o fundo, passando de uma Igreja in cathedra a uma Igreja “hospital de campo”, a deixar os privilégios do poder e a assumir “o mesmo odor das ovelhas”? Caso se tivesse que realizar hoje o Conclave, quantos cardeais eleitores escolheriam Bergoglio?...
Que haja uma dura oposição à renovação papal da parte da ala intransigente da Igreja católica, está sob os olhos de todos: dela fazem parte cardeais importantes, entre os quais o Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé Gerhard Müller, bispos, teólogos, responsáveis de movimentos eclesiais, opiniões como a do ateu devoto Giuliano Ferrara, o ensaísta Antonio Socci, o qual chegou a por em dúvida a legitimidade da eleição de Bergoglio. Trata-se de posições isoladas, ou da ponta de um imenso iceberg que constringirá a caravela papal a uma mutação de rota? Provavelmente após este Sínodo ter-se-á idéias mais claras sobre quanto pesam entre as hierarquias católicas os opositores do Papa Francisco.
Há, todavia, um aspecto ainda mais importante que está em jogo no Sínodo. Nele, de fato, não se trata somente de um único papado, mas do catolicismo enquanto tal, na sua capacidade de comunicar com proveito à consciência contemporânea segundo aquele processo de renovação iniciado pelo Papa João XXIII através do Vaticano II (1962-1965) e que infelizmente permaneceu não cumprido. O Vaticano II renovou a auto-compreensão da Igreja em âmbitos importantes como a liberdade de consciência, o ecumenismo, o diálogo inter-religioso, a liturgia, a moral social, e em geral a relação da Igreja com a história e a cultura. Não conseguiu, no entanto, estender tal renovação também ao âmbito da moral individual e familiar porque Paulo VI (que em 1963 entrou em lugar de João XXIII) subtraiu à sessão conciliar a possibilidade de debater sobre questões sexuais, avocando a si toda a matéria e publicando em 1968, a três anos do fechamento do Concílio, a famigerada encíclica Humanae Vitae. Com ela, tanto no conteúdo como no método, a Igreja retornou ao pré-concílio.
Não saiu uma Igreja com duas velocidades: perfeitamente em condições de envolver a melhor parte da consciência contemporânea quando se trata de questões sociais e econômicas, de todo destinada ao isolamento quando se trata de questões sexuais e bioéticas. A este propósito, em sua última entrevista ao cardeal Martini, afirmou: “Devemos perguntar-nos se o povo ainda escuta os conselhos da Igreja em matéria sexual: a Igreja ainda é, neste campo, uma autoridade de referência ou somente uma caricatura na mídia?” (Corriere della Sera, 1.de setembro de 2012), pergunta à qual Martini havia respondido com as duras críticas à Humanae vitae em seu livro Conversações noturnas em Jerusalém.
Os padres sinodais são chamados a dar-se conta do fato de que a moral oficial da Igreja católica em âmbito sexual e familiar é atualmente uma “caricatura”, e o é também para grande parte dos católicos praticantes (como o demonstrou a sondagem pré-Sínodo querida pelo Papa). Ainda se pode continuar a defendê-la por amor à tradição, mas se deve ter consciência que isso significa colocar-se fora do mundo e, portanto, tornar-se incapazes de exercer a ação fecundadora da qual o mundo tanto necessita. Tal estranheza ao mundo de fato não é reconduzível à posição profética de quem se põe fora do mundo para melhor entendê-lo e atuar sobre ele com mais eficaz misericórdia; coincide antes com o que veicula o sentido ordinário da expressão: estar fora do mundo = não entender nada da realidade. Quem hoje ainda sustenta o não aos sacramentos para os divorciados redesposados, o não à contracepção, o não às relações pré-matrimoniais, o não à bênção dos casais gay, está fora do mundo no sentido que não entende sua evolução. E com isso se priva da possibilidade da ação peculiar que o Evangelho requer de quem a ele adere, isto é, o amor.
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