22 Setembro 2014
Num restaurante em Roma, em fevereiro deste ano, estive sentado ao lado de um membro do Colégio Cardinalício no dia depois que o cardeal Walter Kasper fez um apelo veemente a companheiros deste clube exclusivo para que abrandassem a proibição da Igreja para com os católicos divorciados e recasados de receberem a Comunhão.
Kasper tinha sido escalado pelo Papa Francisco para falar aos cardeais em preparação ao Sínodo dos Bispos sobre a vida familiar, a acontecer entre os dias 5 e 19 de outubro próximo. Com certeza, Francisco sabia o que Kasper iria dizer, visto que em 1993 este cardeal fora um dos três bispos alemães que tentaram suavizar a mesma proibição, para logo em seguida serem chamados à atenção pelo Vaticano de João Paulo II.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada por Crux, 18-09-2014. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Perguntei ao cardeal o que ele pensava sobre a fala de Kasper. Com um pesar no rosto, pausou como se estivesse medindo as palavras a usar e então deu o seguinte veredicto: “Este cara”, disse ele, “é maluco”.
A opinião do cardeal era a de que a doutrina de Jesus sobre o divórcio – “O que Deus uniu o homem não deve separar” – era bastante clara na Bíblia, e que portanto Kasper estava, basicamente, cuspindo no vento.
A nossa conversa foi feita em off, mas nos últimos dias a reação contra o cardeal Kasper irrompeu no espaço público.
Cinco cardeais do alto escalão publicaram um livro criticando a opinião de Kasper de que os católicos que se divorciaram e casaram novamente sem anulação – ou seja, sem a declaração de um tribunal eclesiástico de que a sua primeira união era inválida – deveriam ter condições de receber a Comunhão e os demais sacramentos da Igreja sob certas circunstâncias.
A defesa conta com o cardeal George Pell, australiano que atua como czar financeiro do Papa Francisco, e cujo peso neste papado recentemente se confirmou quando conseguiu que seu “protégé” fosse nomeado arcebispo de Sydney; com o cardeal Gerhard Müller, alemão que serve como czar doutrinal do papa; e com o cardeal americano Raymond Burke, herói para os católicos tradicionais em geral.
Por outro lado, Kasper também não carece de aliados. O cardeal hondurenho Oscar Rodriguez Maradiaga, coordenador do Conselho de Cardeais assessores do papa, é um deles, e o cardeal italiano Gianfranco Ravasi, presidente do Pontifício Conselho para a Cultura, é outro.
Ravasi recentemente fez uso de uma coletiva de imprensa no Vaticano para dizer que até mesmo as primeiras comunidades cristãs reconheciam exceções à proibição relativa ao divórcio.
Embora o fogo cruzado entre os príncipes da Igreja aumente a atenção voltada ao Sínodo dos Bispos a acontecer no próximo mês, três observações sugerem uma dose de cautela sobre o quão animados os analistas devem ficar:
1) Esta não é a primeira vez que os cardeais discordam em público, apesar da preferência do Vaticano de que este tipo de situação seja mantido a portas fechadas.
Já em 2001, o próprio Kasper envolveu-se numa troca pública de opiniões junto a seu companheiro alemão, o cardeal Joseph Ratzinger, que depois se tornaria o Papa Bento XVI, sobre o que vem primeiro: a Igreja local ou a Igreja universal. Em grande parte, o debate se deu nas páginas da revista jesuíta America.
A ênfase de Kasper na Igreja local foi compreendida como um argumento para a descentralização, enquanto que a defesa da Igreja universal de Ratzinger foi percebida como motivo para um papado forte.
Em 2010, o cardeal Christoph Schönborn, de Viena, chamou a atenção do cardeal italiano Angelo Sodano, ex-secretário de Estado do Vaticano, por bloquear uma investigação sobre abusos sexuais contra o fundador dos legionários de Cristo, o falecido padre mexicano Marcial Maciel Degollado.
Nesse caso, Schönborn teve de ir a Roma para ter uma sessão de reconciliação junto ao cardeal Sodano, embora o Vaticano tivesse dito em nota, na época, que Schönborn não errara em nada.
Nos Estados Unidos, quando o cardeal Joseph Bernardin, de Chicago, apelou para um denominador comum entre os católicos liberais e conservadores no começo da década de 1990, o cardeal Bernard Law, de Boston, replicou que já havia um denominador comum na Igreja sob a forma do catecismo, o compêndio oficial da doutrina católica.
Mais tarde, Law iria renunciar em desgraça em meio aos escândalos de abusos sexuais em Boston, mas isso não fez com que inúmeros bispos parassem de concordar com a sua crítica sobre a iniciativa de Bernardin.
Poder-se-ia remontar mais ainda no tempo em busca de outros exemplos, mas a questão é que os cardeais pelejam em público o tempo todo.
É preciso lembrar que os cardeais são as segundas autoridades mais importantes no catolicismo depois do papa, e como pessoas VIP em qualquer outra burocracia, foram promovidos confiando em seus juízos e acreditando que, na maior parte do tempo, estão certos. Coloquemos algumas destas personalidades numa mesma sala, e teremos desentendimentos inevitáveis.
2) Não haverá um confronto dramático nos debates do Sínodo quando os protagonistas se depararem uns com os outros.
Sim, Kasper estará no Sínodo e Rodriguez Maradiaga também, em nome dos bispos de Honduras. Sim, Pell igualmente articipará em virtude de seu departamento no Vaticano, assim como Burke e Müller.
No entanto, cada um irá participar a seu modo, sem uma sessão de perguntas e respostas no estilo Câmara dos Deputados; e as regras informais de relação entre os prelados católicos dita que não se deve eviscerar uns aos outros em público. Eles vão se abraçar, elogiar uns aos outros pela sabedoria que têm e pelo serviço que realizam, de forma a parecer serem os melhores amigos.
A troca será gentil e indireta, o que não vai fazer com que o desacordo seja menos real, mas vai exigir um esforço dos que estão de fora para compreenderem.
3) É importante lembrar que, por mais divertido que seja ver as autoridades católicas trocando farpas, em certa medida não são nada, pois um Sínodo dos Bispos é apenas um organismo consultivo do papa, quem continua sendo o tomador supremo de decisões.
Francamente, os cardeais podem pensar o que quiserem sobre quem deveria ou não ter condições de receber a Comunhão. Sob o direito canônico, no entanto, há apenas uma pessoa com a autoridade para modificar tais regras, e ela é o papa.
O Cânon 331 do Código de Direito Canônico, o conjunto de leis da Igreja Católica, afirma que o papa tem o “poder ordinário, supremo, pleno, imediato e universal”, que basicamente quer dizer que todas as decisões passam por sua mesa.
Como consequência, a única questão significativa que se levanta em direção ao Sínodo dos Bispos no próximo mês não é o que Walter Kasper ou Gerhard Müller pensam, ainda que possa parecer divertido ver estes dois trocando acusações.
A questão é o que o Papa Francisco pensa, e supondo que ele se pronuncie no Sínodo em algum momento, tal como outros papas fizeram, talvez tenhamos uma pista sobre o caminho que ele está inclinado a tomar. Francisco já convocou um outro Sínodo mais amplo a acontecer em 2015.
Portanto, não se espera nenhuma decisão imediata, mas poderemos ter um indicativo do que ele vem imaginando.
Se uma fala do papa acontecer, ela será notícia. Por enquanto, ver cardeais pelejando em público? É sempre divertido assistir, mas fundamentalmente… já vi este filme.
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Cardeais pelejando em público? Já vi este filme - Instituto Humanitas Unisinos - IHU