19 Setembro 2014
O auxiliar de limpeza Anderson Baptista, pai de três filhos com idades entre 6 e 15 anos, não quer mais fazer parte de uma empresa terceirizada, condição de 12 milhões de trabalhadores formais no Brasil, o equivalente a 25% do total. Uma decisão tomada há três anos, quando foi contratado diretamente pela administração de um edifício comercial em São Paulo.
A reportagem foi publicada na edição 817 da revita CartaCapital, com o título "Direitos Ameaçados".
Antes, passou por três empresas terceirizadas, além de frigoríficos e construtoras. “Prefiro fazer bico a voltar para esse mercado”, afirma. Hoje ganha 1.080 reais (270 reais acima do salário mínimo), mais 400 reais em benefícios e horas extras por plantões aos sábados. Em 2007, exerceu a mesma função em uma terceirizada. Recebia um salário mínimo e um vale-cesta de 90 reais, sem possibilidade de fazer horas extras. Sempre havia serviço além do contratado e o pagamento às vezes atrasava. “Não vale a pena. Além de pagarem mal, demitem a todo momento.” O novo emprego permitiu-lhe pagar um curso de cabeleireiro para a esposa, dona de casa e disposta a montar um negócio próprio. Ele pensa em concluir os estudos, interrompidos no ensino médio, e estudar inglês e alemão.
A mudança profunda nas suas condições de vida foi possibilitada pelo seu ingresso na parte que melhor representa o mundo criado pelo presidente Getúlio Vargas, há mais de 70 anos. Em 1º de maio de 1943, no Rio de Janeiro, em um Estádio de São Januário repleto de trabalhadores, Vargas assinou o Decreto-Lei nº 5452, de criação da Consolidação das Leis do Trabalho, sistematização e unificação da legislação trabalhista a partir de 1930. Um “inegável avanço em relação ao período republicano anterior, no qual as relações entre capital e trabalho eram encaradas como uma questão de polícia e os empregados ficavam à mercê das arbitrariedades dos patrões, sem praticamente nenhuma legislação que lhes assegurasse os direitos básicos”, escreve o historiador Lira Neto na biografia Getúlio.
A CLT regulamentou o salário mínimo, as férias anuais, o descanso semanal e outros benefícios à classe trabalhadora. O instrumento contribuiu para a sustentação política de Vargas e constituiu o seu “legado simbólico mais eloquente”, até hoje de pé. A normatização permitiu regulamentar as relações entre o capital e o trabalho em um período de expansão da indústria e aumento do número de operários e comerciários a partir da criação das estatais Companhia Siderúrgica Nacional e Vale do Rio Doce, grandes fornecedoras do setor manufatureiro, às quais se somaria a Petrobras, instituída em 1951.
Hoje há 48,9 milhões de trabalhadores formais no País, segundo a Relação Anual de Informações Sociais do Ministério do Trabalho em 2013. A parcela de 25% de terceirizados recebe salários inferiores àqueles dos contratados diretos para as mesmas funções, tem menos benefícios, está mais sujeita a acidentes, à violação de direitos trabalhistas e ao trabalho em condições análogas às da escravidão. A forte pressão empresarial para ampliar o uso de terceirizados põe tudo em risco. Para o ministro do Tribunal Superior do Trabalho (TST), Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, “franquear a terceirização é desconstruir todo o sistema trabalhista”, parte integrante da democracia brasileira.
Segundo levantamento da CUT e do Dieese, em 2010 os terceirizados recebiam em média 27% a menos do que os contratados diretos para exercer funções semelhantes, tinham uma jornada semanal 7% maior e permaneciam menos tempo no mesmo trabalho (em média 2,6 anos, ante 5,8 anos para os trabalhadores diretos). Em sondagem da CNI, 60% das empresas dizem oferecer aos terceirizados e aos contratados o mesmo tratamento.
Dos 40 maiores resgates de trabalhadores em condições análogas à escravidão nos últimos quatro anos, 36 envolviam empresas terceirizadas, segundo levantamento do cientista social Vitor Filgueiras, do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Unicamp. Doenças e mortes entre terceirizados são mais frequentes. Na construção de edifícios, com mortalidade duas vezes superior à média em acidentes de trabalho, 55,5% dos óbitos foram de terceirizados em 2013. A causa não seria a terceirização, mas falhas na fiscalização, dizem os empresários. “A terceirização benfeita evitará a precarização”, diz Romeu Camargo, assessor jurídico da Federação do Comércio de São Paulo. Cerca de 75% das empresas dizem fiscalizar o cumprimento do pagamento de encargos trabalhistas e das normas de saúde e de segurança das terceirizadas.
Desde 1993, a Súmula 331 do Tribunal Superior do Trabalho restringe o trabalho temporário aos serviços de vigilância e limpeza e a funções não relacionadas às principais atividades das empresas. Descumprir a lei custa indenizações milionárias às companhias, que reclamam de insegurança jurídica e de falta de clareza na definição dos conceitos de atividades-fim e meio. Há 17 mil processos contra terceirizadas em andamento na Justiça do Trabalho. “Existe uma cultura do ‘garantismo’ legal, mas precisamos privilegiar a negociação. Temos uma legislação fomentadora de conflitos”, diz Alexandre Furlan, vice-presidente da Confederação Nacional das Indústrias.
A articulação de entidades empresariais para derrubar as limitações à contratação de terceirizados ganhou força nos anos 1990, com o avanço do neoliberalismo e das propostas para reduzir custos e desregulamentar o trabalho. O Enunciado 256 do TST, vigente até 1993, proibia a terceirização no País e a Súmula 331 foi considerada um retrocesso pelo movimento sindical. Diante da ofensiva do setor empresarial, hoje os sindicatos lutam para manter a Súmula e garantir um limite.
Mais de dois terços das indústrias contrataram serviços terceirizados nos últimos três anos, segundo sondagem da Confederação Nacional da Indústria. Montagem e manutenção de equipamentos, logística e segurança são os serviços mais terceirizados e 84% das empresas pretendem manter ou aumentar o seu uso nos próximos anos.
A batalha para avançar na liberação sofreu revezes no TST e no Congresso, onde as entidades empresariais tentam aprovar o Projeto de Lei nº 4330, do deputado peemedebista e empresário Sandro Mabel, de acolhimento da terceirização em todas as atividades dos setores privado e público. A sua votação foi suspensa no fim do ano passado por pressão do movimento sindical e do TST. A proposta provocará uma “gravíssima lesão” de direitos contra os trabalhadores, argumentaram 19 dos 26 ministros da Corte em documento enviado ao autor do projeto. Mabel desconsiderou a ponderação dos ministros e prometeu publicamente ao empresariado colocar o projeto em votação logo após as eleições.
A terceirização, segundo a CNI, faz parte de uma tendência mundial e é essencial para o ganho de produtividade e competitividade. “Nos anos 90, os projetos neoliberais no Brasil falavam em ampliar as possibilidades de terceirização para gerar empregos. A ampliação não ocorreu, mas o emprego aumentou. Agora adotam uma nova justificativa, a do aumento da produtividade. É uma nova mentira”, rebate Magda Biavaschi, pesquisadora do Cesit e integrante do Fórum Nacional em Defesa dos Trabalhadores Ameaçados pela Terceirização. Na América do Sul, diferentemente do Brasil, a maioria dos países regulamentou a terceirização em lei e estabeleceu a responsabilidade solidária das empresas contratantes. Aqui, a responsabilidade é subsidiária e, portanto, recai sobre a companhia contratada, quando há condenação.
Um fato novo aumentou a esperança dos empresários na liberação da terceirização. Pela primeira vez, o assunto está nas mãos do Supremo Tribunal Federal, encarregado de apreciar o recurso da fabricante de celulose Cenibra, de Minas Gerais, contra a decisão da Justiça do Trabalho de condená-la a pagar 2 milhões de reais por terceirização ilegal. A condenação baseou-se em uma denúncia do Ministério Público do Trabalho e do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Extrativas de Guanhães, de terceirização nas atividades de florestamento e o reflorestamento, ligadas à operação principal da empresa.
O ministro Luiz Fux, relator, no início rejeitou o recurso da Cenibra e a decisão foi mantida em agravo regimental. Em seguida, após apreciar embargos declaratórios, modificou radicalmente o seu entendimento e acolheu o recurso empresarial. O assunto seguiu para exame da existência de repercussão geral (indispensável ao julgamento dos recursos extraordinários), situação em que a decisão a ser tomada pela Corte deve ser aplicada a todos os casos em tramitação na Justiça. A maioria dos ministros considerou existente a repercussão geral, com votos contrários de Rosa Weber, Teori Zavascki e Ricardo Lewandowski. O processo aguarda parecer da Procuradoria-Geral da República e mobiliza, de um lado, inúmeras entidades de classe e sindicais preocupadas com os efeitos de uma possível aceitação definitiva do recurso e, na posição oposta, entidades empresariais, como a CNI, interessadas na ampliação das hipóteses de terceirização para reduzir os custos salariais.
Em reforço à ofensiva empresarial contra os direitos trabalhistas, foi proposta a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 324. Nela, a Associação Brasileira do Agronegócio pede a suspensão do andamento de qualquer processo em curso na Justiça do Trabalho em que se discuta a legalidade da terceirização empreendida por empresário. Caberá ao ministro Luís Roberto Barroso a relatoria da ação, contestada pela Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho e à espera de um parecer da Procuradoria-Geral da República.
“O que está em debate é a destruição ou a preservação de tudo o que construímos nos últimos cem anos de lutas trabalhistas no Brasil”, diz a secretária da CUT Maria das Graças Costa. Entidades sindicais, organizações de juristas do trabalho e instituições acadêmicas solicitaram uma audiência pública que deve ser agendada nas próximas semanas.
Marina Silva foi a única entre os candidatos à Presidência a defender de modo explícito a posição empresarial. “A terceirização de atividades leva à maior especialização produtiva, à maior divisão do trabalho e, consequentemente, à maior produtividade das empresas... Há no Brasil um viés contra a terceirização”, lê-se em seu programa de governo. Em 1998, o então presidente Fernando Henrique Cardoso, do partido do candidato Aécio Neves, enviou ao Congresso um projeto de lei para acabar com as restrições ao trabalho terceirizado, engavetado em 2003, na gestão de Luiz Inácio Lula da Silva. A candidata à reeleição, Dilma Rousseff, em encontros recentes com sindicatos, manifestou-se contrária à retirada de qualquer conquista trabalhista, mas a CUT cobra uma formalização do compromisso.
Para a pesquisadora Magda Biavaschi, a proposta de Marina Silva é radical e prevê a retirada da responsabilidade da Justiça do Trabalho para arbitrar sobre as normas das relações entre empregadores e empregados. Marina defende a fiscalização do cumprimento das normas pelos sindicatos, “mas com a terceirização sem limites, os patrões escolherão com quais sindicatos vão negociar”.
No setor público, o maior problema está relacionado à inadimplência das terceirizadas com os trabalhadores ao fim do contrato. A exigência da licitação pelo menor preço leva à contratação de empresas frágeis financeiramente. De acordo com o Sindicato dos Vigilantes da Bahia, em um caso há mais de 5 mil trabalhadores que reclamam uma dívida do governo do estado, de 15 mil reais por funcionário. Para coibir os calotes, o Distrito Federal, a Bahia e o governo federal assinaram medidas para obrigar a retenção dos valores relacionados ao pagamento dos direitos trabalhistas em uma conta que a terceirizada não pode movimentar sem a autorização do contratante.
Amado e combatido há mais de meio século, o legado getulista está nas mãos dos ministros do STF.
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Após a eleição, um ataque aos direitos trabalhistas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU