Por: Cesar Sanson | 02 Setembro 2014
Débora fala rápido e é do tipo que consegue transmitir aos montes suas emoções por telefone. Pensa para responder, mas pondera rápido. Eu pergunto: você voltaria para a África no atual surto de ebola? Ela responde, sem hesitar: sem sombra de dúvidas.
Trabalhando para a organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) desde 2008, Débora Noal, 33 anos, é psicóloga e viajou para mais de 40 países. Costuma dizer que seu escritório é o mundo. Cobrindo conflitos armados, guerras, desnutrição, terremotos e epidemias, já viu de tudo, mas não tem dúvidas de que a missão ebola foi a mais diferente que teve na vida. Ela define a morte causada pelo vírus como a pior e mais indigna de todas.
Débora viajou, a convite da MSF, para a República Democrática do Congo em 2012, durante uma epidemia de ebola. Neste surto, foram registrados mais de 60 casos e pelo menos metade das pessoas morreu. Pergunto a ela por quanto tempo ficou no país e ela conta que por quatro semanas ou “um ano, se for contar o que eu senti”.
Com visão sensível e experiente, Débora relembrou sua missão numa comunidade daquele país pobre, em que algumas pessoas – acreditem! – nunca tinham visto um “branco” na vida. Sem TV, jornal, internet, celular, dezenas de pessoas tiveram de acreditar em Débora - e na equipe que trabalhava com ela naquela situação (outros 29 agentes nativos ou não), e seguir enfrentando a doença “que ninguém podia ver”, mas que existia. E matava rápido.
Cheia de lembranças, a psicóloga conta como era seu trabalho com tantas roupas (cada agente usa 18 itens de proteção) em uma cidade onde fazia mais de 40 graus, sem poder tocar nas pessoas – e nem nela mesma, praticamente. Durante a conversa, ela relembra o caso de uma paciente grávida e com malária, que ainda a emociona, dois anos depois. Por fim, explica como é o processo de “descompressão”, como define, quando retorna de uma missão dessas – dolorida, porém grandiosa.
A reportagem e entrevista é de Ana Lis Soares e publicada pelo portal Terra, 01-09-2014.
Eis a entrevista.
Como foi sua experiência na África durante o surto de ebola em 2012? Como foi chamada? Quais eram suas expectativas? E seus medos, tinha muitos?
Eu fui convidada logo no início da epidemia no Congo, para trabalhar numa comunidade de uma região próxima de Isiro, em Haut-Uele, bem perto da fronteira do Sudão do Sul. É uma região bastante isolada, para você ter uma ideia, muitos moradores de cidades vizinhas nem conheciam pessoas brancas. Quando surgiu o convite pela organização Médico Sem Fronteiras, por incrível que pareça, fiquei muito feliz. Pois eu sabia que as pessoas que trabalham em missões de ebola têm a oportunidade de trabalhar com algo diferente de tudo. Eu tinha curiosidade de fazer um trabalho sem poder tocar as pessoas, nunca fico mais de dois metros afastada de meus pacientes. Havia trabalhado próximo dali, em 2009, em outra missão, então fiquei curiosa de como eu produziria cuidado em um lugar onde as pessoas são tão sensíveis e teriam de lidar com tudo isso. Sem contato nenhum.
Você ficou quanto tempo por lá?
Fiquei quatro semanas, se você contar no calendário. Mas, se contar o que senti, acho que é como se fosse mais de um ano.
E como foi essa experiência?
O clima de lá é muito parecido com o da Amazônia, do Brasil, assim como é na maior parte do Congo: é muito calor e úmido. E nós usamos várias camadas de roupa: primeiro, a sua roupa, uma calça jeans e camiseta, depois colocamos vestimentas parecidas com aquelas de centros cirúrgicos, e, por cima, usamos mais uma roupa de plástico. Além disso, você cobre sua cabeça, seus pés... Usamos duas luvas sobre a mão. No total, usamos dezoito itens que cobrimos nosso corpo. Então é difícil você falar, escutar... O calor é insuportável. Tudo isso numa temperatura de 40, 50 graus Celsius.
Você não tinha medo de se infectar?
Quando você está lá, se foca tanto naquela situação que nem percebe a tensão, o medo. Quando voltei e consegui “descomprimir” – é assim que eu explico o processo -, foi que me dei conta do tamanho do receio sentido. Você tem uma dor que é sua, mas também a dor do outro, que vem com você. É humana a morte, mas aquele tipo de morte não é humano.
Em que consiste o trabalho de um psicólogo humanitário num surto de ebola? O que fazia lá?
Um psicólogo humanitário é um psicólogo “Bombril”, porque tem que estar aberto, faz de tudo. Então, temos de ter condições de entender quais as condições em que vamos trabalhar, quais os tipos de crenças, premissas, religiões e mitos que as pessoas cultuam naquele lugar. Apesar de todo nosso cuidado, muitas vezes somos ameaçados, violentados, apedrejados, atacados. O objetivo é reduzir o impacto de um surto, um impacto psicológico, traçando estratégias psicossociais para as pessoas afetadas direta ou indiretamente contaminadas, em suspeita e seus parentes. Então, a ideia é diminuir o impacto do estresse, do medo, do estigma. Eu costumo dizer que o meu trabalho lá era isolar o vírus, sem isolar a vida. E é muito difícil, já que o vírus está dentro de um corpo humano. Precisava ajudar para que a pessoa, mesmo que na beira da morte, tivesse uma partida digna.
Quando chegou lá, qual foi seu primeiro impacto, suas primeiras impressões?
A minha primeira impressão foi de profunda tristeza. Porque você vê pessoas cuidadosas, ligadas ao doente, que serão as próximas vítimas prováveis. E era difícil ver aquelas pessoas esvaindo vida, sangrando por todos os lados, sem dignidade. Isso pra mim foi muito triste: a morte do ebola é muito solitária. São pessoas coletivas que, de repente, se encontram com uma pessoa “verde” (comparando com o impacto de ver uma pessoa branca pela primeira vez) que diz “olha, você não vai poder mais tocar seu pai, sua mãe, seu filho... Você vai para o centro de tratamento e você não vai os reconhecer direito, porque estarão com roupas e você só verá os olhos”. E eles sabiam que ninguém mais os beijaria, tocaria. Que não sentiriam calor humano... Já imaginou o que é isso todos os dias e ainda estando doente?
Como você trabalhava isso?
Eu tentei fazer com que as salas do centro do tratamento tivessem vida. Quando eu perguntava “o que você gostaria de ter aqui?”, eles respondiam: “uma visita”. Algumas mães que estavam no centro diziam que desejavam ver seus bebês. Então, fotografava os filhos, a família e colava as imagens do lado das camas. Era como se aquelas pessoas estivessem ali com eles. Íamos à comunidade, explicávamos que podiam fazer visitas... Mas não iam. Então, comecei a desenvolver alguns métodos de aproximação. Escrevíamos cartas, filmávamos a família contando como estavam, o que sentiam. Projetávamos os vídeos fora do quarto - ou dentro do quarto para aqueles doentes que não tinham forças de levantar. O efeito era impressionante: é como se vissem uma miragem! Eles conversavam com a projeção, como se as pessoas tivessem lá. Isso causou impacto positivo até na resistência delas, era como se aquelas conversas as dessem força, imunidade.
Como é o psicológico de alguém que está com ebola? E dos familiares? O que eles falavam? Havia esperança?
Em se tratando de ser humano, existe de tudo, há muitas variações. Há pessoas que sofrem um medo incontrolável... Era um medo do estigma. Aliás, o estigma é uma forma de morte, é a morte social. O estigma mata alguém ainda em vida. Mas a esperança existia, sim, e foi o que ajudou, provavelmente, boa parte das pessoas que sobreviveram, pois tinham uma esperança muito forte, tinham objetivos, de fazer algo diferente.
Você acha que cumpriu sua missão?
Eu saí com sentimentos ambíguos: de missão cumprida, pois fiz o meu melhor. Acho que eram 24 horas de trabalho, de dedicação. Mesmo durante a noite, às vezes eu acordava e pensava nas coisas que diziam... Pensava no que podia fazer diferente. Mas, ao mesmo tempo, acho que é uma missão difícil de cumprir, então também senti a tristeza por perder tanta gente.
Qual foi o maior desafio, para você, nesta viagem?
Acho que o mais difícil para mim foi a indignidade. Sempre trabalho com a morte presente, tanto a possibilidade da minha, como a dos outros. Mas acho que foi o tipo de morte mais indigna que presenciei.
Há algum paciente, acontecimento, que tenha te marcado?
Todos marcam e não é demagogia, falácia. De vez em quando, me vem um deles na cabeça. Porém, talvez, me tenha marcado muito uma mulher grávida chamada Mami. Ela tinha ebola e malária. Era tão magra que conseguíamos ver o bebê se mexer dentro da barriga. Era como se ele dissesse “me tirem daqui”. Foi impressionante ver a criança nascer viva. Foi o primeiro nascimento de um bebê vivo em uma epidemia de ebola. Ele continuou vivo por cinco dias, mesmo depois da morte da mãe.
Como é dormir em meio ao surto de ebola?
A gente não dorme numa epidemia de ebola. Eu acordava de noite, com a mão próxima da boca... Acordava assustada. Para você ter noção, o corpo está sempre em sobreaviso. Não podia tocar as partes do meu corpo que produzem fluidos. É muito agonizante: porque num calor de 40 graus, você sua muito. Então seu corpo está todo suado, pinga suor no seu olho e você não pode colocar a mão no olho. Então, parte da sua humanidade está interrompida ali. Mesmo tomando banho, desinfetando... É uma impotência para todo mundo, não poder ficar no piloto automático. Você fica o tempo todo se perguntando ‘será que eu realmente não me encostei em nada?’. Há sempre a dúvida.
Já está ‘descomprimida’ após dois anos?
Já estou bem mais descomprimida. Para mim, não é um processo fácil ver o que está acontecendo agora e não pensar no que fazer. Escrevo e telefono para as equipes. Eu tenho vontade de voltar.
Você voltaria à África no atual surto (que, por sinal, é o pior da história)?
Sem sombra de dúvidas. São poucas as pessoas que aceitam uma missão ebola. E é muito comum as pessoas repetirem as missões no MSF. Então, quem já foi uma vez será chamado outra vez, pois será menor o estresse. Você já conhece aquele processo e isso ajuda a equipe. O chamado sempre vem com pessoas que têm experiência grande e, principalmente, experiência naquele tipo de situação-limite.
Você tem experiência, já fez diversas missões pelo Médico Sem Fronteiras. Tem noção de quantos países?
Sim, tive muitas experiências antes. Mas nunca de ebola. Talvez umas quinze missões: guerras, conflitos armados, epidemias, desnutrição. Acho que já fui a mais de oito países. Mas, nós sempre temos de parar em alguns países, ficar por algumas razões. Então parei em alguns onde fico, mas não trabalho. Se contar com estes, acho que já fui para uns 40.
Os médicos, enfermeiros e voluntários. Como vocês se ajudavam?
Normalmente, num surto de ebola, não há diferenciação entre os nativos e os expatriados (trabalhadores internacionais). Todo mundo precisa trabalhar coordenadamente. Acho que nossa equipe era de 30 pessoas, sendo 15 nativos e 15 de expatriados.
Eles relatavam suas dificuldades?
Sim, em especial um deles me mostrou muita sensibilidade. Ele dizia que “num lugar que não existe remédio, o melhor é aprender a tratar o paciente, não como um médico, mas como um ser humano”. Foi uma pessoa que me ajudou muito. Quando um paciente estava falecendo e deveríamos falar com a família para se despedir, ele era uma pessoa que facilitava meu trabalho, porque explicava à família que a pessoa foi embora como vencedora, não como perdedora, como achavam. Eles acreditavam que essas pessoas doentes fossem fracas.
Há algum tipo de contato entre você e aquelas vítimas do ebola? Como você se lembra dessa experiência?
Felizmente, o surto não voltou naquela região. Por isso, com pacientes, não tive mais contato, mas a maioria da equipe já voltou para outras missões ebola.
Como viver em tanta instabilidade? E sua família, amigos... Como lida com isso? E se, de repente, você é chamada para cobrir este surto?
Para mim, certamente, é muito mais fácil do que para minha família, meus amigos. No surto de 2012, quase ninguém sabia sobre o ebola, não se falava sobre isso e não havia muita pressão. Já neste surto atual, como pessoas brancas pegaram ebola, a mídia se mobiliza mais e as pessoas sabem mais. Assim, quando recebo um e-mail de convite para ir para uma missão ebola, recebo milhões de ligações das pessoas pedindo “por favor, desta vez não”. É muito ruim. Acho que quem melhor me entende é meu marido. Aliás, desta vez, ele me pediu verbalmente, disse para eu não ir. Mas, passou alguns dias e voltou atrás, falou que entende: “você precisa, você pode ir”. Eu já fui chamada, mas não fui porque a gente precisa ficar de quarentena depois que retorna por três semanas (mais para a ‘descompressão’) e tenho de ir para outra viagem pessoal, que está marcada faz tempo. Mas quero voltar.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
"Ebola é a mais solitária das mortes", diz psicóloga da organização Médico Sem Fronteiras - Instituto Humanitas Unisinos - IHU