27 Agosto 2014
Oscar Pilagallo, jornalista e autor de "História da Imprensa Paulista" e "A Aventura do Dinheiro", em artigo publicado pelo jornal Valor, 26-08-2014, comenta a reedição, dez anos após a morte de Celso Furtado, o seu livro, num único volume, "Obra Autobiográfica".
Eis o artigo.
Reformar ou revolucionar? No início dos revolucionários anos 60, o reformista Celso Furtado (1920-2004) foi levado a refletir sobre a questão.
"É evidente que 'reformar' a escravidão é uma indecência", escreveu o economista em sua "Obra Autobiográfica". "Mas foi eficaz, pelos resultados que produziu, reformar as sociedades europeias que se industrializaram a partir da metade do século XIX."
Furtado tinha ciência dos limites de uma reforma que apenas melhorasse aspectos do capitalismo, mas temia o perigo da alternativa mais radical, a revolução. "Se o reformismo é de curto alcance, o que dizer dos riscos a que se expõe uma sociedade que se embrenha pela via revolucionária?", perguntou o autor, que tinha em mente a ameaça de a necessária ruptura institucional conduzir ao "desfiladeiro que desemboca na tirania".
Quem levou o intelectual a meditar sobre a bifurcação ideológica foi o filósofo francês Jean-Paul Sartre, que em fins de 1960 fez uma conferência no Recife, onde Furtado instalava a recém-criada Sudene (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste).
Como consequência da precariedade da organização do evento, que não providenciara intérprete, Furtado acabou se oferecendo para a função. Sem conhecer o tradutor, Sartre criticou a nova abordagem brasileira para a crise secular do Nordeste, dizendo que a iniciativa, por ignorar o essencial, era mais uma "plaisanterie" do que "verdadeira política".
Na saída, Furtado deu carona a Sartre. Dirigindo sua caminhonete a caminho de Boa Viagem, o superintendente da Sudene se apresentou ao existencialista como o responsável por aquilo que ele qualificara de "piada". Para lhe poupar o constrangimento, o economista disse saber que era modesto o alcance do que fazia, mas que, mesmo assim, enfrentava grandes dificuldades criadas por latifundiários.
A crítica de Sartre fora feita de uma perspectiva revolucionária. Como acabara de dizer à plateia pernambucana, só o marxismo dava conta dos problemas do mundo. Furtado, porém, notou especialmente a ressalva do francês, que "obtemperou que o marxismo havia deixado de lado o homem".
Após se despedir do filósofo, Furtado caminhou pela praia, matutando sobre suas palavras. "O pensamento de Sartre somente estaria completo se começássemos pelo fim de sua exposição", escreveu. "Em primeiro lugar está o homem, que não é apenas um produto das relações sociais e que aspira [...] a assumir sua criatividade. Essa premissa limita consideravelmente o alcance dos processos revolucionários."
O relato do encontro com Sarre - cujas circunstâncias fariam os dois rirem em Paris, anos mais tarde, quando Furtado lá esteve exilado - é exemplar do enfoque do livro de memórias de um dos economistas brasileiros mais importantes da segunda metade do século XX. Furtado começou a escrevê-lo a partir de notas sobre o debate em torno do subdesenvolvimento. A obra quase evoluiu para uma história das ideias, mas o "desvio ambicioso" foi corrigido a tempo, dando lugar a um testemunho pessoal, que "ganha relevância quando inserido no contexto histórico, em particular se o cronista é personagem do drama".
O livro se concentra nos anos 50 e 60, quando Furtado foi protagonista da cena política brasileira. Além de ter sido a força intelectual por trás da criação da Sudene, Furtado já escrevera um clássico da interpretação do país, "Formação Econômica do Brasil". Além disso, assessorou o presidente Juscelino Kubitschek, influenciando-o, com suas posições nacionalistas, a romper com o Fundo Monetário Internacional em 1959. Foi também o primeiro ministro do Planejamento de João Goulart, para quem elaborou o Plano Trienal, que teve papel importante na vitória do presidencialismo no plebiscito de 1963.
Agora reeditada, a "Obra Autobiográfica" ganha uma versão mais enxuta e fiel ao propósito original do autor. Com a eliminação dos contos da juventude, em que Furtado registra sua fugaz experiência em 1945, na Itália, como membro da FEB (Força Expedicionária Brasileira), e dos textos escritos para publicações da Unesco e do Banco Mundial, os três livros da edição dos anos 90 foram concentrados em um único volume.
A "Obra Autobiográfica" faz contraponto às memórias de Roberto Campos (1917-2001), "A Lanterna na Popa", lançado em 1994. Os dois economistas representaram polos ideológicos opostos. Enquanto Furtado se formou no estruturalismo da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina), Campos abraçou o liberalismo que vigorou a partir de 1964. De acordo com a clivagem da época, a primeira corrente defendia uma saída desenvolvimentista para o subcontinente, enquanto a segunda apostava na estabilidade monetária.
No início dos anos 50, os dois tiveram uma trajetória comum. Campos chegou a convidar o colega para trabalhar com ele na criação do BNDE (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico) e eles tiveram uma relação "harmoniosa", segundo Furtado. A proximidade durou pouco. Quando Campos foi afastado do comando do banco, passou uma temporada nos Estados Unidos, de onde voltou convertido ao liberalismo. Enquanto isso, Furtado se manteve firme no terreno cepalino.
Apesar de rezarem por cartilhas excludentes entre si, Furtado e Campos às vezes se encontravam do mesmo lado em debates polêmicos. Sobre o Plano Trienal de Furtado, por exemplo, que tentou ao mesmo tempo acelerar o crescimento e conter a inflação, Campos disse ter sido "bastante ortodoxo", apesar da "retórica antimonetarista de Celso". E concluiu: "Costumava eu dizer-lhe que nada mais parecido com um monetarista do que um estruturalista no poder". Com tiradas como essa, Furtado deve ter tido bons motivos para descrevê-lo como alguém que "sabia usar o picaresco com graça".
O golpe de 64 lhes inverteu as posições no cenário político. Incluído na primeira lista de cassados, o até então governista Furtado se deslocou para Brasília, onde, para passar o tempo, enquanto aguardava para sair do país rumo ao exílio, lia "A Peste", de Albert Camus. "Tirava os olhos do livro e via a cidade invadida por roedores enormes, a deslocar-se com grande rapidez, despejando no ar gases pestilentos." O ex-oposicionista Campos, por sua vez, bem relacionado com os novos governantes, assumia a pasta do Planejamento, que fora de Furtado.
Embora as memórias de Furtado se concentrem mais no homem público, a atividade intelectual também merece sua atenção. O autor comenta seus livros mais conhecidos. Sobre "Análise do Modelo Brasileiro", que despertou grande interesse no início dos anos 70, ele conta que resultou de uma viagem ao Brasil para checar in loco o que ouvia no exílio sobre os êxitos do "milagre econômico". Demonstrou que tal dinamismo "refletia a ação conjugada do Estado e das empresas transnacionais, e que a ação desses dois vetores se estava exercendo no sentido de concentrar a renda".
À explicação, que se tornaria clássica, ele acrescenta que a perda posterior do dinamismo não interrompeu o processo de concentração, impondo a conclusão de que "os verdadeiros objetivos do desenvolvimento não serão alcançados no Brasil na ausência de uma política social deliberada".
No aniversário de dez anos de sua morte, Celso Furtado continua atual.
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A economia política, histórica e brasileira de Celso Furtado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU