22 Agosto 2014
"Alguns chamam de “Levante de Guariba”, outros preferem mesmo “Greve de Guariba”, mas há mesmo aqueles – como o Deputado Federal Newton Lima – que a tratam como o “Massacre em Guariba”. Todas denominações tem sua pertinência", escreve Paulo Mancini, professor de biologia e ex-Coordenador do Meio Ambiente da Prefeitura Municipal de São Carlos (2001 – 2012), em artigo publicado pelo portal EcoDebate, 21-08-2014.
Eis o artigo.
Só mesmo com a escravidão seriam comparáveis as condições de trabalho na colheita da safra de cana no Brasil e especialmente no Estado de São Paulo, que há muitas décadas lidera a produção de cana de açúcar no país. A grande maioria dos trabalhadores eram migrantes vindos do nordeste e de regiões mais pobres de Minas Gerais como o Vale do Jequitinhonha. Eram arregimentados por intermediários de fazendeiros e usineiros da região, chamados de ‘Gatos’, que contratavam e transportavam, muitas vezes ainda em caminhões, os migrantes que eram instalados em alojamentos improvisados. Alguns alojamentos eram mesmo antigos estábulos toscamente arrumados para abrigar os trabalhadores (e as trabalhadoras) pelos meses da colheita da safra da cana.
‘Contratados’ não é talvez a palavra correta. Não tinham carteira de trabalho assinada. O trabalho era temporário e naquele tempo (até 1988 com a promulgação da nova Constituição) eram poucos ainda os direitos conquistados pelo trabalhador rural brasileiro. Os produtos para alimentação, higiene, roupas eram fornecidos por armazéns ou supermercados que normalmente faziam parcerias com os ‘Gatos’. Muitas vezes quando algum trabalhador queria abandonar o serviço no ‘eito’, quando ia acertar as contas com o ‘patrão’, estava devendo, pois as ‘ordinhas’ (ordens, ou autorizações para retirada de mercadorias fornecidas pelo contratante) superavam o valor que o trabalhador ou trabalhadora tinha a receber por seu serviço. Isto é, ainda estava devendo para o ‘Gato’ e tinha que trabalhar mais para pagar sua ‘dívida’. Segundo pesquisadores da Unesp (Universidade Estadual Paulista) de Araraquara e Jaboticabal e da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos), os preços cobrados pelos produtos fornecidos aos trabalhadores rurais, eram, frequentemente, majorados em até 30%.
Os trabalhadores rurais não recebiam equipamentos de segurança de trabalho, nem roupas apropriadas, nem alimentação. O termo ‘bóia-fria’ foi cunhado porque levavam em pequenas marmitas a comida preparada no dia anterior ou na madrugada e a comiam no próprio ‘eito’, em pequeno intervalo da colheita.
Convertida em toneladas de cana, a metragem da área mínima (cinco fileiras ou 10 ruas) que eram obrigados a coletar (cortar e lançar para amontoar) diariamente (o chamado ‘eito’), produzia de 06 a 12 toneladas de cana.
As cinzas da palha da cana, queimada para aumentar a produtividade da colheita – a colheita da cana crua (com a palhada) rendia no máximo 04 toneladas diárias – exigiam que parte do rosto ficasse coberto como forma de minimizar os problemas respiratórios por ela provocados. Os trabalhadores do campo e os moradores das cidades próximas eram obrigados a conviver com uma enorme poluição atmosférica causada pelas queimadas, que como atestaram vários estudos feitos por pesquisadores da USP de Ribeirão Preto, agravavam enormemente as doenças respiratórias em moradores da região.
Num período de duas décadas, vinte e cinco trabalhadores rurais que atuavam no corte de cana tiveram mortes atribuídas por exaustão no trabalho. Contudo, por motivos variados (sempre relacionados à negligência com que a sociedade tratava a população rural, especialmente o migrante nordestino), apenas uma delas teve as consequências trabalhistas merecidas, com os herdeiros da vítima recebendo os direitos trabalhistas devidos.
Não havia fiscalização ambiental, embora o Código Florestal vigente (o de 1965, que foi deflorado pelo Congresso Nacional em 2012), previsse a conservação de 30 metros de cada margem de riso e córregos como área de preservação permanente, a cana muitas vezes chegava até a margens dos rios.
Naquela época a vinhaça, ou vinhoto, efluentes decorrente da produção do açúcar ou do álcool ainda eram lançados diretamente – para desgraça de nossos peixes – nos rios. Agora são despejados no solo para recuperação de sua fertilidade, mas o mau-cheiro resultante dessa atividade torna muitas vezes insuportável viajar pelas estradas do interior paulista.
A exploração do trabalho dos migrantes nordestinos (mas também mineiros e muitos paranaenses) e a exploração (e conseqüente degradação) dos recursos naturais, trouxe e traz muita riqueza para a região central do Estado de São Paulo, mas riqueza que contribuiu para enriquecer os que já eram ricos, e manteve pobres a natureza e o trabalhador. Concentração de renda e de terras é o que revelam as declarações de renda e a situação fundiária na região.
A Greve de Guariba
No segunda metade da década de 70 do século passado, membros da Igreja Católica da CPT – Comissão Pastoral da Terra – do Estado de São Paulo, sensíveis à situação dos trabalhadores do corte da cana, começaram a procurar estes migrantes em seus alojamentos e na sua caminhada para o trabalho, para com eles celebrar o evangelho e neles reconhecer a dignidade humana que era negada no seu trabalho. Alguns desses clérigos como o Padre Bragheto, que passou por várias cidades da região além de Guariba, sofreram muitas ameaças de morte na região e por isso, foram transferidos para outras paragens.
Padres da Congregação dos Missionários de São Carlos Borromeu e das Irmãs Missionárias de São Carlos Borromeu, também conhecidos como scalabrinianos (o fundador da ordem foi o então bispo – agora beato italiano – Dom João Batista Scalabrini, de Piacenza), que têm como missão o atendimento pastoral aos migrantes (o lema da congregação é: “Eu era estrangeiro e me acolheste” – MT.34,25,b), vieram então para a região no inicio da década de 80 do século XX e no ano de 1984, pouco antes de ser deflagrada a famosa greve dos canavieiros de Guariba, foi fundada na mesma cidade, a Pastoral do Migrante, para propiciar atendimento apostólico e social à população de migrantes da região.
Alguns chamam de “Levante de Guariba”, outros preferem mesmo “Greve de Guariba”, mas há mesmo aqueles – como o Deputado Federal Newton Lima – que a tratam como o “Massacre em Guariba”. Todas denominações tem sua pertinência.
Foi uma greve cujo estopim foi a determinação dos usineiros de que os cortadores de cana deviam derrubar não mais cinco (05) ruas de cana, como era historicamente, mas sete (07) ruas, sem significativo aumento de ganho para o canavieiros, para otimizar a operação de carregamento e transporte da cana. Já sufocados pelas péssimas condições de trabalho acima referidas, as primeiras a se rebelarem e resolverem paralisar o corte da cana e saírem em protesto foram as mulheres, que além do trabalho estafante no campo, tinham que cuidar da casa e dos filhos.
Quando a greve estourou não havia sindicatos, políticos ou outras lideranças na sua organização. Por isso, na época, foi por muitos chamada de espontânea. Mas Louis Pasteur no século XIX já ensinou que não existe ‘geração espontânea’. As condições degradantes do trabalho e a tomada de consciência de seus direitos, foram as causas que levaram aquelas trabalhadoras e aqueles trabalhadores, então conhecidos como bóias-frias, vindos do interior da Bahia, Piauí, Paraíba, Pernambuco, Maranhão e Minas Gerais, a paralisarem seu duro trabalho, para mostrarem – ainda durante a Ditadura Militar, em seu último ano – que eram gente e como tal queriam ser tratados: queriam a volta ao regime de apenas cinco ruas de cana cortada; registro em carteira de trabalho; roupas adequadas e equipamentos de segurança de trabalho; alimentação e moradia decente enquanto estivessem em trabalho temporário.
Uma greve de trabalhadores no interior do Estado de São Paulo, uma das regiões mais conservadoras do País, tomou de surpresa toda a sociedade especialmente a classe patronal e a classe política dirigente.
Os usineiros da região reivindicaram reforço policial ao então Governador do Estado de São Paulo, Franco Montoro. Se ainda hoje nossa Polícia Militar não sabe exatamente como lidar com manifestações sociais, imagine à época. O inicio da repressão policial revoltou ainda mais os trabalhadores que reagiram com algum excesso: o supermercado que fornecia mercadoria aos bóias-frias, por ordem dos ‘Gatos’ foi saqueado. E aí o pau comeu!!! Trabalhadores rurais foram perseguidos apanhados e surrados dentro de suas próprias casas, no interior de estabelecimentos comerciais. Vários foram atingidos por tiros.
Mas houve – confirmada – apenas uma morte. Por uma bala perdida, um senhor – Amaral Vaz de Melone – aposentado, que foi atingido fatalmente e amparado por Vanderlice, de 23 anos, à época cortadora de cana. Esta fatalidade, segundo ela mesma, motivou-a a estudar enfermagem e dedicar-se à missão de enfermeira hospitalar na cidade de Guariba. Algumas pessoas da cidade de Guariba acreditam que houveram mais mortes que não foram denunciadas.
Mas, e a apuração das responsabilidades por este assassinato e das inúmeras pessoas baleadas?
A resposta dada pelos que acompanharam o desenrolar dos acontecimentos é estarrecedora!!! Nem um inquérito policial foi aberto!!! Morreu de bala perdida. Ninguém sabe de onde veio o tiro. Os canavieiros também foram acusados. Mas todas cartuchos achados eram da Polícia Militar. Nunca ninguém presenciou os bóias-frias, com armas, que não fossem suas próprias ferramentas de trabalho.
A Polícia Militar também teve uma baixa: um cão, pastor-alemão, que quando atiçado para cima de um trabalhador teve seu pescoço cortado por uma foice.
Mas a paralisação, a revolta e o massacre, não foram em vão. Apenas dois dias após a repressão policial, foi firmado no Sindicato Rural de Jaboticabal o famoso Acordo de Guariba, no qual parte significativa dos usineiros da região atendiam as seguintes reivindicações dos trabalhadores: transporte seguro e gratuito; fornecimento de ferramentas (foice e lima) e equipamentos de proteção individual (caneleiras, luvas); carteira assinada; décimo-terceiro salário; pagamento por dias parados por imprevistos (chuvas, falta de transporte, etc…) e fiscalização do pagamento. Todas elas conquistas já garantidas aos trabalhadores urbanos há cerca de 50 anos pela CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas).
Em breve em todos os rincões brasileiros nossos trabalhadores rurais citavam o Acordo de Guariba reivindicavam para si aqueles direitos. Na região, posteriormente, novas greves ocorreram no campo, como a de Leme em 1986, onde pelo menos dois trabalhadores morreram vítimas da repressão policial.
Os Desafios Atuais para o Trabalhador Rural e para a Pastoral do Migrante
Na época, décadas de 70, 80 e 90, só em Guariba, cerca de 10.000 migrantes chegavam todo ano para a colheita da safra da cana. No Estado de São Paulo chegava a mais de 150.000. Hoje em Guariba e região, a estimativa do Sindicatos dos Trabalhadores Rurais (criado após a greve) , o número de trabalhadores migrantes não chegam a mil. As condições de trabalho mudaram radicalmente, especialmente devido à mecanização da colheita da cana. Os trabalhadores são transportados de ônibus, há banheiros químicos no local de trabalho, é fornecida alimentação; toda ferramenta e equipamentos de segurança individual e todas as garantias trabalhistas.
Mas, segundo pesquisadores das universidades citadas, o trabalho continua sendo pesado e, muitas vezes, insalubre. Os operadores de máquina sofrem com o extremo controle da máquina sobre seu trabalho: comem na hora que mais convém à eficiência produtiva; o excesso de atividade física que conduzia à exaustão; agora converteu-se em sedentarismo (cerca de pelo menos oito horas sentado à frente de uma direção com inúmeros controles. Para que as máquinas trabalhem de forma eficaz é necessário que eventuais pedras e outros objetos muito duros, sejam retirados de seu caminho. Esse trabalho são normalmente realizados por mulheres (catadoras de pedras). Um trabalho também exaustivo e muitas vezes pesado pois são encontradas pedras com cinco ou mais quilos.
A crise global do capitalismo de 2008, provocada a partir da quebradeira de bancos pela hipervalorização de imóveis (usados como hipoteca de empréstimos bancários) nos EUA sem lastro real, provocou um desaquecimento do crescimento econômico mundial, com conseqüente queda da demanda e dos preços de commodities como o açúcar e o álcool, gerando uma crise no setor sucroalcooleiro brasileiro e com isso facilitando sua desnacionalização. Entender melhor esse processo de desnacionalização do setor e suas conseqüências para os trabalhadores e para região central do Estado é um outro desafio apontado pelo Seminário realizado nos dis 01 e 02 de agosto de 2014 em Guariba.
Buscar superar a atual tendência de desarticulação dos setores com maior preocupação social (e ambiental) e com os trabalhadores tais como alguns núcleos das universidades da região, organizações religiosas com atuação social como a Pastoral do Migrante, sindicato de trabalhadores e outras entidades da sociedade civil é outro desafio identificado no Seminário. É importante e necessário reforçar os laços entre os pesquisadores e os atores sociais e destes com os setores políticos governamentais (Executivo através dos Ministérios do Trabalho e Emprego, o da Justiça e o do Desenvolvimento Agrário; Legislativo e do Ministério Público), para que sejam promovidas mais conquistas para a sociedade nesta região central do Estado de São Paulo.
O Resgate Socioambiental de Guariba e da Região Central de São Paulo
Alouatta guariba (Rylands& Brandon Jones) é o nome cientifico de uma espécie de macaco (do tipo bugio ou guariba) cuja presença deu nome à estação ferroviária instalada em 1895, para transporte de café produzido nas fazendas da região, em torno da qual desenvolveu-se a vila e depois município de Guariba.
Dos guaribas restou apenas o nome da cidade. Mas não é pouco. Nome é símbolo. Lembrança dos povos indígenas, primeiros habitantes locais que foram obrigados a migrar (quando não dizimados por doenças ou à balas não-perdidas). Lembrança dos guaribas, bugios, primatas de grande porte, de vida grupal, herbívoros (alimentam-se predominantemente de folhas) e barulhentos, que também foram obrigados a migrar ou foram eliminados à balas não-perdidas.
Nosso desafio maior é fazer com que as riquezas geradas nesta região (e o açúcar e o álcool produzidos pelo trabalho humano são uma das principais riquezas) resgatem nossa dignidade. E esta só poderá ser efetivamente resgatada quando os frutos de nosso trabalho sejam mais justamente distribuídos àqueles que trabalham, e promovam a recuperação da qualidade ambiental da região, registrando retorno dos guaribas à região e de nossa boa relação com eles como, por milhares de anos, nossos antepassados tupi-guarani conseguiram manter. E um desafio e tanto. Pode parecer utópico, mas creio que é neste ‘topos’ que podemos – se efetivamente quisermos – chegar lá, realizando o Reino de Deus aqui na Terra, com o imprescindível auxílio da ciência, da tecnologia, da boa vontade e do bom senso.
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Guariba – 30 anos da greve que mudou a vida dos ‘bóias-fria’ no Brasil - Instituto Humanitas Unisinos - IHU