Por: André | 21 Agosto 2014
A reconhecida psicanalista Eva Giberti (foto) acaba de publicar Incesto paterno/filial. Uma visão a partir do gênero (Noveduc) [sem tradução para o português], onde analisa o fenômeno dos pais que abusam sexualmente de suas filhas, as consequências para as vítimas e os argumentos que a Justiça costuma usar para evitar a punição dos abusadores. Desarma os mitos em torno do tema, adverte que se deve avaliar o incesto paterno-filial desde a ótica de gênero e propõe a criação de uma nova figura jurídica.
Fonte: http://bit.ly/VEO5th |
A reportagem e a entrevista são de Mariana Carbajal e publicadas pelo jornal argentino Página/12, 17-08-2014. A tradução é de André Langer.
Pais que abusam sexualmente de suas filhas, que as violam quando são crianças e as obrigam ao silêncio. Desse tema, tão brutal e talvez tão difícil de digerir, ocupa-se Eva Giberti em seu novo livro, Incesto paterno/filial. Uma visão a partir do gênero (Noveduc), onde analisa os diversos argumentos que costumam ser usados pela Justiça e pelo direito para evitar a punição dos pais incestuosos, e ao mesmo tempo mergulha no olhar da psicanálise e nos danos provocados nas vítimas, entre outros enfoques. A gravidade deste crime, cujas consequências se produzem não apenas durante a infância e a adolescência, mas também na vida adulta, “constitui um ataque preciso ao gênero mulher e deve ser estudado a partir da perspectiva de gênero”, adverte Giberti. Ela reclama também uma qualificação jurídica própria que ultrapasse a tipificação atual do Código Penal, onde o crime fica subsumido em figuras que não o nomeiam como tal. “Tem que ter uma classificação especial, como aconteceu com o feminicídio, que ultrapassa o homicídio”, assinala Giberti em uma entrevista ao Página/12.
Na conversa, a autora, reconhecida por seu vastíssimo trabalho sobre as violências contra as mulheres, desarma mitos que ainda persistem sobre o incesto, como se este afetasse fundamentalmente famílias marginais, questiona o aval que alguns juízes e comunicadores dão à falsa Síndrome de Alienação Parental, conhecida como SAP, e recomenda à imprensa não chamar de “monstros” os pais que abusam de suas filhas. “Classificá-los como monstros é uma armadilha cultural que se utiliza buscando dissimular a frequência do incesto. Um monstro é um ser que tem alguma anormalidade imprópria de ordem natural e é de aparência temível. A população não está repleta de monstros, mas de pais incestuosos. Os pais incestuosos são sujeitos convencidos de seus direitos como varões, favorecidos por sua paternidade. Supõem e decidem que podem dispor do corpo de suas filhas porque são parte da sua propriedade natural: se a engendrou, tem direito sobre ela. Mais ainda, alguns afirmam que é uma maneira de iniciá-las sexualmente”, assinalou Giberti.
Diversas pesquisas mostraram que o incesto ocorre com muito mais frequência do que é denunciado na Justiça. Ainda é um crime silenciado. Giberti contribuiu enormemente para torná-lo visível. Na realidade, o original do livro foi escrito em 1999. Naquele momento, participaram outros especialistas, entre eles o advogado Silvio Lamberti, que teve ao seu encargo o enfoque jurídico do tema. Giberti ocupou-se da direção do volume, além de escrever um extenso capítulo. “O livro esgotou-se e durante anos recebi solicitações para reeditá-lo de alunos e professores de diversas faculdades, assim como de profissionais interessados no assunto. Não foi possível por diferentes motivos editoriais e então decidi separar o capítulo que eu havia escrito para formar um novo volume, ao qual acrescentei algumas breves perspectivas”, detalhou a autora, doutora em Psicologia, professora na Pós-graduação de Psicologia Forense da UCES, titular da cátedra aberta Violência de Gênero da Universidade Nacional de Misiones e coordenadora do Programa As Vítimas contra as Violências, do Ministério da Justiça e Direitos Humanos, desde 2006.
Eis a entrevista.
Que implicações traz o fato de analisar o tema incesto paterno/filial a partir de um olhar de gênero?
Discernir entre gênero mulher e gênero varão, evidenciando o exercício despótico do poder dos varões contra suas filhas meninas ou adolescentes. É o paradigma da violência entre os gêneros, não só grave quanto ao crime em si, mas também porque produz uma submissão da menina posicionando-a como uma mulher submetida ao varão desde o começo do seu desenvolvimento sexual, interferindo em sua evolução. Além de privá-la da palavra mediante a obrigação do silêncio e comprometendo-a moralmente com a promessa do segredo.
Desde aquela primeira publicação até o momento presente passaram-se 15 anos. Que mudanças observa em relação à abordagem do tema? Denuncia-se mais o incesto? Condena-se mais?
Não temos estatísticas suficientes. Mas sabemos que nas capitais ou nas grandes cidades é denunciado algumas vezes. Em áreas camponesas, ignoramos como se procede, com alguma exceção. Posso conjecturar que mudou pouco, se comparado com o que se esperaria que acontecesse.
Surpreendeu-me uma sentença judicial que você menciona, de 1961, que avalia que o pai havia violado a filha de 12 anos sem violência e fala de que o homem a havia iniciado “nos segredos da alcova”. Esse olhar da Justiça sobre este crime tão aberrante mudou?
Ignoro se mudaram as ideologias de todos os juízes que eram capazes de pensar desse modo. Mas a informação e a sensibilização que permanentemente tramitam no âmbito do direito não garantem que haja uma mudança de mentalidade, excetuando aqueles juízes que começaram a pensar em termos de gênero.
Há mulheres que nunca chegam a denunciar o incesto que sofreram na sua infância?
A experiência tanto institucional como a que provém do meu consultório me confronta com situações nas quais pessoas adultas rememoram práticas incestuosas sofridas durante sua infância acerca das quais não haviam conseguido falar com ninguém... Surgem as recordações, às vezes com clareza, em outras oportunidades enturvadas pelos anos, mas sempre com o denominador comum da opressão sofrida pelo segredo. Mulheres adultas que recordam com repugnância e com vergonha – mesmo já sendo adultas – os fatos de que foram vítimas e que paulatinamente conseguem narrar porções daquelas recordações. Não duvidam em dar-se conta de que modo essas histórias influenciaram no desenvolvimento da sua vida sexual, suas dificuldades, suas resistências, seus ascos e seus temores em relação aos homens. O opróbrio que significou manter em silêncio os fatos e, ao mesmo tempo, a indignação ao pensar que havia sido seu pai o responsável por tais sofrimentos.
Ainda persiste a falsa crença de que se trata de um crime mais comum entre os setores pobres e que responde a problemas de aglomeração ou promiscuidade. Por que pensa que custa a acreditar que seja também uma prática criminosa presente entre setores médios e altos?
O incesto paterno-filial encontra-se em todas as classes sociais. Supõe-se que as denominadas classes altas são garantia das condutas corretas, o que não é verdade. Alguns textos escritos por vítimas provêm das classes altas.
Claro, como o da escritora inglesa Carolyn Slaughter, que você menciona, que contou já como adulta que foi abusada sexualmente por seu pai, um funcionário do Império Britânico, com o silêncio da sua mãe e da sua irmã maior, que sabiam do incesto. Por que se dá essa cumplicidade silenciosa do entorno familiar?
Porque existe a ideia de uma sagrada família que não deve ser prejudicada pela verdade dos fatos. Uma família com um pai incestuoso também forma uma família que abarca a perversão dos seus membros ou o desejo extremo de conseguir manter a estabilidade econômica, que se alteraria com uma denúncia que desembocasse em uma ação penal.
Nos últimos anos foram tornados públicos alguns casos de incesto que se justificavam como prática cultural em algumas etnias do país... Qual sua opinião a este respeito?
A discussão com alguns antropólogos que defendem esta prática por razões “culturais” leva a perguntar-se pelo estado da criança, por sua aceitação submetida a uma experiência que ultrapassa seu corpo e seu desejo e que deve suportar porque assim o indica o mandato ritual. Em nosso país, as etnias indígenas respondem à Convenção Internacional dos Direitos da Criança e a um Código Penal, ou seja, a prioridade é o bem-estar das crianças e seus direitos e não as imposições culturais.
Há numerosos casos de denúncias de incesto por parte de crianças que foram negadas pela Justiça porque os juízes não acreditam nelas...
Neste livro ocupo-me especialmente da verossimilhança das declarações das crianças. O verossímil é algo de cuja veracidade não há razão para duvidar, o que não significa que seja certo, é o plausível, o crível. A ausência de informação sobre a teoria das ficções e a verossimilhança constitui uma carência importante por parte dos juízes quando devem sentenciar e acreditar na criança. Cito aqueles históricos nos quais foi necessário que o juiz contasse com a prova do DNA da criatura engendrada pelo pai para convencê-lo da verdade dos ditos da vítima. É frequente encontrar resistência no tribunal quando a criança conta o que aconteceu, mesmo com o uso da Câmara Gesell e com evidências contundentes existe uma notória resistência por parte dos magistrados para acreditar na criança.
Por que é tão difícil para os juízes acreditarem nas crianças que expressam que foram abusadas por seus pais?
Custa tanto acreditar nas crianças porque as comunidades não estão dispostas a deixar cair a admiração que se tem para com os varões como chefes de família, o pater, o sujeito nutrício, a figura que muita gente precisa para adorá-la como garante da segurança e apoio das mulheres. E chega uma criança e desbarata tudo deixando à vista que estes sujeitos além de delinquentes são capazes de prejudicar sua prole para satisfazer seu afã de poder. O perfil destes varões é muito difícil de acomodar. Passamos séculos em outro sentido, admirando-os por serem varões. Essa admiração precisa ser mantida. Reconhecê-los incestuosos não lhes deixa margem para a decência.
Que estratégias os pais incestuosos utilizam para silenciar as suas vítimas?
Utilizam diversas estratégias para conseguir que a criança tolere sua violação. Desde dizer-lhe “todos os papais fazem isto com suas filhinhas” até afirmar que “é um segredo entre os dois” porque se querem muito e que não deve comentá-lo com ninguém; sobretudo não deve contá-lo à sua mamãe. Em um primeiro momento, a criança não se sobressalta diante das carícias do pai e não desconfia, até a situação em que reconhece a irregularidade do procedimento e registra sua dor física. As crianças recordam com terror “o momento da noite quando eu sabia que muito tarde ele apareceria... Não conseguia dormir até que ele chegava, e quando me tocava eu sentia muito medo porque sabia o que faria...”.
Cada vez que aparece na mídia o caso de algum homem que abusou sexualmente durante anos de uma ou mais filhas, com as quais teve vários filhos, certos noticiários de televisão e alguns veículos da imprensa costumam chamá-los de “chacais” ou “monstros”. São monstros ou homens comuns que se acreditam no direito de submeter suas filhas?
Classificá-los como monstros é uma armadilha cultural que se utiliza buscando dissimular a frequência do incesto. Um monstro é um ser que tem alguma anormalidade imprópria de ordem natural e é de aparência temível. A população não está repleta de monstros, mas de pais incestuosos. Os chacais sofrem de um preconceito dado que cumprem com sua função ecológica quando se ocupam de uma presa. Os pais incestuosos são sujeitos convencidos de seus direitos como varões, favorecidos por sua paternidade. Supõem e decidem que podem dispor do corpo de suas filhas porque são parte da sua propriedade natural: se a engendrou, tem direito sobre ela. Mais ainda, alguns afirmam que é uma maneira de iniciá-las sexualmente.
Um aspecto novo em torno do tema nos últimos anos é o aparecimento da falsa Síndrome de Alienação Parental, conhecida como SAP, que sustenta que as mães lavam o cérebro das suas filhas para denunciar que seu pai abusava sexualmente, sobretudo no marco de divórcios mal resolvidos. Qual sua opinião a este respeito?
A SAP apareceu como estratégia para frear o impulso que socialmente haviam tomado os temas vinculados ao incesto e abuso sexual contra meninos e meninas. Surge quando se iniciam campanhas contra estes crimes, somadas ao aparecimento de grupos de mães que os denunciavam. O feminismo liderou algumas dessas campanhas. Determinadas ideologias, compartilhadas por alguns juízes, psicólogos, advogados e um segmento da população, têm como finalidade a idealização do varão e a sacralização dos seus direitos. Podem ser mulheres ou varões que desfrutam do exercício de um poder que avassala as narrações das meninas e adolescentes; eles acreditam que é simples “lavar o seu cérebro”, o que supõe uma afronta às vítimas.
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Incesto paterno/filial. O crime silenciado. Entrevista com Eva Giberti - Instituto Humanitas Unisinos - IHU