Por: Caroline | 07 Agosto 2014
Estudava história em La Plata e levantava cedo para ir trabalhar na loja de tintas de seu pai, em Berisso. Era uma militante corajosa. Esteve detida em Cacha e teve seu filho no cativeiro.
A reportagem é de Irina Hauser, publicada por Página/12, 06-08-2014. A tradução é do Cepat.
Fonte: http://goo.gl/0D8HXS |
Era noite quando Estela de Carlotto e seu marido, Guido, chegaram à delegacia de Isidro Casanova. Traziam um pequeno papel com a convocatória que dizia: “aos progenitores de Laura Carlotto, os convocamos em caráter de urgência”. O comissário adjunto que os atendeu levou a um escritório, abriu uma gaveta e retirou um Livro Cívico. “Conhecem esta pessoa?”, perguntou de maneira automática. Essa foto, uma 4x4, a última de Laura com vida, a mostrava com os olhos com muita maquiagem, a pele radiante, o cabelo liso e escuro. “Sim, é Laura”, reconheceu Estela. “Bom, então lamento informar-lhes que ela faleceu”, disse o policial, de maneira indolente. No caminho para a seção haviam fantasiado em voz alta todos os tipos de hipóteses junto com Ricardo, o padrinho. Imaginavam que talvez tivessem com ela detida ali, ou que a transferiram para ficar a disposição do Poder Executivo, talvez até voltariam para casa com o bebê, Guido.
Estela reviveu aquela cena com a polícia há dois meses, quando declarou frente ao Tribunal Oral Federal Nº1 de La Plata, no julgamento pelos crimes cometidos no centro clandestino La Cacha, onde sua filha Laura foi sequestrada. Recordou a si mesma gritando com loucura. “Assassinos! Vocês a mataram! Como ela faleceu? Canalhas! Onde está o bebê?”. Era agosto de 1978.
A última vez que havia tido noticias de sua filha foi em 16 de novembro de 1977, quando ligou para ela na escola na qual Estela trabalhava. Naquela época Laura militava nos Montoneros e vivia de forma clandestina com seu companheiro. Ligava e escrevia uma vez por semana. Nessa ocasião contou que se sentia indisposta e que iria ao ginecologista. Havia perdido dois bebês em gravidez anteriores. Depois de dez dias sem notícias, Estela amanheceu com a certeza de que algo havia ocorrido.
Laura, a mais velha de quatro irmãos, estudava história na Universidade de La Plata. Seu interesse por política e pela militância relacionava-se muito com sua professora de história, Irma Zucchi, que ainda está desaparecida. Admirava sua forma de ensinar e questionar os fatos, e por pedir aos alunos que não memorizassem e sim compreendessem.
Laura levantava muito cedo para ir trabalhar na fábrica de tintas de seu pai, em Berisso. Desfrutava do contato com os trabalhadores e das conversas com seu pai, que era um homem bem informado, que detestava “a Igreja e os militares”, como conta a própria jornalista María Eugenia Ludueña no livro “Laura, vida y militancia de Laura Carlotto”, que aborda sua vida.
Em um dos últimos cafés que tomou com sua mãe, Laura lhe disse: “Viver é o mais lindo que há. Eu quero viver. Que todos possamos viver bem. Ninguém quer morrer. Contudo, seguramente, milhares de nós morremos…”. Não queria ir, até mesmo pelos apelos de seus pais. Laura pintava, com as cores da tinturaria, paredes e objetos. O livro de Ludueña a descreve como uma militante bonita e corajosa, lúcida, sensível, convencida e valente, talvez um pouco obscurecida dentro de uma estrutura vertical e machista da organização, mas dona de todas essas qualidades, que compartilhara com suas companheiras de cativeiro.
Estela e Guido desconheciam o paradeiro de Laura. No outono de 1978 uma mulher entrou na fábrica de tintas, e contou que cinco dias antes a haviam liberado de um campo de concentração. Disse que havia estado com Laura, que estava bem, com uma barriga de seis meses e meio e que, por isso, às vezes a alimentavam melhor. Transmitiu a eles que Laura havia pedido que fossem vê-los para dizer a eles que seu bebê nasceria em junho e que estivessem atentos a Casa Cuna. Seu desejo era que, se o bebê fosse homem, se chamasse Guido.
Em la Cacha, Laura era conhecida pelo seu apelido, Rita. Quando começou o trabalho de parto, escutavam nas rádios do centro clandestino as partidas do Mundial de 78, e a final entre Argentina e Holanda. Ela caminhava e praticava as respirações que uma outra detenta, Rosita, a haviam ensinado. Esses dias de Laura, assim como os que vieram depois, formariam um quebra-cabeças no relato de alguns poucos sobrevivente de La Cacha: Norma Aquin, María Inés Paleo, Alcira Ríos, Luis Córdoba e María Laura Bretal.
Um dos guardas avisou aos outros detidos quando Laura deu a luz, disse que era um menino, que estava tudo bem e que ela seria enviada para uma fazenda. Logo a devolveram para La Cancha, mesmo estando em uma “chalezinho”, sem contato com o restante. Ludueña diz em seu livro que ela conseguiu conversar e que contou que havia passado os últimos dias sem seu bebê, que acreditava ter parido em um hospital do Exército, distante, que a haviam subido para algum lugar em um elevador e que viu guardas armados cuidando do quarto. Pariu algemada e encapuzada. Como resistia em entregá-lo, fizeram com que ela dormisse e o levaram. Depois mentiram para ela e disseram que o haviam entregue à sua mãe.
Em 24 de agosto disseram a Laura que sua situação estava “por se resolver”, que a levariam a Escola Superior de Mecânica da Armada (ESMA), uma unidade da Marinha Argentina, e que a submeteriam a um Conselho de Guerra. Conseguiu despedir-se de todos. Pede a Alcira algo de recordação e levou seu corpete preto. Estava com ele quando seu pai foi reconhecer seu corpo, no furgão estacionado junto à delegacia de Isidro Casanova. Tinha o rosto desfigurado por um tiro, meias verdes e esse corpete. “Guido a beijou, acariciou seu rosto e ficou alguns minutos sozinho com ela, contemplando-a, sem dizer nenhuma palavra. Depois ele refez seus passos, entrou na delegacia e abraçou Estela”, relata Ludueña em seu livro. Laura tinha 23 anos e tinha sido assassinada em uma estrada na província de Buenos Aires.
Quando Estela ainda pensava que talvez chegaria o dia em que Guido recuperaria sua identidade sem que ela chegasse a conhecê-lo o escreveu: “Sou a mãe de Laura. A primeira filha, sonhada, querida, esperada, como os três que vieram depois. Contudo ela teve algo especial, pela vida que viveu: uma vida curta, intensa, com muito conteúdo”.
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Laura, uma vida curta e intensa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU