24 Julho 2014
O planejamento do uso de recursos hídricos é fundamental, como aponta o professor da USP, na entrevista abaixo. Porém, é preciso ter em mente que a água que, apesar de ser comum dizer que a Terra é o planeta água, apenas 2,5% desse recurso na Terra é doce – ou seja, pode ser usado para consumo próprio. A maior parte dela está aprisionada em aquíferos subterrâneos e geleiras. Só 0,26% da água doce da Terra está em lagos, reservatórios e bacias hidrográficas, mais acessíveis ao homem e a atividades econômicas. Isso significa dizer que apenas 0,0065% da água na Terra é água doce disponível. Em resumo: se toda a água da Terra coubesse em um balde de 10 litros, a água doce disponível chegaria a apenas 13 gotas. (Comentário do Akatu)
A entrevista foi publicada pelo portal "2000 e água" e reproduzida pelo sítio Akatu, 22-07-2014.
Segundo dados da Comissão Pastoral da Terra, o Brasil tem um conflito violento por dia por causa da água. Muitas destas disputas ocorrem para evitar a apropriação de recursos hídricos por empresas ou para impedir a construção de barragens. Em março deste ano, foi a vez dos governos de Rio e São Paulo entrarem em atrito. Sob pressão da crise de abastecimento, o governo paulista pediu ao governo federal o desvio das águas do rio Paraíba do Sul, que nasce em São Paulo e também corta cidades mineiras e fluminenses.
Diante deste cenário de tensão, veículos de comunicação não pouparam manchetes anunciando uma “guerra por água”. Para o professor de Geografia da USP Luis Antonio Bittar Venturi, no entanto, a mídia é “fatalista” quando coloca a escassez como origem dos conflitos. “A água é o recurso mais abundante do planeta. Se existe falta d’água em alguns lugares, isto é problema de planejamento”, afirma.
Eis a entrevista.
Como você avalia o discurso de veículos de comunicação que anunciam escassez e guerra por água?
A mídia é muito fatalista. Vende-se mais se você anunciar fome, conflito e guerra. Thomas Malthus dizia que o mundo vai passar fome porque a produção de alimentos é mais lenta que o crescimento da população. Essa é uma afirmação que não considera que o planejamento e a técnica podem reverter isso. É a mesma coisa com a água. Falar que ela vai acabar é um tremendo absurdo. A água doce vem do oceano, via evaporação e precipitação. Esse é um sistema que nunca vai acabar, a não ser que a Terra acabe.
Se a água é um recurso abundante, por que estamos passando por uma crise hídrica na Região Metropolitana de São Paulo?
É falta de planejamento a médio e longo prazo. Em São Paulo, o clima é tropical úmido, então a recarga de água vinda do Oceano está assegurada. A recarga é muito maior do que a água que conseguimos usar, só que, por uma questão de mau planejamento, há muita demanda concentrada nas metrópoles. Além disso, falta incorporar no planejamento dados científicos, que existem e estão disponíveis. Mas o poder público prefere culpar a natureza.
A falta d’água em São Paulo gerou a polêmica do desvio do Rio Paraíba do Sul para abastecer o Sistema Cantareira, gerando um conflito entre os governos de Rio e São Paulo. Isso, para você, não seria um conflito por falta de água?
Uma bacia hidrográfica é um sistema integrado e deve ser gerida por inteiro, independentemente de quantos Estados a compartilhem. Internamente aos países existem conflitos, mas eles são usados como bandeira política, porque tem forte apelo emocional: “Ah, São Paulo está roubando a água”, o que é uma besteira. A água é o recurso mais abundante no planeta. Se existe falta d’água em alguns lugares, isto é problema de planejamento.
Que mudanças no planejamento ajudariam a resolver o problema?
Fazer a interligação dos sistemas Cantareira com Alto Cotia e Guarapiranga. Enquanto o Sistema Cantareira estava com 11% da sua capacidade, o Alto Cotia estava com 77%! Não é falta d’água! Outro ponto: o volume de perda na distribuição na SABESP é acima de 30%, devido a ligações clandestinas e vazamentos. Resolver isto seria como produzir 30% a mais de água. Além destas questões, só agora há um sistema para usar o volume morto dos reservatórios, que é meramente uma questão técnica.
No Brasil 34 milhões de pessoas não têm acesso à água potável. Como você avalia esse cenário?
A água, embora seja o recurso mais abundante do mundo, não se distribui de forma equitativa pelo globo. Então, cabe ao homem planejar. Toda vez que há uma população acometida pela escassez hídrica, a culpa é o problema social, e não um problema natural.
Parte do problema de acesso também é reflexo das diferenças sociais?
Há dois tipos de escassez. O chamado estresse hídrico natural é quando um lugar não tem água mesmo, mas você pode resolver isso de alguma forma, como os dessalinizadores usados na Península Arábica. E o estresse socioeconômico, que ocorre em locais de pobreza e sem um planejamento adequado. É uma irracionalidade de planejamento na Amazônia haver problemas de saúde e alta taxa de mortalidade infantil por falta de acesso a água de qualidade. As embarcações que levam mercadorias de Manaus para o interior da Amazônia estão apilhadas de garrafões de água mineral comprados.
Há algo que esteja sendo feito?
Existe um projeto do Governo Federal de construção de cisternas em casas de comunidades rurais da região Nordeste, e que está, de fato, fazendo grande diferença na vida desta população. Então, se isso for suficiente, basta. Agora, para você desenvolver a agricultura, é necessário mais do que isto. Aí é preciso transposição do rio São Francisco, da qual eu sou a favor. É tirar 1% de sua água para tornar perenes as bacias que são intermitentes. Depende do contexto. Não há uma fórmula que sirva para todas as regiões.
Os mais de 70% de água destinada à agricultura não fazem falta para outros setores?
Essa é uma média mundial. A agricultura é o setor que mais consome água. Mas ela nem sempre é potável. No interior do Brasil, a água é bombeada diretamente do Rio. Já na Síria há em todo lugar duas torneiras: uma que você pode beber e outra que você não pode. A que você não pode beber é usada para limpeza e a água de reuso também vai para a agricultura. Quanto ao uso doméstico, é preciso ter um mínimo assegurado. O mínimo mesmo, que em uma situação crítica são 100 m³/ ano por habitante, e que é a situação natural de vários países, principalmente na Península Arábica. Mas eles conseguem, por meio do planejamento e da técnica, ter um abastecimento per capita do mesmo nível de alguns países europeus e de lugares que têm bastante água.
Você é otimista nas perspectivas de que o Brasil vá se atentar mais à questão do planejamento hídrico?
Eu tendo a ser. O problema é que a gente sempre corre atrás do prejuízo. Precisa vir uma crise de abastecimento para a Sabesp e o governo do Estado acordarem. Mas o ideal seria um planejamento mais eficiente e adequado, que evitasse a necessidade de passar por períodos de racionamento de água e energia.
Leia aqui a reportagem hipermídia que retrata crise de água em São Paulo.
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Se falta água, o problema é de planejamento, diz especialista - Instituto Humanitas Unisinos - IHU