16 Julho 2014
"Temos, nestes dias de julho de 2014, um estranho debate em torno ao Cristo do Corcovado. A arquidiocese católica do Rio de Janeiro vetou um episódio, “Inútil paisagem”, do cineasta José Padilha, parte de um filme de vários autores, “Rio eu te amo”. Nele, o ator Wagner Moura dialoga com a estátua. Pelo que se sabe, ali não havia um atentado grave contra um credo religioso particular", escreve Luiz Alberto Gómez de Sousa, sociólogo.
Eis o artigo.
Temos duas tendências político-religiosas opostas. Desde o final dos anos 60, desenvolveu-se na América Latina a Teologia da Libertação. Ela preparou a declaração dos bispos católicos no encontro continental de Puebla, em 1979, que proclamou “a opção preferencial pelos pobres”. Trata-se de um compromisso social com base nos princípios evangélicos, que repercute no político e que prega o compromisso dos cristãos com a justiça social e as grandes causas da pessoa humana, da sociedade e até do planeta. Mas não se confunde com uma tendência política determinada. Não apresenta candidatos próprios, mas faz um chamado ao discernimento e a uma opção livre e madura dos cristãos. Está na linha do bispo de Roma Francisco, que incita os católicos a sair de seu gueto e a enfrentar os desafios da sociedade, não para defender uma doutrina, mas basicamente para exercer a caridade e a misericórdia. No caso do Brasil, ela se expressa em pastorais sociais cristãs e nas Comunidades Eclesiais de Base (as CEBs), onde se encontram membros de vários partidos. No dizer do teólogo peruano Gustavo Gutiérrez, ela quer ser “uma palavra coerente com uma prática”. Prática de compromisso com os injustiçados e oprimidos.
Nos últimos anos, o Movimento Fé e Política organizou encontros com milhares de participantes. O IX Encontro se realizou em Brasília, em novembro de 2013. Numa Carta de princípios, o movimento se declarou “ecumênico, não confessional e não partidário”. Mas tem algumas orientações básicas: “está aberto a todas as pessoas que consideram a política dimensão fundamental da vivência de sua fé, o horizonte de sua utopia política”. Quer ser “um serviço de formação e informação (para) questões de política, cultura, ecologia, ética e espiritualidade”. Busca “a construção de uma sociedade alternativa ao capitalismo neoliberal” e quer promover “uma cidadania ativa”. Não é um movimento neutro, tem princípios claros, mas não participa do processo eleitoral com candidatos.
Do outro lado, em oposição, temos no parlamento a constituição de uma bancada evangélica, que na atual legislatura começou com 73 deputados e 4 senadores, de certa maneira a terceira bancada, depois do PMDB e do PT. Alguns de seus princípios: contra o aborto, a eutanásia, o casamento homossexual. Consta que 23 de seus membros respondem a processos no Supremo Tribunal Federal. O “lobby” dessa bancada, à qual de unem em certos momentos católicos conservadores, elegeu o pastor Marco Feliciano (PSC-SP) como presidente da Comissão de Direitos Humanos. Ele quis transformar a mesma numa plataforma de sua orientação.
Feliciano chegou a declarar que os africanos são vítimas de uma maldição que vem dos tempos bíblicos! Outro membro, Eduardo Cunha (RJ), líder do PMDB na Câmara, negocia abertamente cargos e liberação de recursos. Está sendo investigado por sonegação de impostos. Essa bancada tem princípios rígidos, mas uma ética bastante fluida. E nas próximas eleições, se prepara para disputar cargos, com um candidato a presidente, o pastor Everaldo Pereira, do Partido Social Cristão (PSC) e dois a governadores do Rio de Janeiro, Anthony Garotinho (PR) e Marcelo Crivella (PRB). Seus similares nos Estados Unidos são grupos fundamentalistas conservadores.
Vale lembrar um incidente mais atrás. Em 2010, na eleição presidencial, foi necessário um segundo turno, quando as forças da oposição vieram com toda a artilharia. O bispo católico de Guarulhos escreveu uma declaração, afirmando que Dilma Rousseff tinha se posicionado favorável ao aborto. Publicou indevidamente, com o logotipo da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e em nome do regional episcopal de São Paulo, do qual era presidente e teve apenas o apoio de outro bispo da região. O fato é que essa instância da CNBB não discutira o tema e o bispo foi logo desautorizado por outro membro do regional. Mas a carta, apócrifa como manifestação coletiva, foi sendo distribuída com milhares de cópias. Nesses dias, alguns bispos brasileiros encontraram Bento XVI. Alguém, da cúria ou da nunciatura brasileira, introduziu uma frase na fala do papa, em que ele alertava para o perigo de votar em pessoas que eram contra o direito à vida. Também alguns pastores pentecostais se manifestaram contra Dilma (outros deram seu apoio). Na verdade, nenhum desses fatos iria incidir seriamente na eleição.
Por tudo isso, entretanto, foi preparado um Manifesto de cristãos e cristãs evangélico/as e católico/as em favor da vida e da vida em abundância, apoiando a candidatura de Dilma.
Lemos no texto: “Somos homens e mulheres, ministros, ministras, agentes de pastoral, teólogos/as, padres, pastores e pastoras, intelectuais e militantes sociais, membros de diferentes Igrejas cristãs, movidos/as pela fidelidade à verdade, vimos a público declarar: Nestes dias, circulam pela internet, pela imprensa e dentro de algumas de nossas igrejas, manifestações de líderes cristãos que, em nome da fé, pedem ao povo que não vote em Dilma Rousseff sob o pretexto de que ela seria favorável ao aborto, ao casamento gay e a outras medidas tidas como ‘contrárias à moral’... A própria candidata negou a veracidade destas afirmações e se reuniu com lideranças das Igrejas... Apesar disso, estes boatos e mentiras continuam sendo espalhados. Diante destas posturas autoritárias e mentirosas, disfarçadas sob o uso da boa moral e da fé, ... não aceitamos que se use da fé para condenar alguma candidatura. Por isso, fazemos esta declaração como cristãos, ligando nossa fé à vida concreta, a partir de uma análise social e política da realidade e não apenas por motivos religiosos ou doutrinais. Em nome do nosso compromisso com o povo brasileiro, declaramos publicamente o nosso voto em Dilma Rousseff ... defender a vida é oferecer condições de saúde, educação, moradia, terra, trabalho, lazer, cultura e dignidade para todas as pessoas, particularmente as que mais precisam.”
Seguiam mais de 650 assinaturas, oito bispos, entre os quais, Tomás Balduíno, Pedro Casaldáliga, Demétrio Valentini, sacerdotes, pastores e pastoras, leigos e leigas e até um monge budista aderiu. Esse manifesto foi lido por mim, acompanhado por Jether Ramalho, em 10 de outubro, no Teatro Casa Grande, juntamente com um manifesto de artistas e intelectuais pró Dilma, com cinco mil assinaturas.
Temos, nestes dias de julho de 2014, um estranho debate em torno ao Cristo do Corcovado. A arquidiocese católica do Rio de Janeiro vetou um episódio, “Inútil paisagem”, do cineasta José Padilha, parte de um filme de vários autores, “Rio eu te amo”. Nele, o ator Wagner Moura dialoga com a estátua. Pelo que se sabe, ali não havia um atentado grave contra um credo religioso particular.
A Igreja Católica já tinha censurado, nos anos oitenta, o filme “Je vous salue Marie”, de Jean-Luc Godard, que foi proibido em vários países. Pensemos nos Versos Satânicos de Salman Rushdie, que provocaram ataques violentos de grupos fundamentalistas islâmicos, que condenaram o autor à morte, à distância. Como disse o cineasta Miguel Faria Jr.: “O Cristo Redentor é um símbolo religioso associado à imagem da cidade. A cúria tem o direito de achar o que quiser, mas vivemos num país laico” (O Globo,9.7.2014). Esse é o tema, uma sociedade laica. Fim dos tempos de cristandade.
A coordenadora jurídica da arquidiocese declarou: “a arquidiocese ficou detentora dos direitos patrimoniais de autor sobre o monumento, que não só é um símbolo do Rio e do Brasil, mas é um santuário que comporta uma capela” (idem). Esses chamados “direitos patrimoniais” fazem parte de um momento que tinha alguma dificuldade de aceitar a laicidade da cidade e de seus monumentos. O Cristo do Corcovado foi terminado em 1931, num tempo de compromisso entre dois poderes, um civil, o presidente provisório Getúlio Vargas e um religioso, o poderoso cardeal Sebastião Leme. Estávamos num país em que a separação desses poderes nem sempre era clara, com um presidente, não crente, mas recém-empossado, frente à força da Igreja Católica daquele momento. Esta, por exemplo, através da Liga Eleitoral Católica (LEC), iria intervir logo na política e proibir os católicos de votar em candidatos que fossem favoráveis ao divórcio ou contra o ensino religioso nas escolas. Mais adiante, o divórcio foi aprovado, apesar das fortes campanhas em contra, lideradas pelo então deputado monsenhor Arruda Câmara. Hoje o problema passou a ser a descriminalização ou a legalização do aborto, conseguidas em amplas situações em países de tradição católica, como a Itália ou Portugal. As leis e dispositivos legais são para todos e não deveriam ser feitos em função de um setor religioso determinado. Católicos que defendem a censura ao filme afirmam que não se pode ofender o sentimento católico brasileiro, sem saber em concreto qual seria o violento desacato dele à parte católica da sociedade.
Não esqueçamos, também, que a figura de Jesus não é um patrimônio exclusivo da Igreja Católica, mas de todas as crenças cristãs que o invocam. Além disso, mais do que tudo, o monumento do Corcovado é um bem público, que foi declarado Patrimônio da Humanidade pela UNESCO. Como afirmaram muitos durante essa discussão, é um ícone do Rio e do Brasil e não propriedade privada de uma religião particular. Já não estamos, repito, nos tempos da cristandade ocidental. Para Cora Rónai, “o Cristo é um dos principais símbolos do Rio, transcende a religião e, como tal, pertence a todos nós, à cidade inteira, sem qualquer distinção de credo”( O Globo, 10/7/2014). E isso leva a articulista a considerar a Igreja Católica uma entidade retrógada, dando uma ideia negativa da mesma, que muitos gostaríamos de não aceitar. Esse incidente passa a imagem da Igreja com um sabor medieval, longe do pluralismo democrático e de um catolicismo pós Vaticano II.
Em um livro que escrevi, “Uma Fé exigente, uma política realista” (EDUCAM, 2008), lembro que as autonomias das diversas esferas da realidade devem ser respeitadas, articulado-as, é claro, mas não as confundindo. O fundamentalismo – integrismo em jargão cristão – é um salto direto e no vazio entre uma fé e uma opção política ou técnica. Indico: “respeitemos as distinções de espaços, grande aquisição da modernidade”(p. 16), que rompe com projetos de cristandade ou de novas cristandades. No mundo islâmico vemos surgir, em direção oposta, projetos políticos religiosos com a aplicação direta do Alcorão, mais concretamente, de uma certa leitura dele. Um grande avanço no mundo de hoje é, porém, a norma da laicidade da sociedade e do estado, não feudatários de uma opção religiosa particular. Quando a Igreja Católica, no concílio Vaticano II, em 1965, aprovou o princípio da liberdade religiosa (Declaração Dignitatis humanae), não quis que fosse aplicado apenas onde os cristãos são minoria (o que seria uma posição oportunista), mas em qualquer sociedade.
(Este texto foi pensado em função de uma futura Conferência do IBASE, de 26/27 de agosto, sobre “Cidadania efetiva e direitos humanos”).
Veja também:
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Questão político-religiosa hoje - Instituto Humanitas Unisinos - IHU