Por: Cesar Sanson | 30 Junho 2014
O movimento social Ocupe Estelita acende pela primeira vez o debate sobre o agressivo planejamento urbano da capital mais antiga do Brasil.
A reportagem é de María Martín e publicada pelo jornal El País, 29-06-2014.
Eram cinco da manhã de 17 de junho quando da varanda do seu prédio no bairro histórico de São José, no Recife, Evelyn Ribeiro, de 35 anos, viu vários ônibus repletos de agentes e a cavalaria da Polícia Militar cercando a sua rua. “Era um efetivo enorme, pensei que fosse alguma comitiva da FIFA, mas logo lembrei do Ocupe Estelita”. A missão da polícia, com um mandado de reintegração de posse nas mãos, era despejar ocupantes de um terreno vizinho, o Cais José Estelita, onde dezenas de estudantes, professores, arquitetos, artistas e advogados haviam construído um acampamento. As barracas, assim como os shows, festas, aulas, oficinas e assembleias do local representavam a oposição a um gigantesco e polêmico empreendimento imobiliário.
Após horas de luta, os policiais encurralaram e ‘limparam’ o local que em seguida foi blindado pelas construtoras responsáveis do projeto Novo Recife, um mega-condomínio de 12 torres de 40 andares à beira da Bacia do Pina, questionado judicialmente em cinco processos. Integrantes do movimento batizado como Ocupe Estelita afirmam que 35 feridos por bala de borracha e golpes de cassetete registraram boletins de ocorrência, o Governo conta três. O Ministério Público de Pernambuco condenou a ação.
Hoje, embora o slogan das construtoras “Recife pensa alto” já tenha marcado o cartão postal da capital, o Ocupe Estelita abriu uma disputa real pelo céu no Recife em um dos poucos bairros onde o tijolo mais alto era o das torres das igrejas.
É a primeira vez que um movimento social articulado e com as redes sociais como arma clamava pelo “basta” ao modelo de crescimento urbano que impera na primeira capital do Brasil, cidade admirada pela sua riqueza patrimonial. De um lado da contenda, o movimento social Direitos Urbanos, ativo desde 2012 e inconformado com a falta de participação pública no debate urbanístico da cidade, que atraiu uma variada turma de classe média sem hierarquias que pretende discutir do zero o empreendimento, cuja legalidade é discutida desde que o terreno foi comprado em 2008. Do outro, um poderoso consórcio imobiliário que ostenta os macro-projetos da cidade e que colaborou economicamente na campanha eleitoral do governo municipal e estadual, nas mãos do PSB desde 2013.
“Há anos que estávamos muito angustiados com esse planejamento. O Recife não está aguentando esse fluxo de gente, essa verticalização, essa priorização do carro. Hoje é o cais, mas se trata de pensar em um todo e em nas próximas áreas que vão ser pasto da especulação”, relata a estudante de biologia Vanessa Azevedo, acampada no local.
"O planejamento urbano do Recife tem sido feito a partir de megaprojetos", lamenta também Virgínia Pontual, urbanista e professora de Universidade Federal de Pernambuco. "O Novo Recife está dentro de uma lógica onde a iniciativa privada, com o apoio do poder público, intervêm por meio de grandes empreendimentos imobiliários que nunca pensam na cidade, no seu conjunto, e ainda menos em uma perspectiva social".
O cais do erudito engenheiro José Estelita, um antigo armazém de açúcar e vila ferroviária do século XIX com vistas à bacia, é hoje cenário - além de esta batalha inédita - da degradação da região e do tráfico de drogas. No limite do histórico bairro de São José, o cais fica próximo a comunidades construídas com paus e lonas de ambos os lados dos trilhos de um trem que ainda transporta mercadoria. Tornou-se um lugar de passagem que os vizinhos preferem evitar. Cansados do declive do lugar, há quem defende as torres. “Vai trazer desenvolvimento, segurança, emprego, vai ter um hotel...”, enumera José Ribeiro, proprietário de uma lojinha de conveniência em São José e grande defensor do projeto nas reportagens da televisão.
O argumento de Ribeiro é exatamente aquele que entristece Frederico Faria, superintendente do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) de Pernambuco há 11 anos. “Eu gostaria de que as pessoas se conscientizassem do valor do nosso patrimônio, que não deixa de ser a identidade de cada um de nós. Infelizmente o Brasil não tem esse apego”, lamenta.
Um mês antes do truculento despejo com cavalos, as retroescavadeiras do consórcio, com a conivência da prefeitura, entraram de madrugada para demolir os armazéns. Era para ser feito com sigilo, mas, antes da primeira estrutura cair, dois integrantes do Ocupe Estelita apareceram no cais e sem pretendê-lo cravaram a mecha do movimento. Os dois acabaram apresentando boletins de ocorrência por agressões e roubo. Um deles, Maurício Bandeira, denunciou à policia que foi obrigado a tirar até a cueca no meio da rua e foi detido por homens fardados com armas. “Milícias”, ilustra ele. “Apontaram uma pistola para mim, pegaram meu celular e devolveram depois sem o chip onde estavam as fotos daquela noite”, lembra um mês depois na entrada agora bloqueada ao terreno. A guerra, que Direitos Urbanos preparada desde 2012, acabava de começar e o Ocupe Estelita decidiu fazer do cais sua base permanente e espalhou seu exército nas redes sociais.
O superintendente Faria recebia aquele dia a ligação da filha que havia visto no Facebook que as retroescavadeiras do consórcio estavam em ação. Faria não dava crédito. Ele ainda aguardava que as empresas assinassem um acordo que garantia, entre outros compromissos, a preservação e restauração dos antigos armazéns que há em um extremo do local e um estudo arqueológico que permitisse registrar e estudar as ruínas sob a terra do cais. “Não acho que encontremos nada que valha preservar, mas não podemos perder o conhecimento do que aí havia”, explica Faria. “O consórcio concordou, mas nunca assinou”, diz.
Aquele 22 de maio foi um caos para o movimento, para as construtoras e para governo municipal. A prefeitura recuou e parou as máquinas. “Havia um grande risco de conflito social e resolvemos que tínhamos que abrir uma negociação”, afirma o Secretário de Desenvolvimento e Planejamento Urbanístico, Antônio Alexandre, para justificar a marcha a ré da prefeitura. “Quem começa à noite e porque não está fazendo a coisa muito certa”, afirma Faria. Ele também decretou o embargo da demolição. “Nós ficamos muito tristes [pela demolição antecipada]. É uma briga muito justa pela cidade, pela ausência de espaços públicos, por esse caos de carros, pela falta de estrutura. Porém nossa briga se limita à proteção do patrimônio, e não possamos fazer mais nada”, lamenta Faria, preocupado com “a verticalização exacerbada” da cidade.
Hoje, o Ocupe Estelita, foi rebatizado como Resiste Estelita. Fora do recinto do cais, onde pelo menos havia banheiro, o movimento sobrevive acampado na lama. Com a única proteção de um pedaço de um viaduto, cerca de 20 barracas fazem plantão na frente do cais. As crianças carentes das comunidades vizinhas ganharam um barraco. Elas sabem pouco dessa guerra em concreto, passam o dia cheirando cola, não lembram dos meses do ano, mas gostaram dos “playboys” que organizam aulas, oficinas e montaram uma escolinha para tentar largar a garrafinha dos seus narizes. Os meninos não obedecem à primeira, mas buscam o carinho com instinto de gato enquanto olham perdidos para o céu ainda por conquistar.
Ao cair a tarde no acampamento, a praia de Boa Viagem, faz gala de uma característica extraordinária e aplaude o pôr do sol horas antes do resto da região. Não, não se trata de nenhum ritual ou costume local. A partir das 15h30, um exército de sombras invade a areia, as pistas de vôlei, a orla, e se adentra vários metros no oceano com a agressividade de enormes chaminés industriais. O recifense relata a cena com resignação porque há anos a batalha já tem ganhador: os arranha-céus conquistaram o sol dos banhistas. Assim como outros muitos espaços da cidade. Mas hoje, a contenda pelo que resta do céu do Recife, acaba de começar e está mais ativa que nunca.
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Um grupo de ativistas declara guerra aos novos arranha-céus do Recife - Instituto Humanitas Unisinos - IHU