Por: André | 30 Junho 2014
“Mais que uma dívida externa, já é uma dívida eterna, matematicamente impagável, por mais que se tenta com um alto custo em vidas humanas e sacrificando o desenvolvimento do país. Nunca pode ser justo que se privilegie o capital financeiro em detrimento da vida dos povos”, escreve Adolfo Pérez Esquivel, em carta dirigida ao juiz Thomas Griesa.
A carta do Prêmio Nobel da Paz argentino está publicada no sítio América Latina en Movimiento – ALAI, 27-06-2014. A tradução é de André Langer.
Eis a carta.
Ao Sr. Thomas Griesa
Juiz do Tribunal Federal do Distrito Sul de Nova York, Estados Unidos
Receba a fraterna saudação de Paz e Bem.
Mais do que dirigir-me a você como juiz que intervém em uma causa que há tempos preocupa o nosso povo, quero fazê-lo como pessoa. Quero poder contribuir mais livremente para a reflexão sobre a situação que se produziu na República Argentina, pelas pretensões de um grupo de financistas possuidores de poucos bônus da dívida externa. Eles querem a devolução 100% dos mesmos, de maneira que terá um grave impacto sobre a vida do povo argentino, tendo-os comprado por centavos e sem nunca ter investido para o seu bem.
Espero, Sr. Griesa, que compreenda a situação vivida pelo nosso povo e as consequências sociais, econômicas e políticas que tem o pagamento desta dívida imoral e injusta para as pessoas e comunidades mais necessitadas.
Deve ter presente que os bônus cujo pagamento atualmente se discute, estão manchados com sangue das vítimas da ditadura militar. Fazem parte de uma dívida contraída sem consultar o povo e que nunca chegou a suas mãos. Fazem parte do endividamento que depois foi imposto nos anos 1990, inclusive renunciando à soberania e cedendo jurisdição de maneira inconstitucional a tribunais estrangeiros como o seu, supostamente para saldar as dívidas anteriores.
Por isso, afirmamos que é uma dívida ilegítima e injusta. Por trás dos números existem rostos que nos questionam e interpelam, de crianças, jovens, homens e mulheres vítimas da injustiça social e estrutural, do empobrecimento, da miséria e exclusão social que afetam milhões de seres humanos em nosso país, assim como também na América Latina e no mundo.
Estou certo de que Você não ignora isto, assim como não ignora o peso da especulação financeira na produção destas situações. Mais que uma dívida externa, já é uma dívida eterna, matematicamente impagável, por mais que se tenta com um alto custo em vidas humanas e sacrificando o desenvolvimento do país. Nunca pode ser justo que se privilegie o capital financeiro em detrimento da vida dos povos.
É por isto também que, junto com muitos outros, há anos viemos lutando contra o pagamento destas dívidas ilegítimas, exigindo uma auditoria oficial das mesmas, a aplicação das leis argentinas, a anulação da cessão de jurisdição e que não se continuem estas práticas inaceitáveis com os novos bônus, contratos e tratados que continuam a ser assinados.
Sr. Griesa, não quero colocar em dúvida a sua ação como juiz, mas me preocupa a justiça cega. Você sabe muito bem que nem toda a lei é justa e que muitas vezes se confunde o legal com o justo, ou não se leva em conta a situação dos povos e são tratados como algo abstrato e distante. Você deve conhecer a obra de Henry Thoreau, quando assinala que é preciso obedecer à lei; igualmente, é necessário resistir à lei injusta até conseguir sua mudança. Parece-me uma reflexão pertinente com relação a estes poderosos financistas, que para suas políticas de verdadeira rapina, buscam apoio onde não deveriam encontrá-lo.
Com isso não se deixa de lado as omissões e os erros cometidos pelos sucessivos governos da Argentina, pelo Parlamento e pelo nosso Poder Judiciário, no tratamento desses bônus e de toda a dívida. Apesar de reconhecer, desde os tempos da ditadura já há mais de 30 anos, a ilegitimidade e ilicitude de grande parte da dívida gerada, ninguém fez o necessário – incluindo, por exemplo, uma auditoria – para separar o legítimo do ilegítimo, o legal do ilegal, para evitar que se siga exigindo do povo argentino o enorme custo de pagar o que não deve.
Não sei se Você está a par de que existe em nosso país uma decisão judicial de 2000, que estabelece a fraudulência e a arbitrariedade da dívida que originou os bônus atualmente em posse dos fundos especulativos, que buscam obter o que em justiça, não lhes corresponde. Existem, além disso, denúncias, cuja investigação judicial ainda está aberta, com relação a esses mesmos bônus.
De acordo com as leis da nossa República e o direito internacional, são dívidas verdadeiramente nulas. Os Princípios Reitores sobre a Dívida e os Direitos Humanos nos recordam que é responsabilidade de cada credor e devedor, investigar e não pagar as dívidas contraídas de maneira injusta.
Esta dívida é uma herança indesejada e pesada que representa uma grande carga de dor e sacrifícios. Transformou-se em um mecanismo que leva em si à dominação e à submissão de todo um povo.
O país quer e deve cumprir com suas responsabilidades e obrigações. Por isso, é necessário aplicar a lei, mas sempre sobre a base de distinguir entre o legal e o legítimo, a lei e a justiça. É necessário, além disso, reconhecer que segundo o direito, tem prioridade a “dívida interna com o povo”: a luta contra a fome, a pobreza e a marginalidade de grandes setores sociais, os desafios da educação e saúde, que as crianças não morram de fome e doenças evitáveis e poder alcançar uma vida digna sem que roubem a esperança de nossos jovens.
Estou certo, Sr. Griesa, de que Você compreende o valioso da oportunidade que tem para velar pela justiça, e não só pelas leis que alguns têm mais poder que outros para impor. É necessário mudar leis nos Estados Unidos, em nosso país e em muitos outros, para evitar situações desta natureza. Enquanto isso, esperamos que prime a justiça e que os direitos daqueles que ainda não foram ouvidos nos tribunais, tenham a prioridade que merecem.
Obrigado por permitir-me estas reflexões. Caso possa contribuir em algo, aprofundar qualquer dos elementos assinalados, estou à sua disposição.
Adolfo Pérez Esquivel
Prêmio Nobel da Paz e Presidente,
Diálogo 2000 – Jubileu Sul Argentina e do Serviço Paz e Justiça – SERPAJ
Buenos Aires, 26 de junho de 2014.
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"É justo não pagar uma dívida ilegítima e imoral?', pergunta Nobel da Paz - Instituto Humanitas Unisinos - IHU