24 Junho 2014
O Papa Francisco fez muito bem em pronunciar o anátema contra os mafiosos, mas seria bom também que ele impedisse que os seus colaboradores utilizassem essa arma com o mesmo estilo de um passado não exatamente radiante.
A análise é do teólogo italiano Vito Mancuso, professor da Universidade de Pádua, em artigo publicado no jornal La Repubblica, 23-06-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
O Papa Francisco declarou na Calabria, na planície de Síbaris, que "os mafiosos estão excomungados". Finalmente, é preciso dizer, seja pela luta da Igreja contra o crime organizado, que se torna cada vez mais firme, seja pelo uso agora decisivamente mais apropriado da mais grave das sanções do direito penal eclesiástico. Mas o que acontece, de fato e de direito, com um católico que é excomungado?
Antes de responder, considero oportuno recordar os séculos de utilização totalmente imprópria do instrumento da excomunhão por parte dos antecessores do Papa Francisco. Os papas, de fato, muitas vezes fizeram um uso político dela, nada religioso, funcional ao seu poder e não às razões da espiritualidade e da justiça: pense-se nas excomunhões que atingiram reinantes como os imperadores Henrique IV (depois forçado a ir para Canossa) e Frederico II, a rainha Elizabeth I, Napoleão, o rei Vítor Emanuel II, ou toda a República de Veneza, com todos os seus habitantes. Ou ainda, em 1949, todos os pertencentes ao Partido Comunista (excomunhão que, pelo que eu saiba, nunca foi formalmente retirada).
A duríssima arma do banimento da comunidade eclesial também foi usada contra a liberdade de consciência em matéria de teologia com as excomunhões que atingiram teólogos e pregadores como Ian Hus e Girolamo Savonarola (ambos acabaram na fogueira), ou o Patriarca de Constantinopla Miguel Cerulário e, alguns séculos depois, Martinho Lutero e, em seguida, todos os protestantes.
A esse propósito, penso que é necessário recordar o que aconteceu em 1561, justamente na Calábria, também na província de Cosenza, a apenas uma hora de carro do local onde o Papa Francisco celebrou a missa, ou seja, o massacre de cerca de 3.000 valdenses pelas tropas enviadas pelo grande inquisidor Frei Michele Ghislieri, que mais tarde se tornou o Papa Pio V (na verdade, São Pio V!). E é impossível não mencionar as excomunhões que atingiram dois sacerdotes como Romolo Murri e Ernesto Buonaiuti.
Mas não é só história de ontem, é também crônica de hoje. A Igreja do Papa Francisco excomungou, recentemente, no dia 18 de setembro de 2013, um sacerdote australiano, Greg Reynolds, por ter promovido a ordenação sacerdotal das mulheres e o reconhecimento sacramental dos casais gays. E ainda sob Francisco ocorreu, há um mês, a excomunhão de Martha Heizer, teóloga católica austríaca, presidente do movimento internacional Nós Somos Igreja, essencialmente pelos mesmos motivos.
Há dois dias, na Calábria, o papa disse que "a 'Ndrangheta é isto: adoração do mal e desprezo do bem comum", acrescentando que "esse mal deve ser combatido, deve ser afastado, é preciso dizer-lhe não". E impôs a excomunhão.
Ora, eu pergunto, no entanto, se é justo aproximar na mesma pena criminosos que adoram o mal e sinceros crentes que buscam (talvez mesmo forçando os tempos) para tornar a Igreja verdadeiramente uma casa acolhedora para todos. Pergunto-me e sinto que é justo responder que não.
No início deste artigo, levantei o problema sobre o que acontece com um ser humano que é excomungado. A resposta é muito simples: depende do homem e da mulher afetados pela condenação. Houve um tempo em que não era assim. Quando um papa lançava o anátema da excomunhão, acontecia para todos algo concretamente sério. Ao interessado, passavam a faltar todas as relações sociais necessárias para o exercício do seu papel, ou, caso ele já estivesse nas mãos do poder eclesiástico, era entregue ao braço secular que infligia a pena, não raramente capital.
Ainda na primeira metade do século XX, Ernesto Buonaiuti teve que sofrer a fome por ter sido excomungado por causa das suas pesquisas históricas e das suas teses teológicas, também à luz do fato de que, tendo sido um dos pouquíssimos professores universitários a não jurar fidelidade ao regime fascista, também perdera a cátedra na universidade estadual.
Hoje, a excomunhão está bem longe de produzir efeitos como esses. Hoje, ela simplesmente prevê que o excomungado não pode tomar parte nas celebrações litúrgicas e assumir cargos eclesiais. Fim da transmissão. Ou seja, o máximo da pena para crentes sinceros como a presidente do Nós Somos Igreja.
Obviamente, o efeito das palavras de Francisco sobre criminosos encanecidos como os filiados às "famílias" é diferente: é improvável que as suas consciências sofram com isso. Mas o peso simbólico da excomunhão afetará a narrativa pseudoreligiosa que a máfia faz de si mesma, ajudará a romper as relações que os boss tiveram com as Igrejas locais, colocará párocos e cúrias diante das suas responsabilidades, tornará cada vez mais difícil o consenso social que o crime organizado tenta criar em torno de si mesmo.
São palavras corajosas, porque transformam a excomunhão em uma arma importante. Por isso, o Papa Francisco fez muito bem em pronunciar o anátema contra os mafiosos, mas seria bom também que ele impedisse que os seus colaboradores utilizassem essa arma com o mesmo estilo de um passado não exatamente radiante.
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A excomunhão como arma contra a heresia criminosa. Artigo de Vito Mancuso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU