Por: Cesar Sanson | 19 Junho 2014
A cena era impressionante - pelo menos para quem se impressiona. Uma passarela em que torcedores, a maioria brancos, desfila sua felicidade rumo ao estádio, enquanto os pobres, a maioria pretos e pardos, se debruçam para vê-los passar.
A reportagem é de Eliane Brum e publicada pelo portal do jornal Folha de S.Paulo, 17-06-2014.
"Você viu o corredor?", pergunta Michele Sancho, 28 anos, professora universitária. "Me senti muito mal."
Michele se referia ao longo corredor por onde ela e a família, junto com outros milhares de torcedores, passaram para entrar no Castelão, em Fortaleza, para assistir ao Brasil jogar contra o México. Mais de uma centena de metros em linha reta, atravessando a comunidade pobre que se debruçava sobre a grade na tentativa de vender alguma coisa ou só "ver como as pessoas se vestem". Michele escreve uma dissertação de mestrado sobre o "Conceito Constitucional da Dignidade Coletiva". "Vi minha dissertação ir embora ao passar por aquele corredor."
A cena era impressionante - pelo menos para quem se impressiona. Uma passarela em que torcedores, a maioria brancos, desfila sua felicidade rumo ao estádio, enquanto os pobres, a maioria pretos e pardos, se debruçam para vê-los passar. Há quem se constranja, como Michele e a família, assumindo-se como "elite". "Uma situação como essa estimula a raiva e o ódio", diz Marcos Sancho, 62 anos, administrador de empresas. "Napoleão já dizia que, se não fosse a religião, os pobres tinham devorado os ricos."
Há os que recusam a classificação. "Não pode dizer que todo mundo aqui dentro é filhinho de papai. Tem gente que trabalha dentro do estádio, não fica esperando o governo", pontifica Victor Hugo Batista de Araújo, 33 anos, "dono de imobiliária, mas comecei como corretor". Ele faz questão de dizer que foi um dos que xingou Dilma no Itaquerão. "Gritei porque não gosto dela e tem de ser agressivo mesmo."
Poucas vezes o lado de dentro foi tão imageticamente dentro. Ao ouvir a opinião de Araújo, o advogado paulistano Marco Aurélio Purini aborda a repórter. "Eu penso totalmente diferente dele, quer ouvir? Vim para cá de táxi e o taxista, que mora aqui perto do estádio, disse que queria muito poder entrar. Eu entrei, ele não. Passei por esse corredor inteiro pensando que toda a população brasileira queria estar aqui, mas só eu e muito poucos conseguem entrar. O Castelão reflete o Brasil: uma arena moderna, de última geração, convivendo com uma das partes mais pobres de Fortaleza."
Do lado de fora, dessa vez explicitamente fora, Jurandir Fernandes da Silva, 45 anos, decorador de gesso, assiste ao desfile com os amigos. "A gente fica triste de mais uma vez ficar de fora, mas a vida toda foi assim, não podemos fazer nada. Só ver eles entrar e sair." E ele vê, com os amigos, como se estivesse diante de um programa de TV, conformado com o lugar de plateia. Alguns metros antes dele, Robson Tavares Galvão, 32 anos, motoboy desempregado, tenta vender latinhas de cerveja. "Não adianta protestar por ficar sempre do lado de fora. Isso é reserva de classe social."
O cozinheiro Antonio Erlir Paiva, 33 anos, levou três dos quatro filhos para assistir ao desfile dos torcedores. "Esses são meus filhos", apresenta, orgulhoso da lindeza de seus meninos. Maria Suiane, de sete, Antonio Alisson, de seis, e Maria Iasmin, de dez, botaram roupa bonita e até maquiagem Iasmin fez. "O Brasil ainda não está no ponto de ser todo mundo igual, mas a gente fica satisfeito só de olhar, ver como as pessoas se vestem", ele diz. "Tou esperando minha patroa passar. Ela sempre passa por aqui e ontem me ligou dizendo que conseguiu ingresso. Eu gosto de ver ela passar."
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Comunidade pobre ao redor do Castelão assistiu à 'elite' desfilar - Instituto Humanitas Unisinos - IHU