O perfil do diabo, o inimigo da sociedade, segundo Francisco. Artigo de Agostino Paravicini Bagliani

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16 Junho 2014

Se a tradição cristã que atribui ao demônio um papel de absoluto perigo para a sociedade é antiquíssima, o modo com que o Papa Francisco fala do demônio é moderno. O demônio não é mais um inimigo genérico da sociedade.

A análise é do historiador italiano Agostino Paravicini Bagliani, professor da Università Vita-Salute San Raffaele, de Milão, ex-scriptor da Biblioteca Apostólica Vaticana e ex-professor da Escola Vaticana de Paleografia, Diplomática e Arquivística. O artigo foi publicado no jornal La Repubblica, 13-06-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Há poucos dias, no dia 1º de junho, no seu discurso no Stadio Olimpico, em Roma, o Papa Francisco disse que o diabo "não quer a família, eis por que ele tenta destruí-la". Alguns meses antes (1º de abril), durante a homilia matinal em Santa Marta, o papa se referira ao diabo para reafirmar a sua existência: "O diabo existe. O diabo existe. Mesmo no século XXI".

Já na sua primeira homilia na Capela Sistina, no dia seguinte à sua eleição (13 de março de 2013), diante dos cardeais que o elegeram, Francisco, falando de improviso, lembrou o diabo, afirmando que "quando não se confessa Jesus Cristo se confessa a mundanidade do demônio".

Essa frequentíssima referência ao demônio poderia, à primeira vista, surpreender, não fosse o caso de que todos os papas dessas últimas décadas falaram do demônio. Paulo VI escolheu até o dia 29 junho de 1972, festa de São Pedro, para defender com gravidade que "de alguma fissura parece que entrou a fumaça de Satanás no templo de Deus".

João Paulo II teria até celebrado duas vezes o rito de exorcismo na sua capela privada. Também para o Papa Wojtyla, a existência do demônio era real. Ele o disse no dia 24 maio de 1987, em Monte Sant'Angelo, no lugar em que nasceu o culto do Arcanjo Miguel: "O demônio ainda está vivo e operante no mundo". O mal não é apenas a consequência do pecado original, mas também "o efeito da ação infestadora e obscura de Satanás".

Bento XVI advertiu um dia (26 de agosto de 2012) os fiéis que acorreram a Castel Gandolfo para o Ângelus que a "culpa mais grave de Judas foi a falsidade, que é a marca do diabo".

Leão XIII (1878-1903) formulou até uma oração a São Miguel Arcanjo, para que protegesse os cristãos "nesta ardente batalha contra todas as potências das trevas e a sua malícia espiritual".

Em relação aos seus antecessores, o Papa Francisco, no entanto, usa um estilo diferente para falar do demônio, mais moderno, menos retórico, direto e simples. Poucas palavras bastam. "O diabo existe. O diabo existe. Mesmo no século XXI".

Se a linguagem do Papa Francisco é tão simples, a substância está em perfeita sintonia com a tradição. Para Francisco também, o demônio é uma realidade, aquela "realidade terrível, misteriosa e assustadora", de que falava Paulo VI.

Também para Francisco, o demônio é o principal inimigo da sociedade, a ponto de poder também destruir seus fundamentos, como por exemplo a família. Nesse sentido, a continuidade atravessa os séculos. Já para os primeiros escritores cristãos, o demônio é, por exemplo, o instigador dos sentidos, a tal ponto que se considerava que o demônio fazia com que se perdesse o controle da razão através do riso.

Para descrever os primeiros casos de heresias medievais, o monge Rodolfo Glaber, "o historiador do ano mil", atribui ao demônio um papel de protagonista, graças também ao seu poder de se transformar. A "loucura" do camponês Leutardo de Vertus, que "se livrou da mulher" e quis justificar o divórcio "alegando as prescrições do Evangelho" começou quando "um enorme enxame de abelhas" – metáfora do demônio – entrou no seu corpo.

O culto Vilgardo de Ravenna, que havia lido com paixão os autores clássicos, tornou-se "cada vez mais insensato" por causa de "certos diabos que assumiram o aspecto dos poetas Virgílio, Horácio e Juvenal". Nos grandes momentos de transformação da sociedade medieval, o demônio sempre aparece como o principal inimigo da sociedade.

Ao redor de 1430, quando, na Itália (Roma, Todi) e no norte dos Alpes, aparecem as primeiras caças às bruxas, à frente da suposta seita do "Sabbath" é posto o demônio, a quem bruxas e bruxos rendem homenagem realizando orgias e similares. O trágico fantasma do "Sabbath" das bruxas precisou do demônio para existir e assim funcionou por mais de três séculos na Europa cristã, católica e protestante.

Se a tradição cristã que atribui ao demônio um papel de absoluto perigo para a sociedade é antiquíssima, o modo com que o Papa Francisco fala do demônio é moderno. O demônio não é mais um inimigo genérico da sociedade.

Os temas são aqueles que falam às pessoas, à família, ao dinheiro. Além disso, o papa o faz usando palavras simples, claras e diretas. Com mais eficácia do que os seus antecessores, mas não se separando deles na substância.