Por: Jonas | 11 Junho 2014
Em 1978, a Argentina vivia sob o regime militar mais sangrento de sua história. Milhares de pessoas eram sequestradas, torturadas e desaparecidas em prisões clandestinas. Em meio a crimes contra a humanidade, uma festa: na primeira Copa do Mundo organizada por João Havelange, o país se consagrava campeão em casa, no Estádio Monumental, em Buenos Aires, a 800 metros da ESMA (Escola Superior de Mecânica da Marinha), maior centro de tortura da última ditadura (1976-1983).
Fonte: http://goo.gl/1ZZpxM |
A reportagem é de Aline Gatto Boueri, publicada por Opera Mundi, 11-06-2014.
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Naquele ano, a Copa do Mundo também foi alvo de uma campanha de boicote. No final de 1977, um grupo de militantes franceses organizou o COBA (Comitê de Boicote à Copa da Argentina), com o objetivo de denunciar as violações aos direitos humanos cometidas no país sul-americano e pressionar para uma mudança na sede do maior evento de futebol do mundo.
O COBA chegou a ter 200 comissões em toda a França, mas contava com apenas sete integrantes argentinos, como relata a historiadora Marina Franco no artigo Direitos Humanos, Política e Futebol (Entrepasados, 2005). Pensada na Europa, a campanha de boicote à Copa na Argentina foi rejeitada, inclusive, pelas lideranças exiladas de movimentos de resistência à ditadura, como os Montoneros, guerrilha de origem peronista, e o ERP (Exército Revolucionário do Povo).
Os argumentos para o apoio à Argentina como sede da Copa eram a possibilidade de divulgar à imprensa internacional o que acontecia nos subterrâneos do regime militar. De fato, foi a presença de jornalistas estrangeiros que ajudou as Mães da Praça de Maio – até então praticamente desconhecidas – a divulgar a luta em busca do paradeiro de seus filhos.
“Antes de 1978, a Argentina não era parte do debate internacional sobre direitos humanos”, conta a Opera Mundi Lívia Gonçalves Magalhães, pós-doutoranda em história pela Unimontes e autora do livro Com a taça nas mãos: sociedade, Copa do Mundo e ditadura no Brasil e na Argentina, que vai ser lançado em julho pela Lamparina.
Futebol e política
“O discurso da FIFA é de que o que ela faz não é política, é futebol. Em 78, isso aparecia muito. Assim como acontece agora no Brasil, havia uma campanha para torcer pela seleção, de que a Copa era um grande momento, um sonho”, diz Lívia. “Mas é preciso diferenciar de forma bem clara uma Copa do Mundo durante uma ditadura e durante uma democracia. Igualar as duas situações é muito perigoso, porque além da falta de reconhecimento dos avanços democráticos, se diminui muito o peso da ditadura.”
No entanto, a historiadora considera que há semelhanças entre o debate político sobre futebol de 1978 na Argentina e de 2014 no Brasil. “Existe um patrulhamento ideológico muito parecido àquela época. As pessoas se perguntam: se eu torcer, sou a favor de tudo que acontece de ruim no país?”
Assim como no Brasil, o futebol é um esporte popular e uma paixão nacional na Argentina, além de um elemento forte da identidade nacional. Para Lívia, campanhas de boicote à Copa do Mundo revelam uma grande incompreensão de setores da esquerda em relação ao povo, tanto no Brasil, quanto na Argentina.
“Ao criticar a Copa, consideram que estão criticando o governo porque está usando a imagem da seleção. Mas até que ponto isso não tem justamente o efeito contrário, que é dar ao governo a possibilidade de se apropriar do futebol? O futebol é uma paixão nacional. Brigar com ela não é muito inteligente”, avalia Lívia.
Por outro lado, a historiadora reconhece que o futebol permitiu uma aproximação entre o governo militar e o povo argentino. “Videla foi a todos os jogos. Um chefe militar, muito associado à autoridade, virou um torcedor, um homem que sorri, abraça, torce, chora. A humanização do ditador através do futebol foi muito forte.”
Lívia conta que os depoimentos de presos políticos que sobreviveram à ditadura dão a dimensão do quanto o futebol era importante para os argentinos, mesmo em um contexto em que um regime autoritário se valia da seleção para melhorar sua imagem. “A Copa de 78 é um momento de grande alívio para os desaparecidos. Eles saíam da rotina do cativeiro, podiam ver os jogos e tinham contato com o que acontecia fora das prisões, quando os narradores comentavam sobre os acontecimentos nas cidades-sede. Era um momento para escapar daquela tortura.”
Legado
Para Lívia, o grande legado da Copa do Mundo de 1978 foi político. “Muita gente considera que 78 foi o grande momento de propaganda do regime, a renovação de um consenso, e que melhorou imagem interna e externa do país, mas não é a única leitura que se pode fazer.” A historiadora lembra que a realização do Mundial na Argentina permitiu que vítimas de violações a direitos humanos e familiares de desaparecidos contassem suas histórias.
A maior divulgação dos crimes cometidos pela ditadura gerou pressão sobre a Junta Militar que governava o país e, em dezembro de 1978, a CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos) da OEA (Organização dos Estados Americanos) recebeu autorização para visitar a Argentina.
Às vésperas da chegada da CIDH, em setembro de 1979, o governo militar lançou uma campanha de distribuição de adesivos e bandeirinhas com a frase “Os argentinos são humanos e direitos”. A reação da ditadura e a tentativa de melhorar a imagem do regime não impediu que o organismo recebesse 5.580 denúncias, das quais 4.153 eram novas, 1.261 eram casos já registrados antes e 166 não estavam relacionadas com violações de direitos humanos, segundo o relatório.
A CIDH se reuniu com políticos, personalidades da cultura, organizações de direitos humanos e com o próprio chefe da Junta Militar à época, o presidente de facto e tenente-general Jorge Rafael Videla. Em seu relatório, publicado em abril de 1980, o organismo da OEA reconheceu que havia graves violações de direitos humanos no país. Há um capítulo que trata exclusivamente da questão dos desaparecidos, onde se podem ler detalhes das operações de sequestro e citações nominais a algumas vítimas.
1986
Hoje a Argentina é bicampeã mundial e o título que mais orgulho dá aos torcedores da albiceleste é o de 1986, quando a seleção derrotou a Alemanha na final, no estádio Azteca, no México. Foi naquele ano que Maradona fez dois de seus gols mais famosos, contra a Inglaterra, nas quartas de final: o primeiro, com a mão, e o segundo, depois de partir do meio-campo e driblar seis jogadores da equipe adversária.
A equipe sul-americana eliminou da Copa do Mundo o país que havia vencido a Argentina em uma guerra real, quatro anos antes, pela soberania nas Ilhas Malvinas, ocupadas pelo Reino Unido desde meados do século XIX. A guerra foi declarada pela ditadura militar argentina em abril de 1982 e durou pouco mais de dois meses. A “vingança” veio com o futebol, na democracia.
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Copa do Mundo de 1978 ajudou a divulgar crimes da ditadura da Argentina - Instituto Humanitas Unisinos - IHU