10 Junho 2014
O cardeal Dolan, cuja arquidiocese inclui o distrito financeiro de Nova York, acredita que "poucas pessoas subscrevem uma filosofia desumana do individualismo econômico radical e menos ainda consideram o 'lobo de Wall Street' como sendo um bom modelo". Já os teólogos especializados na doutrina social da Igreja discordam fortemente de Dolan quando ele equipara o sistema econômico norte-americano com o "capitalismo virtuoso".
O artigo é do jesuíta norte-americano Thomas J. Reese, ex-editor-chefe da revista America, dos jesuítas dos EUA, de 1998 a 2005, e autor de O Vaticano por dentro (Ed. Edusc, 1998). O artigo foi publicado no sítio National Catholic Reporter, 06-06-2014. A tradução é de Cláudia Sbardelotto.
Eis o texto.
Em um artigo de opinião de 22 de maio para o The Wall Street Journal intitulado "The Pope's Case for Virtuous Capitalism" (As razões do papa para um capitalismo virtuoso, em tradução livre), o cardeal Timothy Dolan de Nova York criticou a mídia por dar a impressão de que "a única coisa na mente do papa é a redistribuição governamental da propriedade, como se estivesse denunciando o capitalismo e endossando alguma forma de socialismo".
Eles ignoram, argumenta o cardeal, "o foco principal do ensinamento econômico do Papa Francisco - que as atividades econômicas e sociais devem se basear nas virtudes de compaixão e generosidade".
O cardeal Dolan acredita que "a propagação do livre mercado, sem dúvida, levou a um grande aumento da riqueza e do bem-estar global", mas ele também concorda que "muitas pessoas vivem na pobreza e têm poucas oportunidades para alcançar prosperidade".
Ele argumenta que "todas as pessoas, incluindo os pobres, se beneficiam de um aumento geral da riqueza na sociedade" causado pelo capitalismo, mas "a Igreja certamente desaprova qualquer sistema de amoralidade econômica desregulada, que deixe as pessoas à mercê de forças impessoais de mercado, onde elas não têm escolha senão afundar, nadar ou ficar com as migalhas que caem da mesa".
O cardeal Dolan, cuja arquidiocese inclui o distrito financeiro de Nova York, acredita que "poucas pessoas subscrevem uma filosofia desumana do individualismo econômico radical e menos ainda consideram o 'lobo de Wall Street' como sendo um bom modelo".
Em suma, ele argumenta que o capitalismo criticado pelo papa não é o tipo de capitalismo praticado nos Estados Unidos. "Para muitos países em desenvolvimento ou recém-industrializados, o que passa como capitalismo é uma prática explorativa para o benefício de poucos ricos e poderosos."
A resposta adequada para os problemas do mercado livre "não é rejeitar a liberdade econômica em favor do controle do governo", escreve ele. "A Igreja tem consistentemente rejeitado sistemas coercitivos do socialismo e do coletivismo, porque violam os direitos humanos inerentes à liberdade econômica e da propriedade privada."
Depois de reconhecer rapidamente que "quando devidamente regulamentado, um livre mercado pode certamente promover uma maior produtividade e prosperidade", ele enfatiza que "a Igreja há muito tempo ensina que o valor de qualquer sistema econômico baseia-se na virtude pessoal dos indivíduos que dele participam e na moralidade de suas decisões diárias".
Como resultado, "as pessoas, agindo com justiça, compaixão e honestidade, são a base de uma boa atividade econômica ou de negócios", escreve ele. "A ordem econômica depende de ambos, da riqueza material e da abertura das pessoas para a transformação de seus corações com amor e solidariedade".
Larry Kudlow ajudou Dolan
O economista e apresentador Larry Kudlow da CNBC [Consumer News and Business Channel] tuitou que ele trabalhou com o cardeal Dolan no artigo. Em seu programa de TV em agosto de 2013, depois de citar o tuíte do papa de que as pessoas estão "desempregadas, muitas vezes, como resultado de uma mentalidade autocentrada no lucro a qualquer custo", Kudlow comentou: "Isso não parece muito com uma mensagem de livre mercado para mim".
Muitos dos temas da coluna de Dolan podem ser ouvidos no programa de Kudlow. "Espero sinceramente que o papa não acredite que a sua Argentina natal seja um exemplo de capitalismo", disse Kudlow. "Ela foi um caso de fascismo estatal, nepotismo e roubo".
Ele argumentou que o que o Papa Francisco está dizendo é: "As empresas, políticos e todos, todos nós temos que ter uma consciência. Temos que ter uma consciência na maneira como fazemos nossos negócios e não devemos esquecer aqueles que são menos afortunados". Kudlow disse acreditar que "os valores judaico-cristãos, os valores meritocráticos, eles são como a subida da maré que levanta todos os barcos". Ele reconheceu: "Isso não quer dizer que a pobreza seja erradicada, mas é daí [dos valores judaico-cristãos] que essa tendência vem".
Em contraste, Kudlow disse que "o Papa João Paulo II tinha uma abordagem muito mais pró-mercado nisso tudo", porque ele viveu sob o regime comunista soviético. "Ele sabia que os sistemas socialistas ou mesmo os sistemas quase-socialistas não têm liberdade", opinou. "Eu não sei se esse papa realmente entende isso."
Quando seu entrevistado perguntou a Kudlow se ele estaria disposto a concordar com regulamentações mais estritas da atividade econômica, a fim de garantir que o campo de jogo seja realmente justo, Kudlow respondeu: "Não, eu não. Eu não acredito em regulamentações econômicas estritas. Eu acredito em normas de segurança. Acho que as regulamentações econômicas nos levam de volta ao socialismo estatal".
Em suma, "sobre a questão moral, eu concordo com o papa, mas na questão da regulação, eu não quero voltar para a regulação no estilo soviético".
Os teólogos respondem
A coluna do cardeal não caiu bem junto aos teólogos especializados na Doutrina Social da Igreja. Eles discordam fortemente com Dolan ao equiparar o sistema econômico americano com o "capitalismo virtuoso". O Papa Francisco estava falando sobre o capitalismo americano, dizem os teólogos.
"Não foi a economia populista argentina, o capitalismo de conivência do leste europeu ou a cleptocracia africana que ameaçaram a economia mundial com a pior recessão desde os anos 1930", disse o padre jesuíta Drew Christiansen, professor de ética e desenvolvimento humano mundial na Universidade de Georgetown. "Foi o duro e feroz capitalismo americano que fez isso."
"É uma vergonha que o cardeal pareça mais interessado em fazer as declarações do Papa Francisco parecerem menos ameaçadoras para os americanos que celebram o livre mercado do que na aplicação da crítica do papa para a situação americana como ela realmente é", afirma Joseph A. McCartin, diretor da Kalmanovitz Initiative for Labor and the Working Poor na Universidade de Georgetown. "Não é preciso viajar para um país em desenvolvimento para ver um sistema que está funcionando como 'um mecanismo de exploração'. Os sinais estão à nossa volta, aqui mesmo nos Estados Unidos."
O professor Gerald Beyer, da Universidade de Villanova cita João Paulo II em contradição com o cardeal Dolan. "Aspectos típicos do terceiro mundo também aparecem em países desenvolvidos", ele escreve em Centesimus Annus (33). Ou, mais incisivamente, em Ecclesia in America:
Domina cada vez mais, em muitos países americanos, um sistema conhecido como «neo-liberalismo»; sistema este que, apoiado numa concepção economicista do homem, considera o lucro e as leis de mercado como parâmetros absolutos a prejuízo da dignidade e do respeito da pessoa e do povo.
Alguns argumentaram que muitos problemas do mundo em desenvolvimento (salários baixos, a corrupção, a devastação ambiental) são causadas ou explorados por empresas norte-americanas ou por seus fornecedores.
O fato de Dolan "cair neste mito do 'capitalismo americano virtuoso' e da corrupção no mundo em desenvolvimento", disse uma teóloga que não quis ser identificada, "é uma ilusão completa, especialmente quando o alcance global de interesses transnacionais norte-americanos são considerados". Tais argumentos, segundo ela, são "paternalistas, neocoloniais e imperialistas".
Nem mesmo os teólogos acreditam que o capitalismo americano tenha produzido resultados tão maravilhosos em casa.
"As críticas do papa têm relevância direta com a desigualdade econômica e a injustiça que existe claramente nos Estados Unidos hoje", diz o padre jesuíta David Hollenbach, professor de direitos humanos e justiça internacional do Boston College. O cardeal "precisa refletir sobre o crescimento extraordinário da desigualdade de renda e riqueza nos Estados Unidos, quando ele sugere que as críticas Papa Francisco ao capitalismo não se aplicam neste país".
"O cardeal Dolan não percebe o que o Papa Francisco vê tão claramente", diz o padre Christiansen. "O crescimento da desigualdade em todos os lugares, incluindo os EUA, é o resultado do capitalismo de estilo americano e da financeirização da economia." Ele continua:
A estagnação do crescimento dos salários e a economia "trickle-up" [riqueza dos pobres para os ricos] encolheu a classe média dos Estados Unidos e esvaziou o poder econômico dos que permanecem na mesma. O Papa Francisco entende isso quando ele associa o combate à pobreza para reverter a desigualdade.
Por gerações, a doutrina social católica entendeu e ensinou que a melhoria da condição dos pobres significa travar a desigualdade. Graças a Deus que o Papa Bento XVI e o Papa Francisco ressaltaram esse ensinamento de forma bem enfática.
Infelizmente, muitos católicos abastados preferem adquirir sua ética econômica do Acton Institute em vez do Vaticano.
Para McCartin, "ler a declaração do cardeal me faz apreciar ainda mais o grande serviço que o economista francês Thomas Piketty nos fez recentemente, demonstrando que a taxa de retorno sobre o capital excede a taxa de crescimento econômico sob o capitalismo - e não apenas em um nação, mas em todas as nações para as quais existem dados, e de forma convincente, argumentando que, dada esta tendência, a intervenção governamental sistêmica é necessária para evitar que o capitalismo vá em direção ao oligopólio".
O padre jesuíta John Langan, professor de filosofia e chefe do departamento Cardinal Bernardin de estudos do pensamento social católico da Universidade de Georgetown, critica Dolan por creditar todas as realizações positivas da economia "ao setor privado, isentando-o da crítica séria pelos defeitos reais de nosso sistema, os problemas do 'verdadeiro capitalismo existente'".
O "capitalismo americano virtuoso", argumenta Langan, "é uma abstração. A questão-chave é se a noção está sendo usada para alfinetar ou para acalmar nossas consciências".
Para Langan, "os argumentos reais que precisam ser enfrentados tem a ver com conseguir o equilíbrio certo entre a iniciativa privada, programas redistributivos, regulamentações equitativas, oportunidades para os jovens e para os já excluídos, tributação justa e realista, um estilo de gestão que trate os trabalhadores com dignidade e respeito ao meio ambiente".
Infelizmente, diz ele, "muitos amigos do capitalismo americano dedicam suas energias em denunciar, retirar fundos e limitar os esforços para enfrentar o conjunto imensamente complexo de problemas que nos confrontam. Eles se dedicam a um método poderoso, mas incompleto de pensamento econômico que deixa de lado as necessidades humanas importantes e os valores que a doutrina católica tem o compromisso de proclamar e defender".
O que especialmente provocou a indignação dos teólogos foi o foco do cardeal Dolan na moralidade e virtude pessoal, excluindo questões estruturais.
"A ênfase do cardeal Dolan em virtude pessoal como a solução para as questões de injustiça econômica não dá atenção suficiente para as causas estruturais da pobreza", reclama Hollenbach.
"Essas questões estruturais têm uma grande ênfase na Doutrina Social da Igreja, especialmente depois de Pio XI colocar elevada importância na justiça social como uma realidade que vai além da justiça dos indivíduos", diz ele. "O Papa Francisco está ciente dessas questões estruturais, quando ele argumenta que os mercados não levam à justiça por 'trickle-down' [riqueza dos ricos para os pobres]. A crítica do papa é uma outra maneira de pedir uma mudança estrutural".
O artigo de Dolan "reflete uma compreensão fortemente individualista da moralidade", diz o professor Mark Allman, presidente do departamento de estudos religiosos e teológicos do Merrimack College.
"Ele parece reduzir o mau comportamento dos distritos financeiros às escolhas individuais, que ignora o ensinamento de João Paulo II sobre o "pecado social" como "mal institucionalizado", diz Allman. "Mesmo considerando que João Paulo II tenha dito que todo pecado remonta a uma escolha individual, ainda assim, existem práticas estruturais e culturais que contribuem para uma cultura ou status quo que pode ser desumano." Mas no artigo de Dolan, "não há nenhuma menção da necessidade de mudança estrutural".
John Gehring, diretor do centro católico Faith in Public Life, concorda: "há pouca análise de como os mercados e sistemas financeiros em nosso próprio país são capazes de perpetuar a injustiça estrutural e o pecado social que muitas vezes mantem as pessoas presas na pobreza".
"Esses argumentos dão cobertura moral para os fundamentalistas de mercados livres e fanáticos anti-governamentais que pregam um evangelho de individualismo radical que rejeita a doutrina católica", disse Gehring. "Em vez de aplicar a crítica do papa sobre as teorias "trickle-down" para a economia dos Estados Unidos marcada por desigualdades gritantes, o cardeal parece ecoar os pontos de discussão do partido republicano".
Terrence Tilley, que detém a presidência do departamento Cardeal Avery Dulles de teologia católica na Universidade de Fordham, expressa-se mais diplomaticamente, demonstrando surpresa ao notar que Dolan se recusa "a reconhecer a possibilidade de que o 'capitalismo virtuoso' narra uma 'história de fachada' para aqueles que continuam aumentando a desigualdade econômica", já que "ao longo dos últimos 35 anos, os ricos foram ficando relativamente mais ricos e os pobres ficando relativamente mais pobres, de modo que a desigualdade atingiu níveis não vistos desde a década de 1920 no advento da Grande Depressão".
O artigo do cardeal Dolan tem estimulado uma discussão animada sobre a Doutrina Social da Igreja e o capitalismo norte-americano. Talvez da próxima vez em que o Papa Francisco der uma entrevista coletiva, alguém vai perguntar o que ele acha do capitalismo norte-americano.
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Teólogos criticam a defesa do cardeal Dolan ao capitalismo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU